quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O ESPETÁCULO DA VIDA

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por Urariano Mota

Recife (PE) -- Nem todo o mundo sabe. Guará pode ser nome de um pássaro, de plumagem bela e vermelha, ou o nome de um lobo, que vive até na zona da mata, onde adora devorar cana-de-açúcar. Mas o Guará a que vou me referir é um cortador de cana, que conheci em terras da Usina Catende, aonde fui em trabalho jornalístico. A reportagem está inédita até agora. Acredito que uma forte razão, para a reportagem não ver a luz, é o depoimento desse Guará trabalhador.

Vocês vão ver. Esse depoimento mostra uma relação nova entre capital e trabalho. Em curtas e eloqüentes palavras, Guará traça o destino que ganhou sua vida, desde o dia em que a Usina Catende passou a ser governada por cortadores de cana. Reunidos em cooperativa, com mais de 4.000 famílias, fizeram da Usina Catende a maior experiência de autogestão da América Latina.

Copio o que ele disse, adaptando a grafia das palavras à forma com que ele as falou.

– Sou conhecido como Guará, desde menino. Tenho 42 anos. E tenho 3 hectares de terra. Trabaiamo eu e minha famía. Na época da safra, eu trabai na produção da moagem, aí eu tiro na faixa de uns 600 a 700 por mês. Isso como cooperado. Como fornecedor, dependendo da moagem, dá pra fazer 2.500, até 3.000 eu faço. Isso na safra. Fora da safra, eu tou no FAT, tiro 415 reais por mês.

- Como era sua vida antes?

- Rapaz, minha vida era aquela, difícil, né?, porque eu num tinha acesso a nada pra trabaiá. Quiria trabaiá, mas os home num deixava, porque quando nóis prantava, eles arrancava. Aí teve o quê? Uma demissão em 1993, que eles butarum pra fora 2.340 trabaiadô, e num pagou. Aí nós se ajuntou com os sindicato, butamo pra fora o usineiro, e tomamo as posse das terra. Aí tome a assentar, todo o mundo, a maioria do povo aqui, todos eles tem as casa, pra trabaiá, dele, casa do moradô que foi feita...

- A casa em que você mora é própria?

- É minha. Antes eu num tinha nada, nada, nada. E agora eu tenho casa, até uma mansão de casa eu tenho. A minha casa é grande, é. Minha casa tem, só de comprimento, minha casa tá com 14 metro quase. Com 6 metro de largura. Tem 3 quarto minha casa, três sala, e uma cozinha e um banheiro com 2 e 60, com 1 e 80 de largura.

- E o terreno todo?

- O terreno todo é o que eu pudé pegá. O que eu pudé pegá, é meu.

- O que você tem na sua casa de eletrodoméstico?

- Rapaz, eu tenho uma televisão boa, tenho antena paraboto, tenho ventiladô, liquidificadô, tenho som, tenho uma geladeira boa, tenho um armaro, ferro elétrico, tudo. O que um pobre pode ter, eu tenho. Um fogão a gás bom. Tenho comida de primeira. Eu digo de primeira porque... nós só comia o quê, quando era antigamente? Sardinha, bofe, tripa. Agora, não. Agora, se eu quisé galinha, é galinha. Se eu dissé quero cumê carne de gado, é carne de gado. Se eu quisé cumê carne de poico, é carne de poico. Um peixe eu como. O que eu quisé cumê, tá nas minhas mão”.

Ao ouvir no gravador em casa as palavras de redenção desse homem, tive uma iluminação. Aquilo que João Cabral escreveu com ironia e revolta, em Morte e Vida Severina, ao comparar a riqueza do açúcar com a morte do trabalhador na fome, quando escreveu

“Viverás, e para sempre

na terra que aqui aforas:

e terás enfim tua roça.

Aí ficarás para sempre,

livre do sol e da chuva,

criando tuas saúvas.

Agora trabalharás

só para ti, não a meias,

como antes em terra alheia.

Trabalharás uma terra

da qual, além de senhor,

serás homem de eito e trator”....

Aquela morte na terra onde o homem estaria mais ancho que estava no mundo, Guará mudou em nova poesia: “antes eu num tinha nada, nada, nada. E agora eu tenho casa, até uma mansão de casa eu tenho... O que eu quisé cumê, tá nas minhas mão”. De fato, não há melhor resposta que o espetáculo da vida. Mesmo quando é a explosão de uma vida Guará.




Fonte: Direto da Redação

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