segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Relendo Gilberto Freyre

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por Idelber Avelar

Frey-54.jpg Como Marx, Gilberto Freyre pertence àquela categoria de pensadores sobre os quais, com freqüência, jornalistas, ideólogos, polemistas, funcionários e leitores de revista e jornal já têm, ou supõem ter, opinião formada antes mesmo do encontro com os textos. Se com as citações de Nietzsche você pode montar (com diferentes graus de edição, claro) tanto o “proto-nazista” como o semitófilo anti-germânico, tanto o positivista como o crítico radical da ciência, tanto o circunspecto prosador filosófico como o enlouquecido aforista, com Freyre ocorre algo análogo. Freyre, o celebrador da mestiçagem, adocica-a ao ponto de ofender a história de opressão real de negros e mulatos, mesmo tendo sido o texto de Freyre o momento mais intenso de descrição e de arqueologia dessa história de violência, mesmo tendo sido Freyre quem mais amou e compreendeu a cultura e a especificidade de negros e de mulatos brasileiros (e das negras e das mulatas, evidentemente). Freyre demolindo analiticamente o patriarcado escravocrata brasileiro com Casa-Grande e Senzala coexiste com o Freyre salazarista, do abraço a Magalhães Pinto, numa marcha binária bastante previsível.

Lidar com com essa “contradição” do texto de Freyre – que não é uma contradição real, claro, mas só a história de vida de um ensaísta e antropólogo multifacetado que viveu mais de 80 anos – não seria tão complicado se Casa-Grande e Senzala não representasse o relato, a historinha, a narrativa, a ficção, se queres, com que os brasileiros nos inventamos como país. Coincido com Darcy Ribeiro em que, da história do que se escreveu no Brasil, muitos livros poderiam ser retirados e sentiríamos uma lacuna irreparável por cada um deles. Mas só um livro, Casa-Grande e Senzala, não poderia sair sem que o Brasil mesmo não passasse, com essa ausência, a ser outra coisa.

Daí não se segue que CGS seja o “melhor” livro brasileiro. Mas ele é o que captura e dá a versão mais acabada ao complexo de mitos que fundam o país. Isso faz com que mesmo a bibliografia especializada sobre Freyre, com notáveis exceções (pdf), com freqüência recaia numa oscilação previsível entre dois pólos, a denúncia do adocicamento versus a celebração da mestiçagem. O Fla x Flu não seria daninho se não começasse a funcionar, neste caso, como desculpas para não se ler os textos.

Nessa história de desleituras de Freyre, alguns mitos se propagaram e passaram a “fazer parte” da própria obra, às vezes, para complicar a situação, com a cumplicidade do próprio Freyre. Sobre a vilificada “democracia racial”, ainda há quem acredite ter sido noção sintetizada, defendida ou apresentada em Casa-Grande e Senzala.* Os fatos históricos (pdf) são, claro, que 1) nem esse termo nem sinônimos dele jamais aparecem no livro; 2) Arthur Ramos usa-o num seminário em 1943; 3) ele passa a circular um bocado pela boca de Roger Bastide nos anos 40/50; 4) é utilizado por líderes do próprio movimento negro para descrever uma situação supostamente existente no Brasil nos anos 50 (veja o Discurso de Abdias ao Congresso Negro de 1950), antes de que Freyre o mencionasse num texto de 1962.

Nem o “mito da democracia racial” nem o “mito do mito da democracia racial” -- ou seja, o mito de que alguém no Brasil algum dia haja acreditado em tal fenômeno –- deveriam monopolizar o debate sobre Freyre, mas o fato é que o fazem. Entre os mitos que se propagam, nem todos são igualmente falsos e nem todos têm o mesmo poder de circular e gerar mini-mitos.Alguns são bem interessados e nefastos, como a citação e a edição seletivas que sustentam a queixa de que uma conspiração da esquerda com a USP tenha impedido que Freyre fosse bem lido no Brasil. Não há hipótese de que você veja o nome de Freyre mencionado, por exemplo, em blog pago pela maior revista semanal brasileira sem que essa cantinela seja repetida com abundantes pontos de exclamação.

Esse terreno minado em volta de Freyre faz com que vários críticos e ensaístas que poderiam escrever sobre sua obra terminem não fazendo-o. Eu mesmo, que em vinte anos publiquei estudos sobre vários prosadores brasileiros, nunca havia escrito uma linha sobre Freyre. Gozando da magnífica paz de um maravilhoso Thanksgiving sem trabalho (rarará, contorça-se, leitor ressentido com a desconstrução das datas sagradas), pus fim a essa lacuna e concluí um mergulho de muitas semanas de trabalho com o texto de Gilberto Freyre, que rendeu um artigão gorducho.

Sim, acabei de escrever um calhamaço de 50 páginas sobre Freyre. É um estudo do arranjo dos gêneros e da sexualidade – em especial da masculinidade – na obra do pernambucano. Bom, na verdade em Casa-Grande e Senzala, Sobrados e Mucambos e até no chato e prolixo Ordem e Progresso. Estou contente, acho que ficou bom.

Não é, evidentemente, texto circulável na internet antes de que seja publicado pelos devidos – e lentíssimos -- canais acadêmicos. Mas penso, sim, usar o trabalho feito para gerar um ou dois posts sobre Freyre nas próximas semanas. Quem quiser se munir de um exemplar de Casa-Grande e Senzala, dos textos da Biblioteca Virtual Gilberto Freyre e do que mais desejar, que seja bem vindo. Pode ficar sendo um mini Clube de Leituras.


PS: Alex Castro fez um magnífico exame de admissão à tese doutoral, escrevendo um de seus ensaios sobre Freyre. Não só foi aprovado como foi merecedor de distinction, honraria rara em Tulane. Para o catatau que acabo de escrever, eu me nutri do trabalho do Alex, que levantou livros que eu não conhecia.

PS 2: A foto que ilustra o post é de 1954 e vem da Biblioteca Virtual.

* Contrariando a ética blogueira de sempre dar o link, omito o nome do(a) infeliz autor(a) de publicação acadêmica de 2002, onde se diz que o "conceito teórico" de democracia racial foi desenvolvido em Casa-Grande e Senzala. Seria anti-freyriano detonar a carreira de alguém com um post de blog.

Fonte: O Biscoito Fino e a Massa

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