por Marina Silva * - Adital -
Embora pareça paradoxal, nossa situação é bem melhor porque somos questionados sobre o futuro. Quando somos perguntados sobre o passado, estamos diante do quase irremediável. Sobre o futuro, temos a chance de projetá-lo. Isso implica dizer o que vamos fazer com nossa biodiversidade, porque temos 20% das espécies vivas do planeta; com nossos recursos hídricos, porque temos 11% da água doce disponível, 80% dos quais na Amazônia; com a maior floresta tropical e com a maior diversidade cultural do mundo. O Brasil ainda tem cerca de 220 povos indígenas que falam mais de 200 línguas.
Essa é uma poderosa interpelação porque permite escolhas e, portanto, exige que estejamos à altura da oportunidade de optar. A discussão é de caráter civilizatório, não se esgota em circunstâncias ou polêmicas pontuais. O Brasil é uma potência ambiental e humana e não pode se conformar em querer, séculos depois, a mesma trajetória que fez dos países desenvolvidos, ricos, porém com graves desequilíbrios ambientais. Nossa meta deve ser: desenvolvidos, porém por meio de caminhos diferentes.
A diferença está, em primeiro lugar, em aceitar a interpelação ética a que me referi, sem tentar lhe dar respostas banais e evasivas. A falsa polêmica em torno da demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, resume a radicalidade exigida por essa interpelação.
Como ministra do Meio Ambiente enfrentei, ao lado dos ministérios da Justiça e do Desenvolvimento Agrário, uma situação no Pará em que um grande grileiro apossou-se de 5 milhões de hectares na Terra do Meio. Conseguimos criar nessa área a maior estação ecológica do país, com 3 milhões e 800 mil hectares. Vi a Polícia Federal implodir 86 pistas clandestinas usadas para tráfico de drogas e roubo de madeira. E nunca ninguém disse que aquele grileiro era ameaça à soberania nacional. Mas os 18 mil índios de Roraima são assim considerados por alguns e muitas vezes tratados como se fossem mais estrangeiros do que os estrangeiros, porque sequer são reconhecidos como seres humanos em pé de igualdade com os demais.
Um exemplo: o mundo ocidental tem em Jerusalém um ponto de referência do sagrado para inúmeras religiões de matriz judaico-cristã. Ficaríamos chocados se alguém quisesse destruí-la e a defenderíamos como algo que é constituinte essencial de nossa cosmovisão. No entanto, em relação à cosmovisão dos índios, acha-se pouco relevante considerarem o Monte Roraima o lugar da origem do mundo.
Pode parecer, para quem acompanha o caso de Raposa Serra do Sol, que a criação da reserva indígena foi um procedimento autoritário e injusto, que desconsiderou direitos dos não-índios. Não é verdade. A legislação brasileira define detalhadamente critérios para demarcação. O contraditório é garantido por decreto, exigindo que sejam anexados, ouvidos e examinados os argumentos contrários. Manifestam-se proprietários de terra, grileiros, associações, sindicatos de trabalhadores ou patronais, prefeituras, órgãos públicos estaduais e federais, apresentando tudo o que considerem relevante. Por isso, a demarcação física das áreas leva, em geral, muitos anos, o que elimina quaisquer possibilidades de açodamento.
Roraima tem cerca de 400 mil habitantes num território de cerca de 225 mil quilômetros quadrados. A população rural não chega a 90 mil pessoas, das quais 46 mil são indígenas, ou seja, 52% do total, ocupando 47% das terras. Raposa Serra do Sol ocupa 7,7% da área do Estado e abriga 18 mil índios. Por outro lado, seis rizicultores ocupam 14 mil hectares em terras da União. Em maio último, o Ibama autuou a fazenda Depósito, do prefeito de Pacaraima, Paulo César Quartiero, por ter aterrado duas lagoas e nascentes, além de margens de rios, e por ter desmatado áreas destinadas à preservação permanente e à reserva natural legal.
Em 1992, quando foi homologada a reserva Ianomami, seis vezes maior do que a Raposa Serra do Sol, houve muito estardalhaço, alimentado pela acusação de que isso representaria ameaça à soberania nacional e grave risco de internacionalização da Amazônia. Passados 16 anos, a reserva abriga 15 mil índios em área de fronteira e não se tem notícia de que tenham causado qualquer dano à nossa soberania e muito menos que pretendam ser uma "nação indígena" separada do território brasileiro, como diziam à época os opositores da homologação.
Estamos perto da decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação contínua de Raposa Serra do Sol. Será um grande desafio para a instituição e para todo o País, num momento que o mestre Boaventura de Souza Santos chama de bifurcação histórica. Diz ele que as decisões do STF condicionarão decisivamente o futuro do país, para o bem ou para o mal. Que esta decisão seja parte da resposta que devemos dar à interpelação ética sobre nosso futuro.
É muito especial para mim estrear no território dos internautas, por meio de Terra Magazine, a quem agradeço pela oportunidade. Espero dedicá-la a um bom diálogo com as críticas e idéias de todos vocês. Também é especial por acontecer num momento novo, no Brasil e no mundo, que exige conhecimento, sensibilidade e intuição para identificar, na massa impressionante de informações que nos chega, a profundidade dos fatos e processos, a conexão entre passado e futuro, enfim, o nosso espaço de escolhas reais, sejam individuais ou coletivas.
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* Professora de História, senadora pelo PT do Acre e ex ministra do Meio Ambiente
Fonte: Adital
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