terça-feira, 17 de junho de 2008

De olho nos mananciais

por Milene Pacheco


A cruz, feita de galhos de árvore, já estava cravada no chão de terra quando o garoto de pouco mais de dez anos terminou de preencher a cova com a ajuda de uma enxada. A silenciosa cerimômia em homenagem ao vira-lata de um dos meninos que acompanhavam o ritual é interrompida por um grupo de fotógrafos. Morreu de quê? “De vírus”, respondem com convicção. A alguns passos do túmulo, restos de lixo brotam, como tiririca em campos úmidos, nas margens da Represa Billings. O maior reservatório de água da região metropolitana de São Paulo abastece a casa de 1,5 milhões de paulistas.

“Ali perto da água tem televisão, privada, de tudo. Vem com a gente”, anuncia com pose de gente grande um dos meninos, depois de descobrir o objetivo dos fotógrafos, que participavam da “Expedição Fotográfica De Olho nos Mananciais”. Os 20 curiosos, agasalhados até os dentes para se proteger do frio, fazem parte da campanha organizada pelo Instituto Socioambiental para fortalecer a relação dos paulistanos com suas fontes de água. Cerca de 2.000 pessoas participaram das expedições pelas represas da zona sul da Grande São Paulo. As fotos tiradas na expedição devem ser publicadas em um livro e expostas, no próximo ano. (Clique na foto acima para ver mais imagens)

Os meninos do bairro Jardim Monte Verde se distraem com o grupo, que, desenfreadamente, aponta suas lentes para todos os cantos da comunidade. Os garotos pousam para as fotos, contam histórias de cadáveres atirados na água e lembram do tempo em que nadavam na represa. “Eu? Entrar aí? Nem pensar. Tá tudo poluído”, comenta o garoto mais falante. Nem todos na região são prudentes como ele. Os canos que despejam esgoto doméstico diretamente nas águas e os blocos de lixo espalhados nas margens não são suficientes para intimidar os moradores. Carentes de espaços para o lazer, muitos ainda se banham na represa. Outros até pescam para o consumo próprio.

Apesar da Lei de Proteção dos Mananciais, que impede a ocupação no espaço de 50 metros das margens, casas e barracos contornam a silhueta da represa. Seus donos temem a próxima remoção que pode acontecer a qualquer momento. Na última ação da prefeitura, 97 famílias foram retiradas. “Alguns tiveram suas casas derrubadas enquanto trabalhavam. Chegaram aqui e viram tudo no chão”, conta Maria Inês P. de Oliveira Santiago, coordenadora geral das 36 ONGs da região.

As contradições saltam aos olhos no bairro que, em pleno século XXI, ainda enfrenta problemas básicos, como a falta de saneamento. Bem perto da represa, uma escola pública foi construída. “Se a gente não pode construir aqui por causa dos mananciais, eles também não podem”, afirma um dos moradores que acompanham a expedição. A escola, de onde se avista a imensidão da represa, não tem água encanada como pelo menos 40% das famílias, segundo o presidente da Associação Comunitária do Jd. Monte Verde e Adjacencias. Em terra de ninguém, cada um se vira como pode. “Quem não tem puxa de quem tem”, explica um morador, apontando para uma mangueira grossa no chão por onde passa a água desviada.

Pelo labirinto de ruas íngremes, o grupo segue aos olhos dos moradores, curiosos em saber o que fazem aquelas caras novas na área, munidas com tamanha parafernália fotográfica. “Vamos sair na Globo?”, pergunta um senhor com uma porta de ferro nas costas. “Fotografa o meu filho também”. Na quitanda, o vendedor não mede as palavras. “Tirar foto todo mundo tira, comprar que é bom, nada”, desabafa o senhor de barba, intimidando um dos fotógrafos a comprar um saco de mexericas.

Quem coordena o grupo pelas ruas embarreadas pelas chuvas dos últimos dias é o fotojornalista João Wainer, neto do jornalista Samuel Wainer. “No workshop, tentei mostrar que numa comunidade pobre como essa é preciso ser muito mais psicólogo do que fotógrafo. É mais importante saber como chegar na pessoa do que o próprio ato de fotografar”, explica João, acostumado a trabalhar nas periferias brasileiras. “Às vezes, só uma troca de olhar já lhe dá o aval para tirar a foto de alguém”.

A comunidade recebe o grupo com hospitalidade. Muitos até fazem poses para sair nas fotos. Na escola pública, próxima à represa, um grupo de meninos planta bananeiras, dançam e dão cambalhotas para a câmera do publicitário Rony Costa. “Agora todo mundo deitado no chão em círculo. Não, assim não. Tira o dedo do olho. Um, dois, três e já”, dá as coordenadas às crianças (clique para ver a galeria de fotos), que não se incomodam com tantas ordens.

“Vocês é polícia. Tá tirando foto dos marginal, aé”, diz um jovem, acompanhado por seus amigos na saída da escola. Os fotógrafos não falam muito, citam o projeto rapidamente, sorriem e continuam tirando fotos do grupo, enquanto caminham em direção ao portão. “Vocês não é polícia, não, né?”, questiona o jovem com uma mistura de dúvida e brincadeira na voz.

No Jardim Monte Verde, que, de verde não tem quase nada, a água leitosa, de cor acizentada, que escorre pelas ruas cheias de lixo, irriga as hortas comunitárias espalhadas pela comunidade. A fronteira entre o lixão, onde moradores garimpam materiais recicláveis para a venda, e as hortas é praticamente invisível. Os canais de esgoto a céu aberto impressionam quem nunca viu de perto situação tão precária como essa.

“E pensar que eu me irritava com um risquinho minúsculo na parede da minha casa. Como somos mesquinhos”, diz incomodada Andrea Ricciardi. A bancária, de 38 anos, confessa que estava com medo de visitar o bairro por causa da história que ouviu na televisão dos jornalistas capturados e torturados numa favela do Rio de Janeiro. “A experiência está sendo muito boa para mim. Imaginava uma coisa totalmente diferente. Menina, cada carrão que tem por aí”, comenta com a repórter.

“Zazá, agora virou candidata? Se virou, vou te dar a mão”, ironiza um rapaz de dentro de um bar. Zazá não é política, mas faz parte da Associação Comunitária. Assim como Inês, faz o tipo mãezona da comunidade. “Tirar foto, eu também tiro”, desdenha um outro homem que caminha pela rua. A coordenadora não gosta do comentário. Graças à união das Ongs e à perseverança da Associação, o bairro alcança, pouco a pouco, algumas conquistas. Depois de muito insistir, conseguiram, pox exemplo, trazer a Vigilância Sanitária para tratar da epidemia de meningite no bairro.

Antes de partir de volta a São Paulo dos arranha-céus e ruas asfaltadas, uma paradinha para o café na casa de Zazá. A mulher de sorriso expressivo acomoda o grupo em seu quintal e bota a água pra ferver. “Um instantinho e já fica pronto”, anuncia com um entusiasmo difícil de negar, mesmo que seja, só um golinho de café.

Fonte: Carta Capital
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