::
por Leonardo Sakamoto
Recife - Em 2008, o Brasil tinha 4,5 milhões de crianças e adolescentes trabalhando – um total 0,7% menor que no ano anterior, mas ainda assustadoramente alto. Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), divulgada nesta sexta pelo IBGE. Aqui no Nordeste, a situação continua a pior, mas seguida de perto pelo Sul do Brasil, que possui uma grande quantidade de jovens trabalhando no campo.
Talvez uma das coisas que mais me assuste é a quantidade de pessoas que acha que colocar crianças para trabalhar desde cedo ajuda em sua formação. Justificam, através de experiências pessoais, mostrando como a labuta lhes ajudou a forjar o caráter. Não quero desmerecer as histórias individuais, provavelmente de superação da pobreza, de muitos. Mas não significa que o fato de alguém ter sobrevivido a um desafio imposto deva levar a todos fazerem o mesmo.
Justificar isso pela tradição também é uma besteira sem tamanho. Muitas coisas acabam se repetindo ao longo dos anos e de gerações não por serem são boas, mas porque não há questionamento firme por parte da sociedade. Ter um Estado que não garanta que todas as crianças fiquem longe do trabalho e que não pune quem se beneficia economicamente dessa exploração pode prejudicar os interesses de alguns – o suficiente para sobrepujar o interesse de muitos. Tradição, nesses casos, é como é chamado o conjunto de justificativas construídas ao longo do tempo para manter um sistema de exploração com a anuência do explorado.
Tempo atrás, a Organização Internacional do Trabalho divulgou um estudo apontando que a maioria das 75 milhões de crianças sem acesso à educação básica começaram a trabalhar em idade precoce.
Baseado em pesquisas realizadas em 34 países, o relatório reconhece que o número de crianças envolvidas em atividades econômicas está diminuindo. Ou seja, o Brasil está seguindo a toada mundial. Isso mostra que, apesar da globalização-salve-se-quem-puder em curso, é possível mitigar o problema. Entre 2000 e 2004, o número de crianças e adolescentes entre 5 e 14 anos economicamente ativos diminuiu em 20 milhões.
Mas ainda restam 165 milhões na mesma faixa etária envolvidos em trabalho infantil, muitos em longas jornadas e expostos a condições insalubres.
O relatório destaca que os altos índices de trabalho infantil estão diretamente associados à queda na qualidade da educação e à desigualdade de gênero em um país. Ou seja, compromete a sua capacidade de desenvolvimento econômico e social. Além disso, os meninos e meninas trabalhadores rurais tendem a estar entre os mais desfavorecidos. E (como era de se esperar de uma humanidade machista) as meninas com frequência têm uma carga dupla de trabalho dentro e fora de casa, o que atrapalha sua escolaridade. Ou seja, na dúvida, a família manda o menino para estudar e deixa a menina com os afazeres domésticos.
A solução, segundo a OIT, passa por garantir educação gratuita e obrigatória, levantar as barreiras existentes contra educação de meninas, garantir rapidamente a capacitação de profissionais da educação, reforçar as leis que punem o trabalho infantil e atacar a pobreza, gerando emprego e renda.
Eu acrescentaria punir rigorosamente as empresas que se beneficiam em sua cadeia produtiva com o trabalho infantil. Laranja, café, roupas… O tempo de ser didático passou, é hora de tomar atitudes mais duras.
O problema, é claro, é aprovar esse tipo de lei no Congresso Nacional. Dia desses, lembrei como o vereador paulistano Agnaldo Timóteo defendeu o trabalho de meninas como prostitutas. No Congresso, propostas bizarras na contramão do combate ao trabalho infantil também são apresentadas com uma facilidade enorme.
Um exemplo: conhecem aquele ditado da pessoa que joga fora o bebê com a água suja do banho? Esse é o caso das propostas de emenda constitucional (PEC) 268/2008 que prevêem a redução da idade mínima para o trabalho legal no país. Elas alteram o artigo 7º da Constituição, que proíbe o trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz a partir dos 14 anos. Diminuem as idades para 14 e 12 anos respectivamente.
Uma das propostas em trâmite é do deputado federal Celso Russomano (PP-SP). Segundo ele já declarou, a alteração pode mudar a vida das crianças e adolescentes que são pedintes nas ruas ou aliciadas para o tráfico. Além disso, afirma, a lei antiga já não contempla a realidade do país e, por isso, precisa ser mudada.
Em bom português, o que ele propõe é o seguinte: já que o Estado e a sociedade são incompetentes para impedir que seus filhos e filhas dediquem sua infância aos estudos e ao desenvolvimento pessoal, vamos aceitar isso e legalizar o trabalho infantil. Por que o trabalho forma o cidadão.
E qual seria o próximo passo quando o mercado e a competição global abocanharem trabalhadores cada vez mais jovens? Reduzir a idade para dez anos? Já que até nosso presidente já minimizou as condições dos cortadores de cana no Brasil, comparando-as com os carvoeiros do século 18 na Europa, por que não adotar os padrões trabalhistas da 1ª Revolução Industrial, com crianças de oito anos encarando o serviço pesado?
Seguindo a linha de raciocínio do deputado, poderíamos legalizar uma série de situações em que há um descompasso entre a lei e a realidade. Deixaríamos de ter, em um passe de mágica, a prostituição infantil (o que agradaria o já citado Agnaldo Timóteo), o trabalho escravo, o tráfico de seres humanos, fora preconceitos de raça, credo e classe. É só jogar por terra conquistas sociais obtidas na base do sangue e suor de gerações.
Russomano disse que “enquanto o jovem estiver ocupado, não terá tempo para se envolver em atividades ilícitas e nem de buscar no crime uma forma de sustento de suas necessidades básicas”. Ótimo! E por que não ocupá-lo com educação, esporte, lazer?
É uma lógica bizarra, tacanha, de que a melhor educação é através do trabalho duro – o que não é verdade. O trabalho pode fazer parte da formação pessoal, desde que não afete o crescimento do indivíduo. Hoje, muitas empresas já empregam pessoas de 14 anos para fazer atividades de gente de 18. Usam como justificativa que treinam aprendizes, mas na verdade usam mão-de-obra barata. Imagine, então, com a anuência constitucional para baixar a idade?
E esta não é a única proposta em trâmite no Congresso para reduzir a idade mínima legal de trabalho. Qual a mensagem que os parlamentares querem passar com isso? Que dessa forma, com menos tempo para se dedicarem a seu crescimento, as crianças serão adultas que saberão o seu lugar na sociedade e trabalharão duro para o crescimento do país, sem refletirem sobre seus direitos, sem criticarem seus chefes e governantes por péssimas condições de vida.
“Arbeit macht frei!” Como diria a frase na porta do campo de concentração de Auschwitz, o trabalho liberta.
Fonte: Blog do Sakamoto
::
Nenhum comentário:
Postar um comentário