segunda-feira, 13 de outubro de 2008

A China quer os mares

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GEOPOLÍTICA

Cada vez mais influente no plano econômico, Beijing age para estender sua força também no terreno militar. Um plano estratégico cuidadosamente executado visa expandir seu poderio naval. Obstáculos: as ambições do Japão e da Índia e, numa segunda etapa, a temível 7ª Frota dos EUA

por Olivier Zajec

Em 2006, Daguo Juequi (A ascensão das grandes potências), um documentário da Televisão Central Chinesa (CCTV), teve sucesso estrondoso [1]. Rigorosa e baseada em entrevistas realizadas com historiadores e dirigentes internacionais, a produção explica como os impérios de Portugal, Espanha, Holanda, França, Inglaterra, Alemanha, Japão, Rússia e Estados Unidos se constituíram, prosperaram e, por fim, desmoronaram.

A empolgação popular com esse documentário, exibido em 12 episódios de 50 minutos, é bastante compreensível. Segundo avalia o seu idealizador, Qian Chengdan, professor da Universidade de Pequim: “A ‘raça’ chinesa está revitalizada e, com isso, volta à cena mundial” [2].

Daguo Juequi destaca, principalmente, os esforços das grandes potências no setor naval, no decorrer do seu processo de ascensão. A abertura para o exterior, o controle de importantes corredores marítimos e de pontos de apoio em áreas de águas profundas, além do domínio tecnológico, do aperfeiçoamento dos seus instrumentos de ação e de sua influência naval são fatores encontrados nas estratégias da maior parte dos “modelos” estudados, qualquer que tenha sido a importância da sua população ou a extensão do seu território.

Em 2000, essa característica passou a ser incluída entre os novos eixos prioritários do governo chinês com o plano de Alta Tecnologia Marítima, que propõe a expansão exponencial do poderio da marinha do Exército Popular de Libertação (M-EPL).

Desse ponto de vista, rompendo com um discurso histórico que permaneceu ideologizado ao longo de décadas por obra do Partido Comunista Chinês (PCC), a série Daguo Juequi revela o pragmatismo extrovertido de uma potência em pleno desenvolvimento, dedicada a influir de maneira “harmoniosa” e “pacífica” (duas palavras-chaves da nova política oficial) nas relações internacionais. Abrir a China para o mundo e, sobretudo, o mundo para a China, tal parece ser o credo da nação liderada por Hu Jintao.

Muito mais que a apropriação das riquezas em hidrocarbonetos ou em peixes do único mar da China meridional, o que importa é o acesso da frota chinesa ao alto-mar, conforme os planos traçados em meados dos anos 1980

Em 2007, num esforço de diplomacia naval sem precedentes, os navios chineses não apenas efetuaram visitas oficiais a portos franceses, australianos, japoneses, russos, cingapurenses, espanhóis e norte-americanos, como participaram de manobras internacionais de luta contra a pirataria marítima, que está recrudescendo.

A ambição que visa priorizar o “soft power” deve ser colocada numa perspectiva que leva em conta o cenário regional e expressa duas estratégias centrais. A primeira diz respeito às reivindicações territoriais sobre Taiwan e, de maneira mais ampla, sobre o perímetro das águas territoriais chinesas, que define a Zona Econômica Exclusiva (ZEE). Da satisfação dessas pretensões depende o livre acesso aos vastos espaços oceânicos do Pacífico e aos corredores marítimos do Sudeste Asiático, para além da península indochinesa. A segunda estratégia é a proteção das rotas marítimas de abastecimento em hidrocarbonetos, para um país que se tornou o segundo maior importador mundial de petróleo.

Neste exato momento, a primeira dessas metas é determinante. Pequim já conseguiu firmar um acordo amigável com 13 vizinhos [3] em relação aos contenciosos fronteiriços terrestres, restando apenas a oposição do Butão e da Índia. Em contrapartida, segundo explica Loïc Frouart, da delegação para os Assuntos Estratégicos do ministério da Defesa francês, “em toda a sua extensão, os 14,5 mil quilômetros de limites marítimos constituem áreas de crises potenciais e de tensões. Neles, os contenciosos são profundos e não-resolvidos” [4]. Ao todo, Pequim reivindica o domínio pleno sobre 4 milhões de quilômetros quadrados de mar.

No caso de Taiwan, as autoridades chinesas estão particularmente decididas a recuperar sua soberania, “se necessário com uso da força”. A China, por meio da rápida expansão do poderio de sua própria marinha e da redução, ainda que muito relativa, das diferenças em relação à US Navy, a marinha norte-americana, planeja acompanhar psicologicamente a evolução “inelutável” que deve conduzir ao retorno pacífico de Taiwan à pátria-mãe.

Mas a ilha é apenas uma das peças desse xadrez marítimo. A China questiona o Japão sobre a posse das ilhas Diaoyu (Senkaku, em japonês), que abrigam uma base norte-americana. Tóquio, por sua vez, insiste que a sua Zona Econômica Exclusiva ocupa uma extensão de 450 quilômetros a oeste do arquipélago. As reivindicações chinesas explicam-se também pelos interesses em jogo, que ampliam a dimensão do conflito, tais como uma jazida que poderia conter até 200 bilhões de metros cúbicos de gás. A China também disputa com Taiwan, Vietnã, Filipinas, Malásia, Brunei e Indonésia a soberania sobre as ilhas Spratly (Nansha, em chinês) e sobre o arquipélago das Pratas (Dongsha, para os chineses). E vem disputando com Vietnã e Taiwan o domínio do arquipélago das Paracel (Xisha).

Numa primeira etapa, a marinha quer dominar a costa chinesa, projetando-se até o Japão e a Indonésia. Em seguida, o plano é uma segunda bacia, que inclui Taiwan o onde haverá provável oposição da U.S. Navy

O mundo já esqueceu que os chineses sempre se mostraram extremamente reativos. Durante os anos 1950, a marinha da China recuperou, por meio da força, quase todas as ilhotas do litoral que estavam sob o controle dos nacionalistas de Tchang Kaichek. Em 1974, aproveitando-se da derrota do Vietnã do Sul, ela apoderou-se das Paracel. E em 1988, assumiu o controle do arrecife Fiery Cross, que vinha sendo ocupado pelos vietnamitas. Baseando-se nesses precedentes, os países da região – todos, aliás, seus antigos vassalos e tributários – mostram-se temerosos diante das ambições navais reafirmadas por Pequim.

Muito além da apropriação das riquezas em hidrocarbonetos ou em peixes do único mar da China meridional, o que de fato importa é o acesso da frota chinesa ao alto-mar, conforme os planos traçados em meados dos anos 1980 por Liu Huaqing [5]. Trata-se, numa primeira etapa, de se impor, sem contestação marítima possível, a oeste de uma “linha verde” que vai do Japão até a Malásia, passando por Taiwan e pelas Filipinas. A principal concorrente da China é a marinha japonesa, que Pequim já começou a “testar” por meio de repetidas incursões submarinas – uma das quais resultou num incidente envolvendo um submarino nuclear chinês em 2004.

Na fase seguinte, Pequim tentará forçar essa linha de defesa imaginária e descontínua, com o objetivo de passar das águas pouco profundas do mar da China do Leste e do mar da China do Sul para as águas azuis de uma segunda bacia, que se estende do Japão à Indonésia. O principal obstáculo para a projeção do poderio chinês será a 7ª Frota norte-americana, que vive patrulhando Taiwan. Aliás, Ko Chen-heng, então vice-ministro taiwanês da Defesa, denunciou em janeiro de 2008 a intensa atividade da marinha chinesa nos arredores da passagem de Bashi, um gargalo muito estreito situado entre Taiwan e as Filipinas.

Uma vez que os chineses tiverem resolvido essas primeiras questões regionais, poderão se dedicar mais livremente à segunda meta estratégica, que consiste em garantir a segurança dos corredores de abastecimento em hidrocarbonetos no sul da Ásia. A primeira dessas rotas é utilizada pelos navios petroleiros de menos de 100 mil toneladas, vindos da África e do oriente Médio, até o mar da China do Sul, passando pelo estreito de Malaca. Vinda das mesmas regiões de produção, a segunda rota conduz os petroleiros gigantes através dos estreitos da Sonda e de Gaspar [6]. A terceira rota parte da América Latina e passa pelas águas filipinas. A quarta rota, que constitui um trajeto alternativo a partir do oriente Médio e da África, serpenteia entre os estreitos de Lombok e de Macassar, as Filipinas e o Pacífico oeste, até alcançar os portos chineses.

O principal gargalo que “estrangula” estes corredores de abastecimento é o estreito de Malaca, por onde passariam 80% dessas importações de petróleo. Em caso de conflito, o domínio sobre a área é um fator de preocupação. Para remediar o problema, Pequim tenta diversificar seus acessos. Em primeiro lugar, desenvolvendo uma rede ferroviária que conecta os países da Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean); em segundo concretizando o projeto de oleoduto direto sino-birmanês, entre Sittwe e Kunming [7]; em terceiro, auxiliando o desenvolvimento das capacidades de produção em alto-mar de gás natural líquido no Sudeste Asiático, especialmente em Mianmar e na Tailândia, e até mesmo cavando um canal através do istmo de Kra, região ao sul da Tailândia marcada por uma insurgência islâmica endêmica.

Uma desconfiança tenaz separa China e Índia. Aspirando também ao mesmo status de potência regional com vocação global, Nova Déli expande sua frota, cujo objetivo estratégico declarado é fazer do Índico “o oceano dos indianos”

Ao mesmo tempo, Pequim vem construindo o “colar de pérolas”, uma série de bases permanentes distribuídas ao longo das orlas do Oceano Índico e das rotas marinhas que conduzem ao estreito de Malaca: Marao, nas Maldivas; as ilhas Coco, em Mianmar; Chittagong, em Bangladesh e Gwadar, no Paquistão. Está previsto também o envio de tropas para o litoral africano, que vem se mostrando sempre mais aberto aos investimentos chineses.

Além dos Estados Unidos – convencidos de que o Pacífico será o palco estratégico mais importante, no decorrer dos próximos 50 anos –, a China tem dois rivais consideráveis nesta região do mundo: a Índia e o Japão. Uma desconfiança tenaz separa os dois gigantes demográficos: não foi a China que apoiou durante tanto tempo o Paquistão, na questão da Caxemira? E não é ela que segue fornecendo a Islamabad seus principais equipamentos de combate? Aspirando ao mesmo status de potência regional com vocação global, movida por ambições marítimas equivalentes, Nova Déli vem se dotando de uma frota em expansão, cujo objetivo estratégico declarado é fazer do Índico “o oceano dos indianos”. Neste contexto a estratégia do “colar de pérolas” de Pequim é considerada uma grave intrusão.

As relações sino-japonesas, por sua vez, acabam de passar por um período extremamente tenso. Poderosa e bem mais moderna do que a frota chinesa, a marinha nipônica há muito vem mantendo parceria com a sua homóloga americana. Mas o conflito a respeito das ilhas Senkaku revelou um Japão nervoso, atrapalhado em su- as ações por causa de uma Constituição pacifista, a qual vem sendo criticada internamente por uma vertente nacionalista em expansão, e indeciso diante das iniciativas atrevidas de Pequim.

Além de Nova Déli e de Tóquio, a investida chinesa preocupa igualmente outros protagonistas mais modestos, da Malásia à Indonésia, passando por Cingapura. Eles temem que Washington, atualmente atolada no Iraque e no Afeganistão, deixe o caminho livre para a afirmação da soberania chinesa na região e que essa perda de influência se torne permanente.

Conscientes dessa oportunidade, as bases navais chinesas, os portos fluviais, os diques e as bases submarinas protegidas vão se multiplicando e se modernizando, acompanhando a explosão econômica de uma nação cujo comércio exterior depende 90% das rotas marítimas. Todos os sistemas mais importantes estão envolvidos nesse processo: cada uma das três frotas (os almirantados do Leste, em Xangai; do Sul, em Zhanjiang; e do Norte, em Qingdao) dispõe de uma divisão aeronaval própria, dotada de bombardeiros e de caças. No campo das naves anfíbias, empreendeu-se um grande esforço para concretizar as ambições chinesas sobre as ilhas Spratly e Taiwan. Dragadores de minas, patrulheiros lançadores de mísseis e novos navios cargueiros e petroleiros de abastecimento também foram encomendados. Os chineses contam, para isso, com a participação de países estrangeiros: dos catamarãs de alta velocidade WPC australianos aos destróieres Sovremenny e aos submarinos Kilo russos; dos sistemas de combate italianos e franceses aos canhões navais holandeses [8].

Há 400 anos, os chineses deixaram escapar a oportunidade de obter hegemonia mundial nos oceanos. Orgulhosos, não querem perder a segunda chance. Qual será o futuro das águas agitadas do Sudeste Asiático? Os Estados Unidos multiplicaram as iniciativas

A China importa, copia, adapta e, boa parte das vezes, melhora os equipamentos que mais lhe interessam. Entretanto, em determinados setores — como os da guerra eletrônica, dos motores e dos sistemas de combate embarcados de melhor desempenho — ela permanece dependente de países estrangeiros, principalmente da Rússia.

O problema é que a China não dispõe, até hoje, de nenhum porta-aviões, apesar dos rumores persistentes segundo os quais estaria sendo reformado o Varyag, comprado de Moscou. Os submarinos ocupam um lugar essencial no programa marítimo global de Pequim. Apenas submersíveis modernos teriam condições de dissuadir a 7ª Frota norte-americana. Os chineses poderiam contar com cinco submarinos nucleares de ataque (SNA) e com um submarino lançador de artefatos (SLDA), o qual é conhecido por transportar entre 12 e 16 mísseis balísticos nucleares de alcance de 3.500 quilômetros. Além disso, o país dispõe de cerca de 30 submarinos movidos a diesel e a eletricidade. Mais de 20 novos submersíveis estariam sendo construídos.

A ambição marítima chinesa parece proceder da frustração de uma potência orgulhosa, que deixou passar a oportunidade de dar a guinada para a hegemonia mundial há 400 anos. Qual será o futuro das águas agitadas do Sudeste Asiático? Os Estados Unidos multiplicaram as iniciativas para consolidar os intercâmbios e a cooperação com as marinhas indiana e japonesa, mas não se esqueceram dos chineses – sem dúvida para tentar controlar, na medida do possível, uma expansão que todos pressupõem ser fulgurante.

A mais recente oferta foi efetuada pela Global Maritime Partnership Initiative (Iniciativa de parceria marítima global), que busca desenvolver uma aliança marítima mundial. Apresentada pela marinha norte-americana em 2007, a proposta convida cada um dos “aliados” – entre os quais a China – para dar sua contribuição para uma “frota de mil navios” destinada a lutar contra a pirataria. Mas não há certeza alguma de que a China aceite tais propostas “enquanto não tiver conseguido identificar as segundas intenções desse acordo e suas múltiplas implicações a longo prazo” [9].

O país parece estar decidido a não permitir que nenhuma manobra retire sua segunda chance histórica de se desenvolver como uma potência marítima global e soberana. O “perigo amarelo”, como era chamada a ameaça representada pelo Japão durante a Segunda Guerra Mundial, desponta hoje como uma fantasia. Mas nem por isso a China, que não se esqueceu da Guerra do Ópio nem da pilhagem do Palácio de Verão [10], permitirá que qualquer nação a ameace ou a force a se submeter. Para tanto, ela se cerca de certas “precauções”. Ainda que suas capacidades estejam muito longe de superar as da frota norte-americana, a história serve como advertência para a nova marinha chinesa. Cada uma das suas realizações assume um valor simbólico. Em 1989, vinte anos antes do crescimento fulgurante da frota, a primeira embarcação da marinha do Exército Popular de Libertação a visitar oficialmente os Estados Unidos foi um navio de treinamento, o Zhang He. Na época, ninguém se preocupou em comentar seu nome. O almirante eunuco Zhang He comandou a poderosa frota da dinastia Ming, no século 15.

[1] Os vídeos podem ser baixados na internet, numa seção especial do site da CCTV. Para acessá-la (traduzida do chinês pelo Google), clique aqui Os vídeos podem ser baixados na internet, numa seção especial do site da CCTV. Para acessá-la (traduzida do chinês pelo Google), clique [aqui->

[2] Joseph Kahn, “China, shy giant, shows signs of shedding its false modesty”, New York Times, 9 de dezembro de 2006.

[3] Afeganistão, Mianmar, Butão, Coréia do Norte, Rússia, Mongólia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Paquistão, Nepal, Laos, Vietnã

[4] La Revue de défense nationale et de sécurité collective, Paris, maio de 2007.

[5] Alexandre Sheldon-Duplaix, “La Marine de l’armée populaire de libération, de 1949 à nos jours”, Revue historique des armées, n° 230, Paris, 2003.

[6] O estreito da Sonda separa as ilhas de Java e Sumatra. O estreito de Gaspar separa as ilhas de Bangka e de Belitung, na Indonésia.

[7] Sittwe situa-se na orla ocidental de Mianmar; Kunming é um porto do Yunnan, no sul da China.

[8] Bernard Dreyer, “La montée en puissance maritime de la Chine”, Défense, Paris, dezembro de 2005.

[9] Li Cheng e Scott Harold, “China’s new military elite”, China Security, Washington, volume 3, n° 4, outono de 2007.

[10] Guerras visando introduzir o comércio do ópio na China, inicialmente conduzidas pelos ingleses (1839-1842), e depois por uma aliança franco-britânica (1858-1860). Foi responsável pela pilhagem do Palácio de Verão do imperador (outubro de 1860).

Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil

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