por Virgílio Arraes
No duplo quatriênio da política externa republicana, houve uma característica que sobressaiu bastante: a presença de mercenários nas frentes de guerra, ainda que sem compor diretamente as linhas de combate. Destinados em sua maioria à tarefa de segurança em áreas oficialmente controladas por governos títeres, aliados dos Estados Unidos, seus empregadores aproveitam-se da indefinição do status jurídico deles perante as autoridades judiciais norte-americanas, iraquianas e afegãs.
Isto permite uma desenvoltura sem precedentes no labor cotidiano e, por conseguinte, abusos contra a população iraquiana são constantes. Em setembro do ano passado, seguranças de uma delas atiraram contra 17 civis em Bagdá ao confundi-los com insurgentes. O dramático episódio não impediu, no entanto, que a empresa assinasse novos contratos com diversos entes do governo norte-americano como Guarda Costeira e Marinha.
Ao mesmo tempo, a indefinição do status possibilita às companhias contratantes flexibilidade no cumprimento da legislação trabalhista, visto que não se define se seria aplicada a dos Estados Unidos ou a do Iraque, por exemplo.
Embora os recrutados sejam bastante bem pagos, dado que são, de preferência, contratados reservistas – se possível, de tropas de elite -, não há normalmente assistência médica para os inválidos, nem seguro de vida para as famílias. Ataques a comboios são freqüentes e baixas também. No caso, a circulação seria autorizada pelas forças armadas, encarregadas de supervisionar o grau de periculosidade das áreas ocupadas, de forma que a responsabilidade se torna difusa.
No Iraque, em mais de cinco anos, o número de mortes de mercenários – somado aos dos demais terceirizados, ou seja, civis - ultrapassa o milhar, enquanto o de feridos supera os 13 mil. Com o objetivo de escapar da responsabilidade de indenizações de monta, as empresas justificam-se perante os tribunais com o seguinte argumento: elas atuam, em tese, sob diretriz do Departamento de Defesa, de modo que, isoladamente, não poderiam ser processadas – evoca-se, sob a luz do direito, a subjetividade da razão de Estado. Assim, a segurança do território e da população estaria acima de interesses individuais ou de pequenos grupos. Determinados eventos não poderiam sequer ser invocados publicamente, em virtude do sigilo de certas operações. Aceita a justificativa das companhias, a jurisdição passaria para outra instância, por envolver questões de segurança nacional.
Outro aspecto refere-se ao fato de que muitos contratos de trabalho não são assinados no território norte-americano - como, por exemplo, nas ilhas Caimão, colônia britânica, próxima de Cuba – e tampouco são executados lá, no caso Iraque e Afeganistão. Na prática, há um intricado entrelace entre questões trabalhistas e militares.
Além do mais, em decorrência do resultado da eleição presidencial em novembro, tais companhias procuram diversificar o seu ramo de atuações. Assim, uma das opções relaciona-se com o combate a terroristas vinculados ao narcotráfico, sob a supervisão de Washington. A maior parte das atividades seria executada no exterior.
Isto aprofundaria os laços comerciais com as grandes indústrias armamentistas e permitiria a elas atuar também fora da região médio-oriental. Nesse sentido, a América Latina é considerada o melhor mercado, especialmente por causa de países como Bolívia, Colômbia – onde o governo estadunidense deve gastar com elas mais de meio bilhão de dólares – e México, onde por meio do Plano México pretende-se aplicar cerca de um bilhão e meio de dólares.
Uma das vantagens deste tipo de terceirização é diminuir o desgaste da imagem governamental norte-americana. Ao mesmo tempo, dificulta-se a possibilidade de acompanhamento por parte do Congresso e ameniza-se a dificuldade de deslocar muitos efetivos militares, em vista dos percalços para novos recrutamentos. A princípio, a missão é proteger companhias multinacionais desdobradas essencialmente em atividades extrativas – petróleo e mineração.
Com o passar do tempo, podem dedicar-se a treinar agentes policiais de alto nível ou mesmo a prover a segurança de autoridades. Uma outra área interessante para elas, desde que o governo Bush passou a ampliar o raio de terceirização, refere-se às atividades de informação e contra-informação.
Ao contratar funcionários aposentados das agências de espionagem, como da CIA, por exemplo, as empresas adquirem um desembaraço jamais observado na história norte-americana ao agregar diversas atividades outrora consideradas exclusivamente de Estado. Como diziam os antigos romanos: quem guardará os guardiões?
Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais da UNB.
Fonte: Correio da Cidadania
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