sexta-feira, 3 de outubro de 2008

O juiz sem medo

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por Sérgio Lírio

Outro dia tive a honra de participar de um debate ao lado de Wálter Fanganiello Maierovitch. Foi em Campinas e o centro da discussão era a histeria instalada nos poderes, os permanentes e os transitórios, em conseqüência da Operação Satiagraha. Wálter permitiu-se desviar um pouco do foco e deu uma aula sobre um de seus assuntos prediletos e do qual é um dos maiores especialistas do mundo: as máfias italianas.

Enquanto Wálter relatava ações violentas e descaradas de mafiosos contra aqueles que os investigavam, perguntei-me qual a diferença entre a Itália de antes da Operação Mãos Limpas (deixemos de lado a atualidade infeliz da terra de Berlusconi) e o Brasil de agora. Minha conclusão: aqui, até o momento, não foi necessário explodir nenhum representante do poder público, a exemplo do que fez o crime organizado italiano com Giovanni Falcone e Paolo Borsellino.

Não que inexistam Falcones e Borsellinos no Brasil. Acho que até os há, em quantidade não desprezível, entre os integrantes do Ministério Público e do Judiciário. Vários andam protegidos por escolta e vivem sob constante ameaça de morte. Concluo, porém, que, à parte exemplos extremos, nestes rincões abaixo do Equador impõe-se cotidianamente outra realidade presente nas análises de Wálter, e que também integra a agenda de preocupações da União Européia, a criminalidade dos potentes, ou dos poderosos, para recorrer a uma palavra mais precisa no português.

A força no Brasil dos poderes, permanentes e transitórios, é tamanha, e ainda mais avassaladora quando descobrem interesses comuns, que bastam mecanismos menos hollywoodianos, mas igualmente eficientes, para torpedear investigações ameaçadoras. A invenção de crises institucionais, por exemplo. A moda nestes dias é apontar a existência de um “Estado policial” a colocar em risco a preservação do “Estado de Direito”. Mas de onde viria a ameaça à nossa incipiente democracia? Do grampo até agora não comprovado de uma conversa pueril entre o presidente do Supremo e um senador coadjuvante? Ou de ataques a policiais e juízes envolvidos em investigações de figurões das finanças e da política?

Não falta quem resista à ação dos potentes no Ministério Público e na Justiça. No jornalismo também, mas em número infinitamente menor. Wálter é um deles. Como destaca Mino Carta no prefácio do livro recém-lançado do colunista de CartaCapital, ao aceitar colaborar regularmente com a revista, após deixar a Secretaria Nacional Antidrogas do governo FHC, Wálter, além de magistrado de carreira reconhecida, virou jornalista competente. Mais até: desde a sua estréia em nossas páginas, em 2000, revelou pendores de repórter, capaz de enxergar antecipadamente assuntos relevantes ao País e ao mundo. Até o gosto por “furos” ele incorporou.

Graças ao magistrado-jornalista, os leitores de CartaCapital souberam de antemão quem era Osama bin Laden, antes de ele vir a ser o terrorista mais procurado do mundo, odiado no Ocidente, celebrado em extensas porções do Oriente. De sua autoria, “O príncipe da morte”, publicada em 1º de agosto de 2001, um mês antes do atentado ao World Trade Center, é uma reportagem profética, que costuma despertar inveja em jornalistas de carreira ainda apegados aos princípios básicos da profissão (confesso a minha).

De lá para cá, Wálter tratou semanalmente na revista das diferentes facetas do crime organizado e do terror, estejam eles instalados em uma bela cidade italiana, nas matas e palácios da América do Sul ou em cavernas do Oriente Médio. Refletiu sobre a Justiça, a política, as questões de Estado, com a autoridade alicerçada em uma carreira e uma vida límpidas. Parte dessa produção intensa e analítica foi reunida em Na Linha de Frente pela Cidadania (Michael, 383 págs., R$ 49), coletânea de artigos publicados em CartaCapital em quase nove anos.

O subtítulo “A criminalidade dos potentes” expressa a consciência de que da atuação de poderes superiores, quase divinos, raramente alcançáveis pelas mãos da Justiça, emergem os principais entraves ao combate ao crime organizado e aos saqueadores de colarinho-branco. A capa traz ainda uma frase de Borsellino: “Quem tem medo morre a cada dia. Quem não tem morre uma vez somente”. Wálter, tenho certeza, só morrerá uma vez.

Fonte: Carta Capital

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