quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Quando foi que Jornalismo e Humanismo deixaram de ser sinônimos?

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por Luiz Carlos Azenha


Aconteceu -- e eu duvido que alguém consiga dizer exatamente quando.

Há quem jogue a culpa na vitória do Google sobre a reportagem. O "gúgle", como um entrevistado que ouvi em um telecentro de uma estação de metrô de São Paulo definiu a ferramenta de buscas mais conhecida da internet, de fato se tornou o melhor amigo dos jornalistas. E, ainda que indiretamente, contribuiu para a perda da capacidade de "ouvir" dos repórteres. As novas tecnologias ajudaram a desumanizar o jornalismo e criaram nas redações os idiotas da objetividade, incapazes de perceber que há dramas humanos por trás das notícias.

Há quem jogue a culpa no novo perfil dos jornalistas. Quando comecei a carreira, como repórter-carteiro de um jornal de Bauru, em 1972, eu era filho de um comunista remediado. Éramos todos "remediados". Mesmo o "seo" Moreno, o editorialista do Jornal da Cidade, que odiávamos por ser um tremendo reacionário, escrevia suas catilinárias de um ponto-de-vista que hoje seria definido como de um "populista de direita". Nenhuma afetação dos quatrocentões do Estadão.

Éramos, de certa forma, todos representantes dos deserdados. Um dos redatores era gay, numa época em que ninguem saia do armário. Outro, um professor, vociferava "contra o sistema". "Sistema" era a ditadura militar. O diretor do jornal era um sindicalista ferroviário que havia sido cassado pelos militares. O dono do jornal, um empresário bem sucedido, se conformava em empregar aquela plebe rude. Não havia muita escolha. Nós éramos "jornalistas".

Hoje, como sempre enfatiza o Leandro Fortes, a Globo, a Folha e a Veja formam os seus próprios "monstrinhos". São os meninos e meninas da classe média, do Google, dos seriados americanos que passam na TV a cabo. São esses os jornalistas de hoje. As redações se "profissionalizaram". Os idiotas da objetividade venceram.

No tempo do futebol pelo rádio uma jogada dependia mais do narrador do que da classe do centroavante. Eram ataques fulminantes, defesas espantosas, o futebol no Philco lá de casa era muito mais vivo que o jogado na grama esburacada do estádio "Alfredo de Castilho". Hoje, os narradores da SporTV nos enchem de estatísticas. O que importa que no confronto entre Santos e Corinthians o Santos tenha vencido 188 vezes -- contra 123 vezes do Corinthians -- se na partida que está sendo jogada AGORA, que é a que interessa, o Santos está perdendo?

Eu não tenho a menor noção sobre o que motivou esse fosso, nem quando ele se abriu.

Apenas constato que o Jornalismo se desumanizou.

Outro dia eu escrevi o seguinte sobre os preconceitos exibidos sem qualquer pudor por nossos colunistas:

Ler os jornais brasileiros, hoje em dia, equivale a se expor a uma exibição despudorada de preconceitos vindos daqueles que, por ilustração, deveriam ser os primeiros a reconhecê-los. Mas o ódio de classe cega. Cega a ponto de fazer com que gente "bem" se exponha de maneira abertamente pornográfica. Há, subjacente ao preconceito, um motivo comercial a incentivar esse strip-tease ideológico: em um ambiente cada vez mais competitivo, marca quem chamar mais a atenção.

Não importa que o striper nos ofereça um corpo surrado, barrigudo, salpicado de celulites e estrias. Importa é que prestemos atenção nele, ainda que fortuitamente. Semana que vem, ele promete, tem mais. Dispensa-se o convencimento embasado em conhecimento e na razão. Importa é causar debate, atrair tráfego e leitores, "brilhar". Na sociedade midiatizada, inauguramos a era dos "midiotas". Assim como temos os famosos que são famosos por serem famosos, temos os comentaristas que são lidos pela capacidade de chocar. São as "moscas" da Folha de S. Paulo, jornal marqueteiro que quer nos vender o supra sumo do elitismo e do preconceito como algo revolucionário, "in your face", ousado. Que o espírito de Raul Seixas tenha piedade deles.

Hoje, li de Mauro Santayanna a seguinte descrição de dois crimes bárbaros, que receberam uma cobertura desumana de grande parte da mídia:

Duas notícias, destas horas, deviam mover a consternação e a indignação da sociedade brasileira. O assassinato de uma adolescente, em favela de São Paulo, por um agente da polícia municipal de São Caetano do Sul, provocou a reação irada da população. O Estado, há muito tempo, não tem conseguido preparar suas forças para manter a ordem. A jovem Ana Cristina foi baleada quando os guardas municipais perseguiam um homem, suspeito de roubar um carro. Para recuperar um veículo, mataram uma pessoa.

Ao retirar grupo do MST de uma fazenda que ocupava, em São Gabriel, a polícia militar gaúcha, além de assassinar pelas costas um lavrador, e de usar armas que provocam choque elétrico, cães, cavalos e bombas, aterrorizou e torturou, física e psicologicamente várias crianças. Um bebê foi ferido por estilhaços no rosto. O fato será denunciado ao Ministério Público pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

E constatei, com pesar, que Jornalismo e Humanismo deixaram de ser sinônimos.

Tragam o "seo" Moreno de volta. Ele era reacionário, sim. Mas era humano.

Fonte: Vi o Mundo

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