quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Energia - A conta da aventura

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A desastrada abertura do setor elétrico na era FHC e os remendos insuficientes no governo Lula levaram à escalada das tarifas. O assunto virou alvo de uma CPI.


Por Luiz Antonio Cintra

Distante dos holofotes, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) trabalha há três meses para tentar responder a uma pergunta que tem ocupado especialistas habituados com os meandros do intrincado setor elétrico nacional: o Brasil possui as mais caras tarifas elétricas do mundo?

Em que pesem as dificuldades de comparação com outros países, por causa das oscilações do câmbio e das diferenças de matriz energética, o fato é que as tarifas praticadas no País sobem em ritmo acelerado desde o início da privatização do setor, em meados dos anos 1990.

Estudo assinado por economistas do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que serviu de base ao pedido de CPI, sustenta que sim, que somos líderes no ranking mundial, à frente de países com renda per capita muito superior à brasileira, como Japão e Alemanha. De 1995 a meados de 2008, data de publicação do estudo, a tarifa média teria subido nada menos que 398%. No mesmo período, os salários, corrigidos pelo IPCA, subiram bem menos, apenas 164%.

Intitulado “Por que as tarifas foram para os céus? Propostas para o setor elétrico brasileiro”, o que seria apenas mais um paper destinado a discussões entre especialistas ganhou um inesperado fôlego político com a CPI, que teve de vencer a resistência inicial dos parlamentares governistas. E esquentou o debate em torno do tema – e por extensão, sobre a qualidade da atuação da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), responsável pela gestão e fiscalização do setor, também na mira dos parlamentares.

“O Brasil possui o menor custo de produção de energia do mundo entre as nações com mais de 50 milhões de habitantes. Entretanto, para o consumidor, a tarifa é uma das mais caras”, anotam os economistas Gustavo dos Santos, Eduardo Barbosa, José Francisco da Silva e o contador Ronaldo de Abreu, autores do estudo. O quarteto credita ainda a alta ao modelo pós-privatização, que teria criado uma “enormidade de custos desnecessários e tornado o sistema menos confiável”.

Criou ainda disparidades regionais antes inexistentes. Após a privatização, cada concessionária passou a cobrar de acordo com os seus custos – e o resultado foi que em estados como Maranhão ou Piauí, onde a renda per capita é das mais baixas do País, a energia custa quase o dobro da tarifa dos paulistas, detentores da maior renda individual.

No Maranhão, a tarifa residencial era de 648 reais o megawatt-hora, em dezembro de 2008, segundo a Aneel, em comparação a 369 reais cobrados em São Paulo (quadro à pág. 34). Um estudo produzido por técnicos da USP constatou indícios de cobrança indevida por parte da concessionária local, Cemar, do Grupo Equatorial Energia. A distribuidora teria faturado a mais em contas de 80 mil consumidores de baixa renda. Consultada por CartaCapital, a Cemar, em nota enviada por e-mail, afirma que a empresa chegou a um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) com o Ministério Público Estadual para a realização de uma perícia conclusiva sobre o caso. “Apenas a complementação da perícia poderá constatar se houve alguma inconformidade”, responde a Cemar.

A empresa atribui ainda o custo elevado da sua tarifa aos aspectos socioeconômicos (baixo consumo per capita) e à extensão da área de concessão. E ainda aos impostos e encargos pagos pelos consumidores. Os ganhos de eficiência estariam sendo revertidos, diz a nota, aos consumidores – em agosto, o custo do megawatt-hora teria caído 1,64%. A redução não deverá prejudicar o balanço, cada vez mais recheado de zeros. Em 2008, a Cemar registrou lucro líquido de 228 milhões de reais, ante 180 milhões em 2007, um incremento de 27%.

“A explosão das tarifas decorre do modelo mercantil de FHC, qualitativamente mantido no governo Lula. Foi mantida uma âncora para a especulação no chamado mercado livre (660 grandes consumidores no País, especialmente indústrias), custeada pelo mercado cativo (residencial e de empresas menores). Não foram feitos inventários para licitar novas hidrelétricas, o que deveria ter sido feito desde 2003”, afirma Ildo Sauer, ex-diretor de Gás e Energia da Petrobras e um dos principais estudiosos do tema no País. “Renegociei contratos emergenciais imorais da Petrobras. Por que o restante do governo não fez o mesmo, já que custaram ao País 6,2 bilhões de reais? O setor elétrico é uma verdadeira caixa-preta. É preciso saber o caminho que a energia faz desde a geração até a distribuição, e quem está ganhando com isso.”

Presidente da CPI, o deputado Eduardo da Fonte (PP-PE) pediu auxílio ao Tribunal de Contas da União (TCU) e ao Ministério Público Federal (MPF) para que os parlamentares consigam entender o que se passa nos meandros contábeis das companhias. “Notamos que as empresas do setor mandam informações para a Aneel, mas a agência não tem condições de auditar essas informações”, diz o deputado. Fonte diz que, apesar das pressões em contrário do governo no início da CPI, agora os ânimos dos deputados “já são outros”, diante da visibilidade crescente do tema. Dirigentes da Aneel, EPE, Ministério de Minas e Energia, além de outros especialistas no setor já foram ouvidos pela comissão, cujos trabalhos prosseguirão até meados de outubro, caso não haja prorrogação.

Apesar de ser um crítico do atual modelo, Roberto D’Araújo, um dos criadores da ONG Ilumina, chama a atenção para os riscos da comparação com outros -países, nem sempre pertinentes, em decorrência das diferenças existentes tanto na matriz energética (no Brasil, dominada pelas hidrelétricas e termoelétricas) como no ambiente regulatório, impostos e encargos existentes, além dos efeitos do câmbio. Para ele, a simples comparação da tarifa prejudica as análises.

D’Araújo considera, porém, que pode ser produtivo olhar para o caso do Canadá, onde algumas províncias não aderiram à privatização e a matriz elétrica e extensão territorial são parecidas com as brasileiras (quadro à pág. 32). “Ao contrário do que acontece aqui, nas províncias de Quebec e British Columbia, um regulador dita as tarifas e lá, mesmo quando os impostos são descontados, os valores são inferiores aos brasileiros”, afirma. Segundo D’Araújo, no Brasil, a situação é agravada pelos impostos “altíssimos” existentes, especialmente o ICMS, que chega a quase 30% em algumas regiões do País. “Mas aqui também temos os consumidores cativos pagando tarifas altas, enquanto os consumidores livres pagam tarifas irrisórias e ‘surfam’ nas sobras de energia.”

Atualmente, com a abundância de chuvas dos últimos meses, o preço do chamado mercado spot (uma parcela do mercado livre) estava a 16,90 reais o megawatt-hora, muito abaixo do custo de geração, de ao menos 40 reais. D’Araújo critica a dispersão de entidades governamentais responsáveis por administrar, gerir e fiscalizar o setor elétrico, o que representaria custos elevados e pouca eficiência. “Houve melhoras com o novo governo, como a obrigatoriedade dos leilões e o fim do autossuprimento, pelo qual as distribuidoras podiam comprar de geradoras do mesmo grupo, o que distorcia o mercado. Mas, em linhas gerais, o modelo foi mantido.”

Mesmo nos EUA, pátria do liberalismo, existem exemplos para contrariar os defensores do modelo de privatização. Nos estados de West Virginia e Idaho, diz D’Araújo, que mantêm o sistema de “remuneração garantida” da energia, a tarifa custa um terço do valor cobrado no estado de Nova York, que apostou no modelo baseado nos custos de produção, também vigente no Brasil. “O sistema de remuneração garantida não tem nenhuma relação com o fato de a distribuidora ser estatal ou privada. Apesar dos defeitos advindos da possibilidade de se praticar custos exagerados e da imerecida fama de ideologia “estatizante” que ganhou aqui, muitos países ainda o adotam”, afirma.

Superintendente da Aneel, Davi Antunes rebate as críticas, começando pela “tese” de que as tarifas brasileiras estão entre as mais elevadas. “Um levantamento da Agência Internacional de Energia concluiu que o Brasil está em 20º lugar no mundo no ranking das tarifas elétricas”, afirma. Antunes considera que são vários fatores a explicar o custo atual, dividindo-os em parcela A ou “gerenciáveis” e parcela B ou “não gerenciáveis”. Antunes considera inapropriado comparar regiões com realidades tão distintas, como são as do Maranhão e de São Paulo. “Pelo modelo atual, cada concessão tem de se sustentar sozinha. E o Maranhão é um estado grande, com uma população de baixo poder aquisitivo e que está espalhada pelo território, então o custo unitário acaba sendo alto. Já São Paulo possui a maior renda per capita e uma rede madura que atende uma população concentrada na região metropolitana (no caso da concessão da Eletropaulo).”

Na avaliação de Antunes, a Aneel tem recebido críticas indevidas em relação às tarifas, já que cabe à agência seguir as regras do modelo vigente e zelar pelos contratos, mesmo aqueles fechados no modelo anterior. Uma das críticas que se fazem nesse caso diz respeito ao fato de eles serem corrigidos anualmente pelo IGP-M, índice de inflação sensível às flutuações do dólar. Pelo cálculo dos economistas do BNDES, a escolha fez com que as tarifas quintuplicassem de valor entre 1995 e meados de 2008. “Nesses casos, somos apenas o ‘cara’ que entrega a pizza, apenas fazemos a conta, e não é certo dizer que a culpa é de quem faz o cálculo.”

Em sua análise, Antunes toca no calcanhar de aquiles do setor para os próximos anos, a dificuldade de se construírem novas usinas hidrelétricas. Com a presença crescente de termoelétricas movidas a carvão, diesel e gás natural, aumentará também o custo da energia nos próximos anos, avalia o superintendente da Aneel.

Maurício Tolmasquim, presidente da EPE, discorda de que haja uma tendência de alta do custo médio de geração de energia. E cita os números da IEA para se opor também à afirmação de que as tarifas elétricas brasileiras estão muito caras. “O último leilão, com as termoelétricas, é um ponto fora da curva. A tendência de médio prazo é o custo da energia cair. E hoje, descontados impostos e encargos, as tarifas não podem ser consideradas elevadas.” Tolmasquim cita a construção da usina no Rio Madeira e a retomada dos inventários das bacias hidrográficas e licenciamentos ambientais como um indicativo de que o País não corre o risco de perder a vantagem comparativa representada pela hidreletricidade.

A atual legislação ambiental, no entanto, ao restringir a construção dos reservatórios de água, como ocorria até os anos 1970, leva o governo a ter de ampliar a presença das termoelétricas movidas a combustível fóssil. “Apesar de ser algo paradoxal, o aumento das emissões decorrentes das termoelétricas é a contrapartida para a não criação dos reservatórios, que funcionam como uma espécie de poupança de água do País, alguns com capacidade de armazenamento de até três anos.”

Raciocínio semelhante faz Antonio Araújo, presidente da Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE). “O modelo atual está dando certo. Com os leilões e o mercado livre, temos garantia de oferta e espaço para tarifas menores para os grandes consumidores. Mas existem limitações, como é o caso dos contratos, que precisam ser respeitados. O maior custo para o País seria a falta de energia.”

Na CPI das tarifas elétricas também surgiram críticas à atuação da Aneel. A agência teria corrigido indevidamente as tarifas em Mato Grosso, durante a segunda revisão tarifária, ocorrida no ano passado. Estudo do professor Dorival Gonçalves Junior, da Universidade Federal de Mato Grosso, considerou haver “indícios de irregularidades” na correção das tarifas cobradas pela Cemat. Ao repassar aos consumidores os custos relativos às perdas de energia decorrentes, na avaliação de Gonçalves, de equipamentos inapropriados, a Aneel teria errado.

Antunes, da Aneel, diz que considera o estudo em questão “abominável”. “O responsável discorda tecnicamente dos critérios da Aneel e chama a isso de irregularidade.”

(Crédito da foto: Luciana Whitaker/Getty Images)

Fonte: Carta Capital

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