quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Aloysio Biondi agora é vizinho de Oswald e Lobato

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Acervo pessoal do jornalista é doado pela família à Unicamp. Jornais, livros e anotações pessoais estarão sob a guarda da universidade para pesquisas, ao lado de produções em que colaborou


Por Aloisio Milani e Pedro Biondi

O acervo pessoal de Aloysio Biondi tem de tudo um pouco da vida de jornalista – pelo menos do que era típico para uma geração analógica. Uma remington esverdeada, anotações pessoais, pilhas sem-fim de informação e um cancioneiro. Na realidade, alguns poucos long-plays. No meio deles, um de Adauto Santos, cantor e compositor meio caipira meio sambista. Com voz de veludo. O disco se chama Nau Catarineta, lançado pela gravadora Marcus Pereira nos idos de 1974. Ano ainda de ditadura. E Biondi escrevia no jornal Opinião.

(Clique na foto ao lado para ver mais imagens. Na mesa, da esq. para dir., estão Antonio Biondi, Carlos Vogt e Alcir Pécora. Nas fotos da família, Pedro, Angela e Beatriz.)

Na contracapa do disco, um círculo de caneta azul marcava a música 2 do lado A. Não há anotação alguma. Só um risco sobre a composição "De mala e cuca", composta por Adauto e parceiros. Sem mais pistas da anotação, a solução é ouvir. Na vitrola: “Cheguei de mala e cuca nessa capital / O carro, a placa, o prédio, a morte no jornal / Fecharam meu sorriso, calaram minha voz / Selaram meu futuro, onde estamos nós? / Estrada, terra e mato. Nuvem de poeira / Levando a minha vida para o meu lugar”. Coincidência ou não, a música parece com o que Aloysio Biondi viveu.

Morto há nove anos, Biondi deixa saudade para quem busca nos jornais um olhar crítico e diferenciado da claque do poder e dos seus governantes. Veio para a vida em 1936 na pequena Caconde, interior de São Paulo. Criou-se em São José do Rio Pardo e se afundou no jornalismo paulistano até o pescoço depois dos 19 anos. Sem diploma em universidade (cursou e não concluiu, na capital, sociologia e política). Mas com sede de informação e conhecimento amplo. Passou pelas principais redações brasileiras. Seus debates públicos lhe deram inimigos e admiradores. Durante a ditadura militar, ganhou dois prêmios Esso de jornalismo na contracorrente. Como escreveu na revista Visão, de 1967, o “clima de fraseado vazio (...) tem o demérito de manter a opinião pública completamente desinformada do que está acontecendo”.

Saber sua trajetória no jornalismo e na vida pública é mais fácil para quem tem mais de 50 anos. Especialmente para alguns – o ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, seus escudeiros Pedro Malan e Gustavo Franco... Para conhecer (ou recordar) um pouco mais, basta acessar o sítio eletrônico do projeto que família e amigos desenvolvem para digitalizar a obra do jornalista – http://www.aloysiobiondi.com.br. Com algumas buscas por palavras-chave, dá para ler um pouco da história brasileira pelo olhar de Aloysio Biondi. Não é pouco...

Chega-se, por exemplo, a um texto do jornal Opinião, de 29 de julho de 1974. “O fio da meada” é o título. Na abertura, Biondi faz uma digressão literária para explicar o novo capitalismo agrícola diante do petróleo em crise. Cita o Marco Zero, do escritor Oswald de Andrade. “O preto caiçara plantava seu arrozinho, comprava fiado na venda do turco, vinha a safra, pagava a dívida — ou deixava 'para o ano', se a colheita era ruim. Surgiu o japonês. Ofereceu financiamento, mandou assinar recibo. A safra foi ruim. O caiçara entregou sua terra em pagamento da dívida, e foi ser empregado do japonês. Nos anos 20”. A história se repetiu para os gaúchos depois. Leia lá no original a continuação.

Hoje em dia, qualquer país tem suas versões oficiais constantemente bombardeadas por registros e contradições de populares e de vozes dissonantes de governos e partidos. Daí a importância de se reler o passado. Acervos de intelectuais formam, assim, mais uma ferramenta para se refletir a cultura, a política e a sociedade. Se em 1974, Biondi citou o modernista Oswald, agora seu arquivo pessoal vai repousar a poucos metros de distância do dele, num centro de documentação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Na assinatura da doação do arquivo de Aloysio Biondi à universidade, no dia 18 de setembro, outras coincidências foram citadas como elos para que o acordo se concretizasse. Uma delas – daquelas felizes, diga-se – revelou-se logo após a cerimônia: o jornalista também será vizinho do escritor Monteiro Lobato, que ele sempre citou como um dos autores cuja obra propiciou sua formação na juventude, particularmente no que diz respeito à perspectiva de desenvolvimento do Brasil como povo, Estado e nação. Juventude? Numa entrevista aparece referência à leitura, aos 8 anos, de O Escândalo do Petróleo e Ferro.

Também Hilda Hist, Brito Broca, Bernardo Élis, Paulo Duarte e o professor que dá nome ao espaço moram ali, no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio (Cedae), ligado ao Instituto dos Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. O Cedae conta com diversas outras memórias, coleções e acervos, que fazem dele um importante centro dedicado às manifestações das línguas faladas no Brasil - além de reunir relevantes fontes para o conhecimento da cultura brasileira e da história recente do país.

"Algumas coincidências foram chave para essa sintonia", disse, sobre a doação, o secretário estadual de Ensino Superior de São Paulo, Carlos Vogt, que responde pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp. Ele listou a convivência com Aloysio Biondi em algumas redações, que permitiu saber mais sobre o acervo do jornalista; o contato com parentes de Biondi em diferentes situações; e a existência de uma linha de mestrado em jornalismo científico, cultural e literário.

Vogt incluiu na lista de coincidências os debates públicos que Aloysio Biondi travou via imprensa com destacados economistas da Unicamp, a exemplo de João Manuel Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzzo: "Foram muitas polêmicas públicas e também, às vezes, alguns consensos". Sempre citada por Biondi como "mestra", Maria da Conceição Tavares foi outra debatedora histórica da casa.

Tais discussões, concentradas no período da ditadura militar, foram lembradas no dia pelo coordenador do projeto coletivo de memória do jornalista, Antonio Biondi. A iniciativa já dura nove anos e é a responsável pela manutenção – ou, em muitos casos, recuperação – do material que o homenageado arquivava. Trata-se de muitas prateleiras de revistas, livros, censos e, principalmente, jornais. "Falo aqui não só por mim, mas em nome de familiares e muita gente que ajudou a organizar a obra do Aloysio até agora", disse Antonio.

"O projeto O Brasil de Aloysio Biondi tem a participação de cerca de 200 pessoas e só eles sabem o que se passou nesses anos em que engolimos muito pó para organizar esse trabalho. Organizamos festas para arrecadar fundos e contamos com muita gente para lançar um site com a obra dele também." Na página eletrônica, estão disponíveis mais de mil textos do jornalista, além de testemunhos, fotos, vídeos e reproduções de originais dos artigos publicados em mais de 20 veículos.

"A importância de Aloysio Biondi para o jornalismo é extremamente grande", analisou Carlos Vogt. "Ele produziu no calor da hora uma obra, O Brasil Privatizado - Um Balanço do Desmonte do Estado (Editora Fundação Perseu Abramo, 1999), que contribuiu muito para entender o processo de transformação do Estado e do país." O secretário do governo Serra concluiu que a doação tem valor tanto pessoal quanto geracional.

O diretor do IEL, Alcir Pécora, elogiou a decisão da família, compartilhada com os participantes do projeto: "Geralmente, no Brasil, os familiares de escritores e personalidades mais atrapalham que ajudam as pesquisas sobre a obra. Então, o que vemos hoje aqui, na doação do acervo do Aloysio Biondi, é um ato de desprendimento, de doação, que vai reverter em mais pesquisas sobre a sua obra, seu legado."

"A doação do acervo é uma forma de dar continuidade ao espírito de luta que caracterizou o trabalho do Aloysio Biondi, que sempre revelou esse engajamento na vida pública pelo jornalismo", complementou o coordenador do Cedae, Jefferson Cano. A seu ver, o acervo também coloca em outro patamar o mestrado relacionado a jornalismo científico, cultural e literário. "Isso abre um novo espaço de discussão e que pode formar uma nova área de pesquisa." Leia entrevista com o professor aqui.

E por falar em continuidade, em 2000 Biondi confidenciou a alunos de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero que pretendia continuar a saga da pesquisa de O Brasil Privatizado. O foco seria num dos setores que mais o incomodavam nos últimos tempos: o do petróleo, que teve destaque em sua leitura. Qual a função da estatal Petrobras? Quais as artimanhas para entregar essa riqueza à iniciativa privada? Qual a conta que todo brasileiro deveria fazer para saber por que o governo deveria ser o grande explorador das reservas? Seria ouro para uma nação que discute novas leis para os recém-descobertos campos do pré-sal. Já no que ele produziu se encontram muitos elementos para o debate.

Voltando à doação: assinado o documento, agora cumpre somente transportar o material de São Paulo para Campinas - tarefa que as equipes do Cedae e do projeto em memória do jornalista pretendem encaminhar o quanto antes. Enquanto isso, o armário deslizante de número 17, adquirido recentemente pelo centro de documentação, recebe os últimos ajustes antes de acolher o acervo de Biondi. Fica para o leitor a pergunta - até o momento não respondida, sequer pela história: afinal, coincidências existem?

Fonte: Carta Capital




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