quarta-feira, 8 de outubro de 2008

A agricultura familiar brasileira entre identidade(s) e democracia

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Ao pretender se tornar um espaço público de construção de políticas voltadas para a agricultura familiar, a Primeira Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário se converteu num interessante laboratório para a análise desse novo formato de “fazer” política pública nacional.

A Primeira Conferência de Desenvolvimento Rural Sustentável e Solidário (ICNDRSS), ocorrida ao final de junho em Olinda (PE), é, sem dúvida alguma, um acontecimento relevante. Primeiro, porque ela conseguiu reunir quase três mil representantes de diferentes segmentos da agricultura familiar e levantar problemáticas importantes nas mais diversas dimensões.

Segundo, porque, ao pretender se tornar um espaço público de construção de políticas públicas nacionais voltadas para a agricultura familiar, a Conferência se converteu num interessante laboratório para a análise desse novo formato de “fazer” política pública nacional.

E, terceiro, porque o desafio plantado era, e continua sendo, considerável, conforme o Ministro Guilherme Cassel que, em seu discurso de abertura, apontou que a ambição da Conferência era preparar as políticas públicas de “segunda geração” destinadas a dar um salto qualitativo, apesar dos resultados já conseguidos, no sentido da redução das desigualdades e do aumento da produção familiar.

Não cabe aqui retomar a descrição de como se deu o processo de construção da Conferência, que teve vários encontros territoriais e estaduais, mas apenas apontar a importância do acontecimento e levantar algumas interrogações referentes a ele.

Um dos destaques do evento foi a reivindicação de novas identidades dentro do âmbito da agricultura familiar brasileira, o que se revelou na defesa do parágrafo 97 do documento-base da Conferência, que propõe o desenvolvimento rural para uma população rural diversa: “um novo projeto de desenvolvimento rural sustentável e solidário deve reconhecer efetivamente as diferenças étnico-raciais, de gênero, de geração, entre outras que caracterizam o Brasil, bem como a existência de desigualdades em um país ainda marcado pela exclusão, preconceito étnico-racial e distribuição social no tratamento entre homens e mulheres, e entre as diferentes populações, povos e etnias.

Neste sentido, as políticas públicas devem dar um tratamento adequado às mulheres (cuja jornada de trabalho é dobrada) e também a crianças, jovens, idosos e pessoas com necessidades especiais, assim como aos povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades tradicionais, população de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, tansgêneros e transexuais no meio rural”.

As categorias citadas, que não deixam de surpreender, apontam, contudo, para o reconhecimento das diferenças dentro do universo social da agricultura familiar brasileira e também para os processos de exclusão no bojo mesmo deste universo. Houve, portanto, um avanço no debate nacional, na tentativa de sair da polarização agronegócio versus agricultura familiar e enfrentar a questão da diversidade dentro da própria agricultura familiar. Isso não quer dizer que a tensão entre agricultura familiar e agronegócio tenha sido superada, e sim que essa polarização não foi o foco na Conferência. Esta introspecção é um processo novo, e merece toda atenção.

A situação sugere algumas reflexões: será que o reconhecimento da diversidade da agricultura familiar não irá reduzir as forças que garantiram tantos avanços às políticas voltadas ao segmento? Isso porque, nessa nova configuração, a agricultura familiar, além da disputa com o agronegócio, baseado na concentração de terra e capital, expõe agora disputas internas. Reconhecer a diversidade é saudável - não há dúvidas sobre isso - mas pode introduzir o risco de que esse movimento venha fragilizar o próprio segmento da agricultura familiar na sua plenitude.

Ao abrir a caixa-preta da agricultura familiar, evidencia-se também a pergunta sobre a coesão desta categoria socioprofissional, que abrange desde famílias rurais em situação de extrema pobreza - sofrendo de invisibilidade institucional - até estabelecimentos prósperos de agronegócio, e sobre a própria identidade da agricultura familiar com respeito à diversidade da sociedade rural e da sociedade brasileira como um todo. Ao final, indaga-se: o que é mesmo a agricultura familiar brasileira? É uma pergunta importante, corajosa, cuja resposta é certamente fundamental para a evolução futura tanto dos movimentos sociais quanto das políticas públicas voltadas para este segmento.

Outro elemento de destaque tem a ver com o rigor incontestável do processo democrático que regeu o funcionamento da Conferência. Ela se apresentou como um importante espaço de diálogo, num processo que teve início ainda em 2007, com os eventos preparatórios para o encontro nacional. Consta que o documento elaborado por uma equipe técnica contratada pelo MDA deu o pontapé inicial no texto que deve compor a política nacional voltada para agricultura familiar.

Este documento foi aos poucos sendo modificado, nos encontros locais, conforme as interpretações e necessidades dos diferentes segmentos que compõem a agricultura brasileira. Assim como as mulheres, os indígenas e o movimento cooperativo solidário, vários segmentos foram para o evento nacional organizados, mobilizados e com estratégias específicas para assegurar que o texto final acrescentasse suas reivindicações. Tal fato demonstra que a Conferência foi entendida por estes grupos como um espaço legítimo de contribuição e de influência nas políticas públicas nacionais. Seguramente, tudo isso representa um avanço para a democracia nacional.

A mobilização e a organização dos diferentes segmentos que compõem a agricultura familiar, em alguns locais, estão sendo desencadeadas e, em outros, fortalecidas pelo processo de construção democrática. Destacou-se na Conferência a convivência harmoniosa entre os diferentes segmentos, sendo que a grande maioria das emendas ao documento da Conferência corresponde a acréscimos e não à revogação ou substituição de artigos.
Mesmo tomando em conta que no encontro nacional era a terceira ou quarta vez que os delegados liam e propunham alterações ao documento, não se justifica totalmente o acontecido.

Por outro lado, o formato ampliado de construção de políticas públicas presente no sistema da Conferência Nacional não deixa de apresentar alguns riscos, como, por exemplo, induzir a uma nova forma de clientelismo entre o Estado e os grupos da sociedade civil que participam dos espaços públicos. Isso porque alguns grupos, muitas vezes, acabam usando o reconhecimento de legitimidade do espaço público como moeda de troca para garantir o fortalecimento das suas organizações. Esta situação merece atenção, pois revela uma assimetria entre os segmentos da agricultura familiar quanto à sua capacidade de discussão com o Estado: de um lado produtores bem inseridos nos processos de elaboração de políticas públicas e de outro lado um segmento de produtores invisíveis sem poder de articulação com os gestores públicos.

Outra interrogação sugerida pela Conferência tem a ver com os resultados concretos deste processo consultivo. Parece não haver dúvida, tanto por parte do MDA, quanto da sociedade civil, de que o documento elaborado durante a Conferência resultará numa política nacional. Mas, embora o MDA tenha tido massiva presença e empenho na organização da Conferência, com a participação destacada da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), outros Ministérios não estavam mobilizados da mesma forma, e muitos mandaram representantes com pouca expressão política. Cabe observar que o presidente da República não esteve presente ao evento, nem o ministro da Agricultura, nem o chefe da Casa Civil, nem o ministro do Planejamento. A ausência dos representantes desses órgãos estratégicos de decisão pública sugere que ainda existe uma importante disputa a ser travada dentro do próprio Executivo nacional, para a transformação em políticas públicas dos princípios pautados no documento elaborado, cabendo ao MDA conduzir este processo.

Destacou-se também durante a Conferência a tênue fronteira entre o Estado e a sociedade civil, principalmente exposta pelos discursos dos representantes dos movimentos sociais e do Executivo nacional. Assim, nos discursos de abertura, tanto a sociedade civil quanto o MDA clamaram por “Reforma Agrária”. Não surpreende que a sociedade civil faça essa reclamação, mas chama a atenção o mesmo tom no discurso do representante do Estado, uma vez que o poder público tem obrigação de dar respostas, principalmente se considerarmos que o espaço público é, de fato, reconhecido como legítimo pelos demais setores do governo. Isso remete à necessária negociação interna no governo, já mencionada anteriormente. No Governo Lula muitos representantes da sociedade civil passaram a compor quadros do Executivo nacional; no entanto isso não suprime o fato de que ambos estão em posições diferentes, configurando responsabilidades distintas, especialmente por parte do Estado.

Mas, não podemos terminar essas breves considerações sem salientar outros aspectos, muito positivos, como a participação de 42% de mulheres e 4% de jovens até 24 anos entre os delegados. Esses dados revelam um avanço da participação desses grupos, tendo em vista que, embora tenham grande importância na agricultura brasileira, nunca houve uma mobilização específica para que participassem politicamente. Consta que no processo de indicação de delegados para a Conferência havia um pré-requisito de um mínimo de 30% de mulheres, de forma que a ação teve resultados para além do esperado. Também é importante salientar que a participação de vários segmentos da agricultura familiar brasileira enriqueceu o debate, que, por conta disso, esteve atento às diferenças regionais, como as longas distâncias vivenciadas pelos representantes do Norte e a seca anualmente enfrentada pelos sertanejos. Do mesmo modo, as diferenças econômicas foram também mencionadas.

*Philippe Bonnal é pesquisador do CIRAD – Centre de Coopération Internationale de Recherches Agronomiques pour le Développement (França), pesquisador convidado do CPDA/UFRRJ e do OPPA.

**Silvia A. Zimmermann é Engª Agrônoma, Doutoranda CPDA/UFRRJ e Assistente de Pesquisa do OPPA.

Fonte: Agência Carta Maior

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