segunda-feira, 6 de outubro de 2008

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por Uri Avinery

“Temos de chegar a um acordo com os palestinos. A essência desse acordo é que realmente temos de nos retirar de quase todos, se não de todos, os territórios ocupados. Devemos conservar em nossas mãos uma porcentagem desses territórios, mas somos obrigados a dar aos palestinos porcentagem similar, porque, sem isso, não haverá paz.”


“Quanto à Síria, precisamos, antes de tudo, de uma decisão. Duvido que haja sequer um israelense sério que creia que seria possível fazer a paz com a Síria, sem, no final, devolver as colinas de Golan.”

“O Iran é um imenso poder (…). Pretender que EUA e Rússia e China e Inglaterra não sabem como lidar com os iranianos, e que os israelenses saberiam, e que essa seria tarefa de Israel é exemplo de perda completa do senso de proporção.”

O testamento do primeiro-ministro*

Uri Avnery

Na língua hebraica coloquial em Israel, quando alguém descobre algo que todos já sabem, dizemos: “Bom-dia, Elijahu! Só contaram p’ra você!”

Por que Elijahu, não sei. Mas hoje bem se pode dizer: “Bom-dia, Ehud Olmert! Só contaram p’ra você!”

Foi o que eu disse a mim mesmo, ao ler a sensacional entrevista que Ehud Olmert concedeu essa semana, na véspera do Ano Novo Judeu, ao jornal Yediot Aharonot.
Ao final da carreira política, depois de renunciar ao posto de primeiro-ministro, enquanto aguarda que Tzipi Livni organize um novo governo, Olmert disse coisas espantosas – não por serem espantosas, elas mesmas, mas por virem da boca de Olmert.

Para os que não tenham lido, eis o que ele disse:
• “Temos de chegar a um acordo com os palestinos. A essência desse acordo é que realmente temos de nos retirar de quase todos, se não de todos, os territórios ocupados. Devemos conservar em nossas mãos uma porcentagem desses territórios, mas somos obrigados a dar aos palestinos porcentagem similar, porque, sem isso, não haverá paz.”

• “… inclusive Jerusalém. Com soluções especiais, que já visualizo, para o Monte do Templo e os locais sagrados históricos (…) Quem pensar em conservar todo o território, que pense em manter 270 mil árabes contidos por trás de muros, dentro de um Israel soberano. Não funcionará.”

• “Fui o primeiro a querer impor a soberania de Israel sobre toda Jerusalém. Admito. Não estava preparado para considerar todas as profundas complexidades da realidade.”

• “Quanto à Síria, precisamos, antes de tudo, de uma decisão. Duvido que haja sequer um israelense sério que creia que seria possível fazer a paz com a Síria, sem, no final, devolver as colinas de Golan.”

• “O objetivo é traçar, pela primeira vez, uma fronteira precisa entre Israel e Palestina, uma fronteira que todo o mundo [reconhecerá].”

• “Assumamos que nos dois próximos anos eclodirá uma guerra regional e haverá confronto direto com a Síria. Não há dúvida de que teremos de nos bater “coxa contra coxa” [alusão a Juízes 15:8, que prossegue: “e haverá grande matança”.] (…) [Mas] o que acontecerá, quando vencermos? (…) Por que ir à guerra com os sírios, para obter o que podemos obter sem pagar tão alto preço?”

• “Qual foi a grandeza de Menachem Begin? [Ele] mandou Dayan encontrar-se com Tohami [emissário de Sadat] no Marrocos, antes mesmo de ele próprio encontrar-se com Sadat (…) e Dayan disse a Tohami, em nome de Begin, que estávamos dispostos a nos retirar de todo o Sinai.”

• “Arik Sharon, Bibi Netanyahu, Ehud Barak e Rabin, bendita seja sua memória (…), cada um deles deu um passo para nos guiar na direção certa, mas em algum ponto do tempo, em alguma encruzilhada, quando precisaríamos de uma decisão, a decisão não foi tomada.”

• “Há alguns dias, participei de uma discussão com os principais cabeças do processo de tomada de decisão. Ao final [disse a eles]: ouvindo-os falar, entendi por que não fizemos a paz com os palestinos e os sírios durante os últimos 40 anos.”

• “Podemos, parece-me, dar um passo histórico nas relações entre Israel e Palestina, e um passo histórico nas relações entre Israel e Síria. Nos dois casos, temos de tomar a decisão que nos recusamos a encarar, olhos bem abertos, durante 40 anos.”

• “Quando você senta-se em sua poltrona, deve perguntar-se: para onde aponto o meu esforço? Para construir a paz ou para ser cada vez mais forte, mais forte, mais forte, para vencer a guerra? (…) Nosso poder é imenso, suficiente para enfrentar qualquer perigo. Agora, é chegada a hora de buscar meios para usar essa infra-estrutura de poder na direção de construir a paz, não de vencer guerras.”

• “O Iran é um imenso poder (…). Pretender que EUA e Rússia e China e Inglaterra não sabem como lidar com os iranianos, e que os israelenses saberiam, e que essa seria tarefa de Israel é exemplo de perda completa do senso de proporção.”

• “Li as declarações dos ex-generais israelenses e disse: como é possível que nada tenham aprendido e nada tenham esquecido?”

MINHA PRIMEIRA reação foi, como já disse: “Bom-dia, Ehud Olmert! Só contaram p’ra você!”
Lembrei-me de um amigo já falecido, o poeta Yebi. Há uns 32 anos, depois de dúzias de cidadãos árabes-israelenses serem assassinados numa manifestação contra a expropriação de suas terras, Yebi procurou-me triste e desesperado e gritou: temos de fazer alguma coisa. Decidimos depositar coroas de flores nos túmulos dos assassinados. Lá nos fomos, nós três: Yebi, eu e o pintor Dan Kedar, que morreu na semana passada. Nosso gesto desencadeou uma tempestade de ira contra nós, de proporções que eu jamais vira antes e nunca mais vi depois.
A partir daquele dia, cada vez que alguém em Israel dizia algo a favor da paz, Yebi gritava: “E onde estava ele (ou ela) quando levamos aquelas flores ao cemitério?”

É questão natural, mas irrelevante. Olmert, que durante toda a vida combateu o que nós dizíamos, começa, aparentemente, a concordar conosco. Isso é o que realmente importa. Nada de “Bom-dia, Ehud Olmert. Só contaram p’ra você”. Hoje se trata de “Bem-vindo, Ehud".
É verdade que dizemos há 40 anos o que Olmert disse hoje. Mas não éramos primeiro-ministro de Israel, no cargo.

É verdade, também, que muito mais gente disse exatamente o que sempre dissemos, por exemplo, os que redigiram o “Esboço de Tratado de Paz do Grupo da Paz”, o documento de Nusseibeh-Ayalon ou a Iniciativa de Genebra. Mas não eram primeiro-ministro de Israel, no cargo.

Aí, afinal, está o que realmente importa.
Não esqueçamos: ao tempo em que essas idéias cristalizavam-se na mente de Olmert, ele ativamente favorecia o crescimento das colônias, sobretudo em Jerusalém Leste.
Por isso, surgiu em Israel uma pergunta inevitável: Olmert estará sendo sincero? Será que crê no que diz? Estará, mais uma vez, sendo oportunista, como sempre foi? Estará, como de hábito, tentando algum tipo de manipulação?

Dessa vez, tendo a acreditar nele. Pode-se dizer: a letra é boa, mas a melodia… Parece-me que, dessa vez, letra e música são importantes. A coisa toda soa como o testamento de um homem demitido no final de sua carreira política. Há algo de filosófico, aí – a confissão de um homem que, por dois anos e meio, ocupou o cargo máximo, no campo das decisões políticas em Israel; absorveu lições, aprendeu e tirou conclusões.

Sempre se pode perguntar: Mas por que esse pessoal só chega a conclusões aproveitáveis quando estão limpando as gavetas, quando já pouco podem fazer para implementar as boas idéias que tenham? Por que Bill Clinton só pensou em formular novas propostas para a paz Israel-Palestina nos últimos dias de mandato, depois de desperdiçar oito anos em jogos e manobras irresponsáveis? Por que Lyndon Johnson só admitiu que a Guerra do Vietnam havia sido um erro terrível desde o início, depois de o próprio Johnson ter agido de modo a provocar a morte de dezenas de milhares de norte-americanos e de milhões de vietnamitas?

A resposta superficial pode ser encontrada no caráter da vida política. Um primeiro-ministro salta de problema em problema, de crise em crise. Vive exposto a tentações e pressões externas e ao estresse interno, a lutas dentro de sua coalizão de poder, a intrigas de gabinete. Não tem nem o tempo nem o distanciamento necessários para tirar conclusões.

Os dois anos e meio do mandato de Olmert foram repletos de crises, da Segunda Guerra do Líbano, pela qual foi responsável, às investigações sobre corrupção que o absorveram completamente. Só agora, afinal, está tendo tempo e talvez esteja encontrando o equilíbrio filosófico necessários para tirar conclusões.

Aí está o que realmente interessa daquela entrevista: ali fala alguém que, por dois anos e meio esteve no centro dos processos nacional e internacional de tomada de decisões, alguém que foi exposto a pressões e intenções de todo tipo, que manteve contato pessoal com os líderes do mundo e com os líderes palestinos. Um homem normal, nada brilhante, que jamais foi pensador profundo, nunca; um homem sempre prático, que “viu coisas, lá, que não se vêem daqui”.
Olmert apresentou um Relatório da situação da Nação, sumário da realidade em Israel depois de 60 anos de existência do Estado israelense e de 120 anos da empreitada sionista.

Há, sim, imensos buracos naquele sumário. Não critica a política sionista impingida a cinco gerações de israelenses – mas ninguém, em sã consciência, poderia esperar tal crítica vinda de Olmert. Nenhuma empatia com os sentimentos, as aspirações e o sofrimento do povo palestino. Nenhuma menção ao problema dos refugiados (sabe-se que Olmert estaria pronto para receber de volta alguns poucos milhares de refugiados, sob o princípio da “reunião das famílias”). O sumário tampouco declara que Israel é responsável pelo crime de ampliar as colônias. É longa a lista das omissões.

A base primitiva da visão de mundo de Olmert não mudou. Vê-se claramente, num parágrafo espantoso que lá está: “Cada grão de terra, do Jordão ao mar, que tivermos de devolver, queimará nossos corações (...) Quando se cava ali, o que se encontra? Discursos do avô de Arafat, ou do bi-tri-tetra-avô de Arafat? Não. Ali só se encontram memórias históricas do povo de Israel!”

É completo nonsense. Não há um único elemento de pesquisa histórica ou arqueológica que confirme essa idéia. Olmert apenas repetia frases soltas que ouve desde a infância; apenas manifestava impressões pessoais. Alguém que creia nesse tipo de ideologia dificilmente falaria sobre demolir colônias ilegais e construir a paz.

Pois ainda assim, tudo isso considerado, o que há nesse testamento?
Há o divórcio inequívoco e final: um homem que cresceu em lar sobre o qual tremulava o lema “Toda a Israel”, do grupo Irgun, separa-se daquele passado que se manifesta no mapa do Irgun: Israel, nos dois lados do Jordão. Para aquele homem, o slogan “Isso e sempre isso” converteu-se em “Qualquer coisa... menos isso”.

O testamento dá completo e inequívoco apoio à divisão de Israel. Dessa vez, a adesão ao princípio de “Dois Estados para dois povos” parece ser mais genuína, não só conversa nem só golpe de mão. A idéia de que se “fixem as fronteiras definitivas do Estado de Israel” é completa revolução, contra o pensamento sionista.

Olmert já dissera que o Estado de Israel estaria “acabado” se não concordasse com a divisão, por causa do “perigo demográfico”. Dessa vez, não invocou o velho demônio. Agora, fala como israelense que pensa sobre o futuro de Israel como Estado progressista, construtivo e pacífico.
Essas novas idéias manifestam-se não como antevisão de um futuro remoto, mas como plano para o presente. Exige uma decisão, a ser tomada imediatamente. É quase como se dissesse: Dêem-me mais alguns poucos meses, e farei. E faltou dizer que os palestinos estão preparados para esse momento de virada histórica.

Além disso, o testamento fixa uma posição israelense a partir da qual não há retrocesso possível nas negociações futuras.
É o testamento do primeiro-ministro atual, dirigido, obviamente, ao futuro primeiro-ministro.
Não se pode saber se Tzipi Livni está preparada para implementar esse novo plano, nem o que pensa do testamento de Olmert. Sim, ultimamente, ela tem exposto idéias assemelhadas, mas está apenas chegando ao caldeirão que é o gabinete do primeiro-ministro. Impossível adivinhar o que fará.

Desejo-lhe, como voto de chegada, sobretudo, que, ao final do mandato como primeira-ministra de Israel, Livni não se condene a apresentar-se à nação apenas para, ela também, pedir desculpas por ter deixado passar a oportunidade histórica de construir a paz entre Israel e Palestina.

* URI AVNERY, “Summing up”, 4/10/2008, em Gush Shalom [Grupo da Paz], na internet, em http://zope.gush-shalom.org/index_en.html. Tradução de Caia Fittipaldi. Reprodução por internet autorizada pelo autor e pela tradutora, desde que citada a fonte. Copyleft.

Fonte: Blog do Bourdoukan

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