Por Marcelo Salles (*)
A decisão do Conselho de Promotores do Rio Grande do Sul de pedir a extinção do MST só encontra paralelo nas ditaduras mais sombrias. Seu entulho autoritário já serviu de base para oito ações contra os sem-terra, entre elas despejos violentos e proibição de manifestações pacíficas. Nesta terça-feira (24/6) a sede nacional do movimento, em São Paulo, foi invadida pela polícia, que levou 16 computadores e documentos importantes. São fatos inconcebíveis num Estado Democrático de Direito.
A recente ofensiva contra o MST teve início em 4 de março, quando 900 camponesas ocuparam uma fazenda ilegal da empresa Stora Enso, no Rio Grande do Sul. As trabalhadoras protestavam contra o monocultivo de eucalipto praticado nas instalações da transnacional, da mesma forma que haviam feito na Aracruz Celulose dois anos antes. A ação fez parte da Jornada de Lutas das Mulheres Sem Terra. Às vésperas do Dia Internacional da Mulher, 60 camponesas tiveram seus corpos marcados por ferimentos causados pelas tropas da Brigada Militar e duas foram presas.
Em abril, a juíza Patrícia Rodriguez Whately, a pedido da Vale do Rio Doce, arbitrou multa de R$ 5 mil contra João Pedro Stédile a cada vez que ele se manifeste em público ou que o MST promova ocupações para denunciar a violenta exploração capitalista que coloca o Brasil entre os países mais injustos do mundo. Segundo Stédile, que não se calou, os 10% mais ricos recebem 23,5 vezes mais que os 10% mais pobres. E de tudo que é produzido, 60,9% fica com os donos do capital e 39,1% com os trabalhadores – proporção que já foi de 50% a 50% na década de 1960.
É a partir daí que devemos compreender as agressões jurídicas contra o MST. Além de alfabetizar e organizar os trabalhadores pobres, reforçando sua auto-estima e mostrando que eles são sujeitos de sua própria história – o que por si só já representa grande ameaça aos donos do poder – o Movimento dos Sem-Terra está na linha de frente da resistência contra a exploração capitalista. Foi o MST quem deu visibilidade à campanha pela anulação da privatização da Vale do Rio Doce, que pertencia ao povo brasileiro e foi entregue à iniciativa privada por um preço aviltante. É o MST quem chega e afirma que o agronegócio é inimigo da humanidade; que o latifúndio é inimigo do trabalhador; e que as corporações de mídia são sócias da violência.
Por tudo isso o MST vem sendo demonizado. Como no mito do Paraíso Perdido, de John Milton, os militantes sem-terra são identificados como Lúcifer, o anjo rebelde. No mito, Lúcifer não se torna o inimigo número 1 do poder central porque é cruel, mesmo porque em nome de Deus se fizeram as Cruzadas, cujos métodos de conquista são conhecidos pela violência desmedida; Lúcifer não é expulso do Céu em razão de ser um sádico torturador, até porque muitos juízes não se preocupam em punir torturadores, sobretudo nesse pedaço de terra chamado Brasil; por fim, o diabo não se torna inimigo por ser corrupto, essa virtude tão cara ao sistema capitalista. Lúcifer se torna o símbolo da maldade quando se recusa a obedecer a uma norma, quando desafia o poder hegemônico; diz não àquele que tudo vê, tudo sabe, tudo pode.
O mito de John Milton serve como analogia perfeita. Os militantes sem-terra são demonizados não porque supostamente violentos, baderneiros e corruptos, como afirma a mídia hegemônica. Os militantes sem-terra são enquadrados dentro do arquétipo da maldade porque ousam dizer “não”. O MST diz não à privatização da Vale do Rio Doce; diz não ao monopólio do eucalipto, diz não às sementes transgênicas, diz não ao latifúndio, diz não ao agronegócio, diz não à violência policial contra negros e jovens. Ou seja, recusa-se a aceitar o conjunto de normas que fundamenta o projeto capitalista para o Brasil.
Eis o grande crime do MST: dizer não ao sistema que tudo vê, tudo sabe, tudo pode. Pela rebeldia, enfrentará a fúria dos setores que lutam pela manutenção da exploração do povo brasileiro. Pela justeza de sua causa, receberá o apoio de milhões de brasileiros que ainda não perderam a capacidade de se indignar frente às injustiças. Seremos todos diabos sem-terra. Juntos, vamos lutar e vencer. Como disse outro diabo, o Santo Agostinho: “A esperança tem duas filhas lindas: a raiva e a coragem. A raiva do estado de coisas e a coragem para mudá-lo”.
(*) Marcelo Salles é jornalista, editor do Fazendo Media (www.fazendomedia.com).
Nenhum comentário:
Postar um comentário