quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Pré-sal - A realidade é nossa

::


A insistência da mídia em tratar quaisquer propostas do governo como discurso eleitoreiro obscurece a importância do que está em debate.


Por Antonio Luiz M. C. da Costa


De que maneira a regulamentação da produção de petróleo na camada pré-sal diz respeito aos interesses reais do País? Difícil encontrar uma reflexão mais séria por parte dos principais nomes dos jornais e tevês mais influentes, para os quais o pré-sal é mero discurso a usar ou atacar nas eleições de 2010. Cai além desse estreito campo de visão o modo como isso pode afetar o destino dos cidadãos brasileiros a partir de 2020.

Pois quantos, nesse meio, levam o real a sério enquanto ele não os atropelar? Conversar com alguns contatos políticos, desconstruir pós-modernamente o discurso – como se nada fosse real por trás dele – e avaliar a habilidade do político ou marqueteiro ao vender seu peixe é mais fácil do que aprofundar as minúcias de um assunto técnico e complexo que mais cedo ou mais tarde cederá o alto da pauta a outro.

Focalizemos, em vez disso, as realidades. O primeiro dado importante é que, há dois anos, o Brasil descobriu reservas prováveis e possíveis de petróleo muito maiores do que se imaginava há alguns anos, comparáveis às de alguns dos principais membros da Opep. Esse é um fato, mesmo que parte da mídia afirme ora que nada se descobriu, ora que a descoberta não foi novidade.

O segundo é que, ao contrário desses países, o Brasil é um grande consumidor de petróleo. Caso o consumo brasileiro cresça 4% ao ano, vai devorar 50 bilhões de barris de 2009 a 2040 e outros 50 bilhões de 2041 a 2058.

Em terceiro lugar, a superação da dependência dos combustíveis fósseis ainda é um sonho, por desejável que seja. As alternativas ainda são limitadas (como os biocombustíveis) ou perigosas (como a energia nuclear) e não se pode contar com milagres na próxima esquina. Apostar que o petróleo será um “mico” obsoleto na década de 2020 é loucura – embora seja preciso continuar a investir nas alternativas e não custe torcer por novidades substanciais.

O quarto é que, justamente por não serem provadas, as reservas do pré-sal exigem investimentos. Reservas provadas são aquelas onde a extração foi avaliada como comercial, legal e ambientalmente viável com probabilidade superior a 90%, avaliação que exige pesquisa geológica e tecnológica exaustiva e numerosas perfurações.

É descabido o palpite do advogado e escritor André Araújo, reproduzido pelo blog de Luis Nassif, de que é questionável investir em reservas “hipotéticas”. Pelo contrário, é indispensável para converter em provadas as reservas hoje prováveis (com probabilidade superior a 50%) dos 14 bilhões de barris dos campos de Tupi, Iara e Parque das Baleias e os até 100 bilhões de barris possíveis (com probabilidade superior a 10%) do restante do pré-sal, inferidos por semelhança ou continuidade geológica.

Nem sequer se poderia falar delas se a Petrobras não tivesse investido bilhões para viabilizar a tecnologia de prospecção nessas áreas e não iniciasse a perfuração de oito poços bem-sucedidos, ao custo de 260 milhões para o primeiro (que levou um ano para encontrar petróleo, em novembro de 2005) e 60 milhões para os mais recentes. Foi decisão inteiramente da empresa arrematar, no leilão de 2000, essa área então de fato “hipotética”, onde foi a única operadora.

Não está claro a partir de qual preço cada parcela dessas reservas é comercializável, mas essa questão começa a parecer acadêmica. O barril de petróleo recuperou-se para a casa dos 65-75 dólares no auge da pior crise mundial em décadas, e as perspectivas para as próximas décadas continuam a ser de crescimento muito maior da demanda que da oferta – o pré-sal, embora muito importante para o Brasil, pouco afeta o desequilíbrio global. Tudo indica que será lucrativo vender tanto petróleo quanto puder ser produzido em 2020: é só questão de continuar a desenvolver a tecnologia.

Mas interessa ao País extrair tanto petróleo quanto puder ser vendido? Essa é a questão mais importante por trás da decisão. Países como a Indonésia entregaram suas reservas à exploração das transnacionais. Elas o fizeram com eficiência, segundo seus próprios critérios, até o esgotamento – e o resultado é que o país, que exportava petróleo a 2 dólares o barril há algumas décadas, hoje precisa importá-lo a 60 dólares (e em 2008 o importou a 140 dólares).

Outros exportadores, embora ainda não tenham esgotado seu petróleo, deixaram as divisas do ouro negro valorizar excessivamente sua taxa de câmbio, facilitar importações, desestimular outros investimentos e mesmo desindustrializar a economia – a chamada “doença holandesa”.

Em países sem a longa história de desenvolvimento e a tradição de democracia e cidadania dos Países Baixos, a síndrome tomou a forma mais grave da “praga dos recursos naturais”. Não só a economia, como também a política interna e a diplomacia são corroídas e reduzem-se à disputa da renda do petróleo entre elites e lideranças políticas, enquanto crescem a desigualdade, a violência política e o autoritarismo.

O ponto de vista do País e de seus habitantes pode não coincidir com o do mercado: o mais desejável pode ser produzir não tanto quanto ditem as possibilidades técnicas e a viabilidade econômica, mas o adequado às necessidades do desenvolvimento a longo prazo. Isso exige certo grau de controle da produção por mecanismos democráticos, pelo Estado, que o sistema de concessão à empresa privada não permite.

Nos anos 90, o Brasil, ao que se dizia e geralmente se supunha, tinha menos petróleo do que necessitava no futuro previsível. Acelerar a produção ao máximo parecia desejável. Agora, a questão é planejá-la. Não se trata mais de esporear um pangaré relutante, mas de controlar um puro-sangue inquieto.

Em termos físicos, o País tornou-se autossuficiente em petróleo em abril de 2006 e desde então quantitativamente manteve o equilíbrio, apesar de as necessidades qualitativas do refino exigirem a importação de petróleo de diferentes tipos para adequar o perfil da oferta interna ao do consumo. Em 2008, o Brasil teve um saldo positivo de 8,9 milhões de barris, equivalente a 1,3% da produção. No primeiro semestre de 2009, produziu 349 milhões de barris, importou 71 milhões e exportou 84 milhões – um saldo positivo de 13 milhões, equivalente a 3,7% da produção.

Os petróleos importados (leves) são mais caros que os exportados: em 2008, o preço médio do barril importado foi de 109 dólares e o do exportado, 87 dólares. Por isso, até recentemente, o País tinha, apesar do pequeno superávit físico, um déficit comercial, que foi de 2,9 bilhões de dólares em 2008. Essa situação se manteve até o primeiro semestre de 2009, mas em julho, pela primeira vez, houve superávit também econômico: nesse mês, a exportação foi de 1,28 bilhão de dólares e a importação, de 918 milhões – um saldo de 360 milhões, mais de 8% do valor da produção nacional no mesmo período. Essa tendência deve prosseguir nos próximos meses e permitir que a balança comercial petrolífera de 2009 feche positiva.

Mesmo que poucos tenham notado, o Brasil atingiu a autossuficiência tanto física quanto em termos de balança comercial. As reservas já provadas (que não incluem o pré-sal) podem sustentar o consumo por quinze anos, considerando crescimento de 4% ao ano. Não há urgência em aumentar a produção. Trata-se de avaliar, expandir e administrar as reservas de maneira a poder contar com elas enquanto a economia e a tecnologia brasileira não tiverem superado a dependência dos combustíveis fósseis.

O regime de concessão – mais comum em países com reservas escassas – não é satisfatório sob esse ponto de vista, justamente por permitir ao concessionário explorar, produzir e vender de acordo com suas conveniências, que não são necessariamente as do País. Para uma petroleira, não se deve deixar para lucrar amanhã o que se pode lucrar hoje, sejam quais forem os royalties a serem pagos ao Estado. Se isso trouxer desequilíbrios cambiais e desindustrialização hoje e escassez no futuro, não é problema dela.

O regime de partilha, adotado principalmente por exportadores da Opep e países periféricos mais independentes (inclusive Índia e China), permite maior controle da produção física: parte do petróleo vai para as mãos do Estado, que dispõe sobre sua comercialização. No caso dos países da Opep, isso serve à regulação da produção do cartel para sustentar preços. No caso do Brasil – cujas exportações não terão grande impacto sobre o mercado global –, ao direcionamento das vendas para o mercado interno ou para acordos internacionais vantajosos do ponto de vista comercial ou diplomático.

Uma das críticas à proposta do governo é que a produção e a partilha do pré-sal, a ser administrada por uma empresa inteiramente estatal denominada Petrosal e operada apenas pela Petrobras (com participação mínima de 30%), permitiria ao Estado decidir onde e quando produzir por “critérios políticos”. Pois é exatamente isso: produzir por critérios políticos, de planejamento e não de mercado. Não, bem entendido, produzir neste ou naquele estado para favorecer tal ou qual governador, até porque não faz sentido: só se pode produzir petróleo onde existe e qualquer decisão nova sobre investimento leva mais do que um mandato para amadurecer. Mas produzir da maneira que não é necessariamente a mais rentável possível.

Agora, o problema é outro, mas se a exploração e a produção de petróleo tivessem sido entregues ao mercado desde os anos 50, o Brasil não teria começado a explorar – e talvez nem descobrisse – suas reservas marítimas, já teria esgotado as reservas terrestres e teria quebrado, mais uma vez, com a alta dos preços do petróleo depois do ano 2000.

A produção no mar brasileiro não deixa de ser lucrativa, mas seu custo é superior ao da maior parte do mundo, exigiu desenvolvimento de tecnologia específica e, entre lucrar mais já e lucrar menos no futuro, uma transnacional não teria tido dúvidas. Teria pesquisado na África, na Venezuela, no Golfo Pérsico e pensaria no Brasil apenas quando esgotasse as possibilidades de investimento em países onde o petróleo é mais acessível.

Por que não entregar a produção à Petrobras? Porque, como empresa de companhia mista, deve satisfações ao acionista minoritário que a pressiona a decidir investimentos como se fosse privada – inclusive, por exemplo, priorizar a produção no exterior, caso seja mais lucrativa. E por que não estatizar de vez a Petrobras? Por razões em parte políticas – o governo não tem apoio para uma medida tão radical –, mas também econômicas. Seria preciso recomprar os 60,2% de ações em mãos de particulares, inclusive estrangeiros – cerca de 100 bilhões de dólares –, além de assumir sozinho todo aumento de capital que vier a ser necessário além dos 110 bilhões já previstos nos planos da empresa para o pré-sal até 2020 (além de 145 bilhões em outras áreas até 2013).

Para começar, o governo pretende capitalizar a empresa em 50 bilhões de dólares, na forma de 5 bilhões dos barris hoje contidos no pré-sal, de propriedade do Estado. É uma capitalização sem desembolso real do governo, uma vez que a empresa nominalmente receberá títulos públicos e os usará para “comprar” esse petróleo, mas os minoritários (inclusive o BNDES), terão de aplicar 100 bilhões em dinheiro vivo se quiserem manter sua participação.

Na medida em que o capital privado se dispuser a investir sob orientação do planejamento estatal, isso é vantajoso. Não convém que o pré-sal absorva toda a capacidade de investimento da União. Há outras prioridades sociais e de infraestrutura que não podem esperar pelo Fundo Social a ser criado com a exploração das novas reservas.

E esse fundo, que teria entre suas prioridades educação, combate à pobreza, cultura, ciência e meio ambiente (além de investimentos remunerados em infraestrutura), deveria reservar boa parte dos recursos para a pesquisa e desenvolvimento de energias alternativas. No médio prazo, não há como fugir do petróleo do pré-sal, mas a sorte de encontrá-lo não dispensa o Brasil de buscar uma saída mais limpa e sustentável a longo prazo. Apesar dos míopes, o ano de 2020 vai chegar. Mas o de 2040 também.

Fonte: Carta Capital

::



Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: