Mentiras, só mentiras... e o duplifalar que merece expurgo
por Johann Hari, no The Independent - UK
A língua inglesa precisa volta e meia de uma faxina de primavera, na qual se apaguem todas as frases e expressões que grudaram no fundo dos discursos e as metáforas podres que escorregaram para o fundo do pensamento. George Orwell já alertou para a evidência de que a linguagem sempre arrasta frases que já perderam o significado – ou, ainda pior –, que de fato “só existem para dar credibilidade a mentiras e respeitabilidade a crimes, e para dar aparência de solidez ao que é só vento.” E acrescentou: “Se nos livramos desses maus hábitos, conseguiremos pensar com mais clareza; e pensar com mais clareza é o primeiro passo para a regeneração política."
Nem me refiro aos clichês que nos perseguem todos os dias. “Sua mensagem é muito importante para nós...” – como repetem ao nosso ouvido vozes de autômatos para os quais nossa mensagem não tem importância alguma, porque, se tivesse, empregariam alguém capaz de, pelo menos atender o telefone. “Com o devido respeito, acho que...” dizem-nos todos que, imediatamente depois de falar nos desrespeitam total e completamente. Esses clichês são tolos, mas não chegam a ter graves consequências políticas.
Não. Estou falando de frases que, ao mesmo tempo em que propõem descrições neutras do mundo, contêm, elas mesmas, uma agenda política oculta que induz o leitor ou ouvinte a um certo tipo de interpretação. Exemplo recente óbvio é a expressão “técnicas avançadas de interrogatório”, eufemismo deliberadamente criado pela direita norte-americana para ‘desinfetar’ a tortura e fazê-la soar razoável e admissível. A linguagem é muitas vezes deliberadamente deformada e distorcida, desse modo, por motivos políticos. Por exemplo, nos anos 80s, os que propunham uma fracassada “guerra às drogas” dedicaram-se muito empenhadamente para converter a expressão “uso de drogas” – clara, simples, direta – em “abuso de drogas”, expressão que evoca imagens sinistras (soa como “abuso de crianças”). Evoca imagens sinistras, sim; mas... o que significa? Quem disse que alguém que fume maconha para relaxar uma vez por semana estaria “abusando” de alguma droga? Será que espancam os baseados?
As expressões podem ser facilmente excluídas da fala e dos discursos: durante a guerra do Vietnam, os noticiários referiam-se aos civis massacrados como “dano colateral” – expressão que ‘apaga’ o sangue e o sofrimento e nada evoca. Hoje, até os porta-vozes do Pentágono evitam falar de “dano colateral” para referir-se aos mortos no Iraque e no Afeganistão, porque a expressão foi longamente criticada e satirizada.
Então, que expressões merecem expurgo? Há um livro de Steven Poole, muito útil, intitulado Unspeak, que oferece milhares delas –, mas acrescento aqui a minha listinha pessoal.
Rotular alimentos como produtos de “Comércio Justo”. A frase sugere que pagar salários decentes a gente desesperadamente pobre é boa ideia ética e ideia gratificante de exceção à norma. De fato, se é exceção à norma não deveria ser; deveria ser, isso sim, precisamente a norma para todos os seres humanos civilizados. Nesse caso, então, a rotulagem deveria ser feita pelo princípio diametralmente oposto: todos os demais alimentos do mundo é que deveriam receber rótulos de “Comércio Injusto”, “Comércio de rapina”, ou “Vai aí uma esmolinha?” O excelente comediante Andy Zaltzman sugere desenho de sua lavra, para ser usado na rotulagem de embalagens: a silhueta de um empresário muito gordo, urinando sobre uma criança negra.
“Mortalidade Infantil”. Soa clínico e antisséptico – quem se emocionaria ao ouvir falar de “mortalidade infantil”? –, quando, de fato, estamos falando sobre bebês mortos. Aqui, um exemplo. No Malawi no sudeste da África, o solo foi de tal modo exaurido pelo plantio indiscriminado, que o governo democrático teve de implantar uma política de subsídios para a compra de fertilizantes. Os fazendeiros famintos receberam sacos de fertilizantes comprados por 1/3 do preço de mercado – e o país floresceu. Foi quando o Banco Mundial decretou que os subsídios provocariam “distorção no mercado” e que, se o Malawi quisesse continuar a receber empréstimos, que suspendesse imediatamente o programa dos fertilizantes. O programa foi suspenso, as colheitas não nasceram, veio a fome e.. . “houve aumento na mortalidade infantil”. Essa é a expressão-crime. Ela deveria significar que morreram milhares de bebês.
Há três anos, o governo do Malawi finalmente respondeu ao Banco Central dispensando os empréstimos e os fertilizantes voltaram a ser distribuídos. A fome diminuiu, e o país é hoje o principal exportador de milho para o Programa World Food no sul da África. Quando esse programa é (raramente) mencionado nos noticiários, vez ou outra alguém registra que “a mortalidade infantil diminuiu”. A expressão significa: centenas de milhares de bebês não morreram.
“Crianças muçulmano-cristãs.” De rotina, fala-se de crianças “cristãs”, “muçulmanas” ou “judias”, conforme a religião dos pais, para justificar que as crianças sejam encurraladas em escolas em que são segregadas pela superstição, nas quais são doutrinadas para uma ou outra fé. Mas crianças – como Richard Dawkins já escreveu – não têm religião. Não conhecem os textos sagrados e pensam a partir do que veem.
Aí mora o perigo, do ponto de vista dos que falam e escrevem sobre “crianças muçulmano-cristãs” –, porque querem começar a doutrinar as crianças antes de que aprendam a pensar, de modo que os conteúdos religiosos sejam incorporados profundamente, implantados de tal modo que os adultos, depois, resistam a qualquer argumentação racional. O adequado é falar de “filhos de pais cristãos/muçulmanos/judeus” – com a clara implicação de que todos têm pleno direito de construir suas próprias opiniões sobre religião e sobre qualquer outro tema.
“Mudança climática”. Essa expressão foi inventada por Frank Luntz, ‘marqueteiro’ dos republicanos, quando descobriu nos grupos focais [usados em pesquisas] que a expressão “aquecimento global” soava muito assustadora. “Mudança climática” é expressão mais suave e gentil, que evoca nossa consciência latente de que o clima está em perpétua mudança ao longo de toda a história. Mas “aquecimento global” também é expressão problemática, porque conota imagens de que estaríamos com os pés torrando ao sol. A expressão mais acertada seria “a destruição de ecossistemas”, “caos climático”, ou “aquecimento global catastrófico resultante de ação humana.” São expressões longas e complicadas mas, pelo menos, significam o que significam.
“Fora de contexto”. Poderia até admitir essa expressão, mas em circunstâncias muito estritamente limitadas. Às vezes, uma citação é extraída do contexto; mas, para denunciar esse tipo de ação como crime, é preciso oferecer o contexto original e explicar por que a citação estaria errada, trabalho considerado excessivo para a maioria dos ‘denunciadores’.
O recurso de ‘declarar’ que declaração reproduzida estaria sendo reproduzida “fora de seu contexto” acabou por converter-se em salvo-conduto para qualquer um que seja apanhado dizendo grosserias ou divulgando falsidades. Por exemplo, quando revelei que Jake Chapman dissera que seus trabalhos artísticos prestavam “um bom serviço social, como as crianças que mataram Jamie Bulger,” ele respondeu que eu o estaria citando “fora do contexto”. Como? Li e reli a declaração várias vezes no contexto original e não entendi o que mudaria, de lá, para o contexto da minha frase. Antes da parte que reproduzi, Chapman não disse algo como, "se eu fosse doido, precisando chamar a atenção, desses que nada levam a sério, eu diria...”
O mesmo aconteceu quando revelei que o historiador Andrew Roberts considerara “necessário” o massacre de civis inocentes em Amritsar e elogiara o maníaco que ordenou o massacre; Roberts respondeu que eu citara frases “fora de contexto”. Como?
Poderia oferecer muitos outros exemplos. O emprego dos títulos de nobreza, por colunistas e jornais republicanos é bizarro: por que não podemos chamar os membros da família Windsor por seus nomes, como se faz com todo o mundo? Por que “a Rainha” e não “Elizabeth Windsor”? Por que não “Charles Windsor”? Seria um meio para controlar a ‘aura’ régia e introduzir uma lógica republicana também na linguagem.
A expressão “a política da inveja” é usada rotineiramente para estigmatizar a tendência instintiva mais básica para a justiça social – inclusive por políticos do Novo Trabalhismo como Hazel Blears. Como mostra o soberbo livro The Spirit Level de Richard Wilkinson e Kate Pickett, quanto mais desigual se torna uma sociedade, mais altas as taxas de criminalidade, de dependência de drogas, de doenças em geral. Fazer oposição a essa situação não implica invejar ninguém; pode-se dizer que implica apenas cultivar alguma humanidade.
Orwell disse que temos “de permitir que o significado escolha a palavra, não o contrário.” Se houve bebês mortos, é preciso falar de bebês mortos. Se o ecossistema está destroçado, digamos, todos, que está destroçado. Só quando descrevermos com honestidade o mundo, será possível começar a mudá-lo.
O artigo original, em inglês, pode ser lido aqui
Fonte: Vi o Mundo
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