Apesar do reforço militar, uma eleição contestada complica um quadro já muito difícil para o Pentágono e inspira comparações com a Era Johnson.
Por Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa
Mal fechadas as urnas e com virtual empate entre o governo e o principal oposicionista nos 10% de votos já apurados, um ministro de Estado disse que dispunha de dados fornecidos por funcionários do processo eleitoral, e o presidente fora reeleito com maioria de 68%. Seu rival diz ter vencido o primeiro turno e acusa o governo de fraude ante a imprensa internacional. Oposicionistas de diferentes tendências denunciam que o governo proclama um comparecimento às urnas muito superior ao real e preenche a diferença com votos forjados, além de intimidar eleitores.
Parece o Irã, mas trata-se do Afeganistão ocupado, onde o envolvimento do Pentágono foi recentemente escalado de 47 mil para 68 mil soldados, que, desde 15 de junho, obedecem ao general Stanley McChrystal. A escolha encerrou a carreira militar do antecessor, general David McKiernan, em meio a uma missão de dois anos – sintoma da ansiedade da Casa Branca e do Pentágono por mudar o rumo da guerra.
No primeiro país, o presidente é Mahmoud Ahmadinejad, hostil a Washington, e no segundo, Hamid Karzai, simpático ao Ocidente. Em favor das eleições afegãs, houve mais tolerância para com observadores e jornalistas estrangeiros – mas que em muitos casos não aprovaram o que viram. Em favor das eleições iranianas, no seu caso as pesquisas de instituições estadunidenses indicavam uma tendência compatível com a vitória por 62% proclamada pelo governo, enquanto as feitas no Afeganistão não sugeriam de forma alguma uma vitória esmagadora da situação – excluídos os indecisos, Karzai tinha 45%, tanto na última pesquisa do IRI (16-26 de julho) quanto na do Glevum & Associates (8-17 de julho).
Em ambos os casos, há pouca diferença entre os principais candidatos, representantes do mesmo sistema e as acusações mútuas indicam uma elite rachada – um problema bem mais sério em Cabul, sitiada por fundamentalistas e dividida por disputas tribais do que em Teerã, onde não há desafio sério aos aiatolás, nem maiores rivalidades étnicas.
Hamid Karzai tem bases eleitorais principalmente no sul, entre os pashtun (41%), os 41 candidatos da oposição são mais fortes entre as etnias do norte, os tadjiques (38%) e outros grupos menores. Entre os tadjiques, as preferências incluíam 30% para Karzai (pashtun) e 34% para Abdullah Abdullah (filho de pai pashtun e mãe tadjique), o mais bem-sucedido candidato da oposição. Já entre os pashtun, Karzai tinha 44% e Abdullah, apenas 11%.
Entretanto, também é nos territórios pashtun que o Taleban tem mais apoio popular e é mais capaz de intimidar os eleitores que dele discordem. Nessa região, Karzai tende a ter uma sólida maioria dos votos válidos, mas a abstenção, voluntária ou forçada, também é muito alta. Em províncias como Kandahar e Helmand, observadores estrangeiros estimaram a abstenção em 90% a 95%, mas o governo insiste em que 40% foram às urnas.
Em 18 de agosto, dois dias antes da eleição, o repórter Ian Pannell, da BBC, exibiu maços de títulos de eleitor comprados nas ruas de Cabul, contando que um afegão contratado pela emissora recebeu mais de uma oferta de mil títulos a dez dólares cada um. Muitos possuem títulos múltiplos, funcionários públicos fizeram campanha pelo governo e um líder tribal do norte disse ter recebido uma oferta de milhares de dólares em troca de votos em sua área.
Segundo a jornalista Lara Logan, da CBS News, a maioria dos afegãos julga que os EUA, na prática, decidem quem vence e ajudaram Karzai a roubar a vitória. O correspondente de The Economist descreve uma rejeição crescente a Karzai e à presença de estrangeiros.
Em 2004, na primeira eleição pós-Taleban, Karzai foi eleito por 55,4% dos votos válidos e total apoio dos EUA. O caudilho Mohammed Mohaqiq, da etnia hazara, 10% da população, disse que o embaixador de Bush júnior, Zalmay Khalilzad, exigiu sua desistência e ofereceu compensações. Como estas não satisfizeram o candidato, o embaixador continuou a pressionar seus seguidores e assessores para que dissesse seu preço e desistisse. Não houve acordo e Mohaqiq foi até o fim, ficando em terceiro lugar, com 11,7%. Mas, nesta eleição, deu seu apoio a Karzai em troca de cinco ministérios.
Com a piora da segurança, o apoio a Karzai caiu nestes cinco anos, tanto entre o povo quanto em Washington. Além do crescimento da violência, pesa sua aliança com o brutal caudilho uzbeque Rashid Dostum, responsável por violações massivas de direitos humanos – inclusive a morte de 2 mil talebans, sufocados em contêineres, durante a invasão estadunidense de 2001 – e, como a maioria dos caudilhos afegãos, de tráfico de ópio.
Segundo a ONU, a produção de ópio saltou de 85 toneladas, em 2001, último ano de poder do Taleban (que reprimiu o cultivo com mão de ferro), para 8,2 mil toneladas em 2007 (93% da produção ilegal do mundo) e 7,7 mil em 2008, representando 3,4 bilhões de dólares, um terço do PIB afegão. A maconha também disparou, chegando a 30 mil hectares em 2005 e 70 mil em 2007. Em 2008, o país superou o Marrocos como maior produtor mundial de haxixe. Recentemente, Karzai perdoou cinco traficantes, condenados a até dezoito anos por tentar trocar heroína por dois caminhões cheios de submetralhadoras.
Na prática, os EUA derrubaram os fundamentalistas para implantar um narco-Estado, que hoje produz metade das drogas ilegais do planeta. Agora até o Taleban – como as Farc na Colômbia – obtém boa parte de seus recursos taxando os produtores de ópio e haxixe em sua área de influência. As tentativas do Pentágono de erradicar a papoula levam os agricultores a se juntar aos fundamentalistas, agravando o conflito.
Segundo o especialista em contrainsurgência David Kilcullen – que, segundo a Associated Press, vai assessorar McChrystal –, Karzai “tem uma reputação pessoal razoavelmente limpa, mas é visto como ineficaz, sua família é corrupta e alienou uma porção muito substancial da população. Parece paranoide, iludido e fora de contato com a realidade. O mesmo que era dito sobre Ngo Dinh Diem em 1963”. Em novembro daquele ano, esse presidente sul-vietnamita foi morto em um golpe apoiado por John Kennedy.
Já o cientista político James McAllister preferiu comparar esta eleição com a sul-vietnamita de 1967, fraudada com apoio de Lyndon Johnson para confirmar o ditador militar Nguyen Van Thieu, que se manteve no poder até partir para o exílio, nove dias antes de a guerrilha tomar Saigon, em 1975.
McChrystal acredita ter apenas um ano para reverter a situação militar, muito agravada desde 2008. A insurgência, que em 2005 ainda estava restrita ao sul e ao leste, agora cobre quase todo o país. Províncias antes tranquilas agora são cenário de combates pesados – e nas áreas que já eram insurgentes, a palavra mais adequada é agora “insurreição”. Seis policiais afegãos morrem por dia, vítimas de emboscadas do Taleban.
Segundo suas novas regras, as tropas devem priorizar a segurança dos afegãos em relação à sua própria proteção. Entre outras coisas, isso significa evitar o bombardeio indiscriminado de aldeias, prática à qual se devem pelo menos 40% das 2 mil vítimas civis da guerra em 2008 (as demais são atribuídas aos fundamentalistas). O general também determinou que as buscas em casas de civis sejam feitas com mais polidez e acabou com o apartheid que proporcionava aos soldados e marines dos EUA refeitórios e salas separados dos companheiros afegãos, para tentar conter o crescimento do rancor e da desconfiança entre os nativos.
A ousadia tem um preço: as mortes de soldados da coalizão já triplicaram em relação ao período em que McKiernan esteve no comando. A média de mortes mensais de soldados da coalizão saltou de cerca de 25 em 2008 e nos primeiros cinco meses de 2009 para 76 em julho e 64 nos primeiros 26 dias de agosto, números comparáveis aos da guerra no Iraque nos seus piores dias.
Não que o Iraque esteja indo bem. As mortes de anglo-americanos caíram, mas as de iraquianos continuam a ser contadas em centenas por mês – e, em 19 de agosto, os próprios ministérios da Fazenda e das Relações Exteriores, dentro da chamada Zona Verde de Bagdá, supostamente o perímetro mais protegido do país, foram alvos de atentados que mataram 101 pessoas, feriram 565 e praticamente demoliram os dois prédios.
Mesmo que a nova estratégia seja eficaz, pode ter vindo tarde demais. Por tempo demais, os EUA e o Pentágono, obcecados com o petróleo iraquiano, subestimaram o Taleban, viram no Afeganistão apenas uma oportunidade de lucro para suas empreiteiras e trataram seu povo com desprezo, deixando de cumprir promessas de democratização, reconstrução e ajuda. Agora, correm o risco de perder tanto o Iraque quanto o Afeganistão e ainda o Paquistão, onde os fundamentalistas também crescem.
Nos EUA, o apoio à guerra no Afeganistão já caiu abaixo de 50% e o New York Times já a chama de “O Vietnã de Obama”, pois o atual presidente, como Lyndon Johnson, corre o risco de ter sua política interna progressista sufocada pelo fracasso ao escalar uma guerra que herdou e não tem como vencer – com o agravante de ter de lidar, ao mesmo tempo, com uma crise econômica de proporções inéditas desde os anos 30.
Fonte: Carta Capital
Nenhum comentário:
Postar um comentário