quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A volta do copo d'água

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Parece que para alguns formadores de opinião e para dirigentes do PSDB a metáfora da pedra e do lago, ou melhor, numa avaliação mais realista, do copo d’água, está de volta. Só assim se pode explicar considerações de que um dos “derrotados” no primeiro turno desta eleição é o presidente Lula, e ao mesmo tempo o “vitorioso” é o governador José Serra.

Era uma vez um lago. A pedra, nossa heroína, caía no lago. As ondas concêntricas se preparavam. Encrespando-se, derramavam-se pelo lago, levando a mensagem da pedra até os confins das distantes margens. Ali chegavam aos borbotões, impregnando até a areia com sua boa nova.
Que bonito! Lembram-se dessa metáfora? Pois ela explicaria a fenomenal vitória que Geraldo Alckmin deveria ter obtido nas eleições presidenciais de 2006. Alckmin era o favorito dos eleitores tidos como os “mais” pelos “analistas dos formadores de opinião”. Mais o quê? Não importa. Podia ser “os mais ricos”, “os mais instruídos”, “os mais lidos”, “os mais de S. Paulo”, “os mais do Sudeste”, ou sei lá eu o quê.

Nesta metáfora, até então acalentada por muitos de nossos conservadores “formadores de opinião”, o Brasil é uma cebola de círculos concêntricos que vão do melhor para o pior, do adiantado para o atrasado, do moderno para arcaico, da elite para o povo, do Centro para o Norte, do branco para o preto, do homem para a mulher, e assim por diante.

A eleição de 2006 e seu resultado botou em crise a metáfora e os analistas. O lago revelou-se um copo d’água. As ondinhas foram e bateram no muro do povão, que não levou a sério a atravancada comédia de desempenhos midiáticos e performáticos que iam de próceres do então PFL e do PSDB às margens concêntricas do PSOL, marchando ombro a ombro contra a cidadela de Lula.

Agora, vendo-se as eleições municipais deste ano de longe, parece que para alguns formadores de opinião (vide o artigo de Gilson Caroni nesta página) e para dirigentes do PSDB a metáfora da pedra e do lago, ou melhor, numa avaliação mais realista, do copo d’água, está de volta.
Pois só assim se pode explicar considerações de que um dos “derrotados” no primeiro turno desta eleição é o presidente Lula, e ao mesmo tempo o “vitorioso” é o governador José Serra.

O foco narrativo desta metáfora é o que aconteceu em Rio e S. Paulo, “nervo ótico” ou outro nervo qualquer da nação, cuja “tendência” fatalmente se espraiará pelos demais “atrasados” rincões brasileiros em 2010.

Vamos aos fatos, que são mais interessantes do que essa pobre metáfora que, diga-se de passagem, não tem culpa no cartório diante do uso que fazem dela.

Em S. Paulo, Carta Maior já apontara, tempos atrás (V. S. Paulo: uma estrela em ascensão”, 14/08/2007), que Kassab era um político em busca de luz própria, e mais ambicioso e eficaz do que parecia à primeira vista e do que apenas uma pobre sombra de Serra na vice-prefeitura. Diante do portal que se lhe abriu com a defecção do ex-prefeito que, aliás, abriu mão de sua palavra, pois prometera ficar no mandato até o fim, Kassab começou a buscar projeção com avidez, e conseguiu. Emplacou logo de saída a lei da regulamentação do visual de S. Paulo, o que lhe rendeu dividendos imediatos.

É certo que o governados José Serra alavancou sua candidatura com seu apoio. É claro que isso traz ações na bolsa política ao governador, para o futuro, ainda mais num momento em que o DEM (ex-PFL) definha a olhos vistos em todo o país. Mas o festejo de que isso é uma “vitória” de Serra, além de sublinhar o desejo subliminar de tais análises, qual seja, o de que ele de fato se torne o moinho de vento diante do qual os quixotes lulistas afinal se abatam, põe na sombra a principal semântica sobre este imbróglio ou virado à paulista. Qual seja, a de que Serra, assim como em 2006 traiu sua palavra empenhada em 2004, ele agora traiu o candidato de seu partido, dele vingando-se implacável e exemplarmente. De certo modo, traiu seu próprio partido, mas como este rachou em torno da ex-dupla Alckmin-Serra, uma parte deve estar roendo o próprio fígado e a outra deve estar, como o abutre de Prometeu, comendo o fígado da outra.
Pensar que o PSDB agora está unido porque apoiou de imediato Kassab (sem a presença de Alckmin) para o segundo turno é uma chalaça mental.

No Rio a história é diferente (ver blogue do Emir e matéria de Maurício Thuswol nesta página). A ausência de um projeto de esquerda, ou melhor, da esquerda, ou melhor ainda, das esquerdas em conjunto, abriu caminho para a consolidação, no segundo turno, de um caminho que mais parece uma avenida de duas pistas e de mão única.

Vão se enfrentar o neo-populismo do neo-converso ao cabralismo, Eduardo Paes, e o neo-udenismo do há tempos neo-coroinha da sacristia tucano-pefelista, Fernando Gabeira. É pena. Gabeira está jogando fora sua biografia, mas isso ele vem fazendo há tempos, em troca de outra, a de um político afinal de contas conservador. Ele tem suas razões, e do ponto de vista político-biográfico interessa menos fazer observações morais ou moralistas sobre essa trajetória, que Gabeira tem o direito de empreender, e muito mais pensar como o bombeiro já estava presente no DNA do incendiário, para nos valermos de metáforas do jaez da do lago, ou melhor, copo d’água.

O estilhaçamento das esquerdas não é exclusividade do Rio, é claro. Se somarmos os percentuais de voto das três candidatas de esquerda em Porto Alegre com os votos de Fogaça, haverá empate técnico, com uma pequena vantagem para a soma das três. Claro, há os 5 % dados a Onyx Lorenzoni, e os pequenos percentuais de outros candidatos. Mas parece não passar pela cabeça de quase ninguém dos diretamente envolvidos nas disputas das esquerdas que a própria fragmentação retira votos potenciais que poderiam ser trabalhados os conquistados se houvesse pelo menos um pacto político de saída, uma aliança forte desde o começo, ao invés do tradicional pensamento de que “la gauche c’est moi”, o que traduzindo para termos brasileiros, significa que “esquerda” é quem está sentado comigo na banco da frente da Kombi (desculpem a metáfora anacrônica), porque quem está no banco de trás já faz parte de uma vil ala traidora dos verdadeiros ideais revolucionários.

Em termos de lideranças interessa começar a reverter essa tendência, que se consolidou nas próprias disputas internas do PT gaúcho, disputadas nos últimos anos com inaudito amargor e extremo acirramento, seguido de derramado desencanto e contundente ressentimento, mas de pouca reflexão interna sobre os próprios erros e lacunas. Rossetto (o candidato derrotado na prévia do PT por uma margem mínima de votos) e Manuela D’Ávila (a candidata do PcdoB) deveriam se lançar numa cruzada virtuosa pela união das esquerdas, capaz de trazer os votos das hostes de Luciana Genro, uma vez que esta, é claro, vai preferir, como já declarou, ficar sentada olhando para a quina do cantinho da parede, ou melhor, se debatendo dentro do próprio copo d’água. Só um impulso desta natureza poderá reunir as forças capazes de talvez superar os votos de Fogaça, quem sabe, mas seguramente de reverter a fragmentação das esquerdas nesta cidade que foi a primeira capital do século XXI, colocando-a no agora ritmo de sua própria periferia, onde as esquerdas avançam significativamente, além de em outros lugares do estado.

Entrementes, brindemos ao defenestramento do ranheta ACM Neto do segundo turno em Salvador.

*Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.

Fonte: Agência Carta Maior

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