sábado, 5 de setembro de 2009

Para os índios do sul da Colômbia, resta fugir ou ficar para morrer

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por Natalia Vianna*


No conflito que envolve militares, guerrilha e paramilitares, indígenas da etnia Awá ficam no fogo cruzado e são considerados inimigos de todos. Alguns são assassinados e muitos deixam suas terras e raízes para trás



Há seis meses, a indígena Mélida Árias usa o mesmo vestido vermelho. Foi uma das poucas coisas que conseguiu apanhar quando saiu fugida da sua casa na reserva Tortugaña-Telembi, no estado de Nariño, sul da Colômbia. Em 4 de fevereiro, Mélida teve que escapar, junto com o marido e duas gerações da família, depois de ter perdido quatro dos seis filhos em um massacre dentro da reserva - na foto acima, ele mostra o documento de um deles.

Na ocasião, onze índios Awá foram assassinados a facadas por integrantes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), sob acusação de serem informantes do exército, como a própria guerrilha reconheceu.

“Me levaram quatro filhinhos. Este, este e este ficaram sem os pais”, diz Nélida, uma senhora idosa – ela não sabe a própria idade – enquanto aponta para os muitos netos que a rodeiam no albergue improvisado onde vivem desde então, à beira da estrada estadual que leva à costa do Pacífico.

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Depois do massacre, mais de 400 indígenas fugiram. Foram todos abrigados nos três galpões de madeira na sede da organização Unidade Indígena do Povo Awá. Sem perspectiva ou recursos, muitos já deixaram o local para tentar a sorte em municípios vizinhos.

Os 150 que sobraram dividem os galpões apinhados de roupas, colchões e mochilas – é tudo o que têm. A maioria tem parentesco com a família de Mélida, os Cuasaluzan, a mais afetada pelo massacre. Muitos ficam sentados o dia todo, esperando. Os banheiros de madeira construídos pela agência de proteção social estão entupidos e deteriorando. Várias crianças estão subnutridas. Quase todos tiveram catapora.

O drama dos Awá reflete a fase atual do conflito colombiano. Segundo relatório recente da Anistia Internacional, 380 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas casas por esse motivo em 2008, um aumento de 25% em relação a 2007. Os mais afetados são camponeses, afrocolombianos e indígenas. Mais de 13.500 indígenas tornaram-se refugiados internos, uma tendência crescente classificada de “grave” e “extremamente preocupante” pelo relator de direitos indígenas da ONU James Anaya, em visita ao país em julho.

A razão disso é que os embates entre exército e guerrilha têm se deslocado para locais mais remotos, incluindo terras indígenas. A estratégia de segurança democrática adotada pelo governo Uribe e marcada pelo Plano Colômbia retomou as principais cabeceiras municipais e estradas, encerrando todos os componentes do conflito nas florestas e montanhas.

No caso dos Awá, chegaram primeiro as platanções de coca, depois a guerrilha e os paramilitares. Há alguns anos, o exército passou a invadir repetidamente o território, levando literalmente a guerra para a porta das casas.

No meio do fogo cruzado, os índios sofrem abusos de todos os atores armados. Nos últimos três anos, mais de cem Awá foram mortos e mais de mil tiveram que fugir de suas casas, segundo a Unipa (Unidade Indígena do Povo Awá).

Apenas uma semana antes do massacre, a Corte Constitucional havia promulgado uma sentença judicial que exige ações do governo em relação a indígenas refugiados ou sob ameaça de deslocamento. Segundo o despacho, na última década o conflito “se converteu no principal fator de risco para dezenas de comunidades indígenas”.

Além da elaboração de um plano nacional de proteção até agosto, o Auto 004 obriga o governo a elaborar um plano de salvaguarda para 34 etnias sob risco de “extermínio cultural ou físico” por causa do conflito – entre eles, os Awá. Segundo fontes do governo, o prazo deve ser estendido por causa da demora no processo de consulta junto aos indígenas.

A Defensoria Pública também procurou alertar diversas vezes sobre o perigo iminente. Em junho de 2008, já denunciava ameaças contra a vida e integridade dos Awá de Nariño. No fim do ano, dois alertas de risco pediam proteção dentro da terra indígena. Os alertas, dirigidos a diversas esferas governamentais, além do exército e da polícia, colocavam como “alto” o risco de violações massivas de direitos humanos em 12 comunidades Awá.

Ou seja: o massacre de boa parte da família de dona Mélida era uma tragédia anunciada - abaixo, uma neta dela.



O massacre

Já era tarde do dia 4 de fevereiro quando oito guerrilheiros irromperam na casa de Estorgio Cuasaluzan, onde estavam também seu irmão e cunhada. Chegaram perguntando onde estavam os soldados e, diante de uma negativa, acusaram-nos de “sapos”, informantes do exército. Foram amarrados. Pouco depois, outros parentes chegaram pela trilha que levava à casa.

O número foi aumentando à medida em que transcorria a tarde. Dois integrantes da guarda indígena, portando o tradicional bastão com fios coloridos, símbolo de autoridade e respeito, foram pedir explicações. Acabaram também amarrados e levados até a Quebrada del Hojal, em Rio Bravo, onde foram assassinados, um a um, com repetidas facadas no abdôme e no pescoço. Os corpos foram atirados no rio.

O pânico criado pelo massacre levou centenas de indígenas a fugir de 11 comunidades na reserva – algumas, a dois dias de caminhada da estrada. Até hoje, dezenas de casas estão vazias. Dos 1.300 moradores, ficaram 600.

“Dizemos que a força pública é responsável porque entraram no território sem consulta prévia e pegaram os moradores de surpresa”, diz o diretor de direitos humanos da Organização Nacional Indígena de Colômbia, Noraldo Chiripua. Para a Onic, as investidas do exército dentro do território viola convenções como a 169 da Organização Internacional do Trabalho, além da Constituição, que garante a não violação das terras indígenas.

“Entram sem avisar e com isso nos colocam em perigo. A simples presença de forças militares que peçam água, que andem pelas mesmas trilhas que a gente usa, é perigosa. Se passa um guerrilheiro e pede água, as famílias dão, e a mesma coisa se passa o exército. Então você é acusado de dedo-duro, ou de estar apoiando esses grupos”, diz o presidente da Unipa, Gabriel Bisbicus. “Nós, como Awá, não queremos nos meter a favor nem contra nenhum dos lados. Queremos respeito aos nossos territórios”, diz ele.

A posição indígena é bastante incômoda para o governo, que reiteradamente tem pedido apoio da população para sua estratégia.

“As pessoas têm que levar em conta que ali há presença guerrilhera e a única forma de tirá-los é a entrada do exército legítimo do país. Queremos que seja o menos traumático possível. A política do governo é de respeito às comunidades e autoridades e de não envolvimento de populações civis”, diz Pedro Pozada, diretor para assuntos indígenas do Ministério do Interior e Justiça. “Mas o governo não tem que fazer consulta prévia em nenhum local do território nacional”.

Para os índios, dar apoio ao governo fica mais difícil em territórios que têm sido ocupados nos últimos anos por diferentes grupos armados.

Pintados como soldados

É o caso da reserva Totugana-Telembi. Até setembro de 2008, a guerrilha não tinha presença constante por ali. Os confrontos estavam acontecendo na reserva vizinha de El Sandi. Aos poucos, as Farc começaram a transitar pela comunidade. Segundo relatos, havia centenas de homens.

A princípio, a convivência foi razoavelmente pacífica. “Eles andavam nas trilhas, pintados como o exército”, conta Maria Nastaquaz Cuasaluzan, mãe de seis filhos e viúva desde o massacre. “Conversavam com a gente. Onde morava a minha sogra eles iam, compravam comida”.

Aos poucos, os combates foram se deslocando para a reserva. Segundo informações oficiais das Farc, dias antes do massacre houve embates na localidade de Rio Bravo, onde aconteceu o massacre. Testemunhas relatam que o exército estava penetrando cada vez mais na reserva Awá.

Sob maior pressão, os guerrilheiros passaram a ter uma postura mais violenta. “Começaram a aparecer pessoas mortas, mas quando os familiares iam perguntar o que se passava, a guerrilha dizia que não tinha matado”, afirma o governador da reserva, José Libardo. “Os líderes foram ameaçados e a guerrilha proibiu o uso de celular nas comunidades, porque acusavam [os moradores] de informantes”.

A reportagem também apurou que a guerrilha tentou cobrar imposto de alguns indígenas que cultivavam folhas de coca ou possuíam laboratórios – essas taxas são uma importante fonte de financiamento das Farc.

Pelo menos duas vítimas do massacre vendiam a pasta de coca, que depois seria refinada por traficantes para virar pó, em municípios próximos. “Primeiro pediram propina, mas como a gente tirava pouquinho, não mais que uma libra (cerca de 450 gramas) de pasta no laboratório, desistiram”, diz uma indígena.


Família Cuasaluzán, a mais afetada pelo massacre


Delação


Os “senalamientos”, acusações de colaboradores, foram ficando mais frequentes. Depois do massacre, a Coluna Mariscal Sucre, das Farc, emitiu um comunicado reconhecendo o assassinato de oito indígenas que, segundo a carta, “realizavam explorações, localizavam a guerrilha e guiavam as patrulhas do exército para nos golpear”. A história nunca foi comprovada, mas levantou suspeitas entre aqueles que acompanham o caso de perto.

Isso porque o programa de informantes civis do exército, que conta com milhares de colaboradores, tem sido uma das peças-chave na inteligência contra a guerrilha. Há relatos de que os soldados oferecem dinheiro para obter informações sobre a guerrilha ou narcotraficantes. “Andam dizendo que pagam para que avisem onde está a guerrilha, e pagam 15 milhões de pesos (15 mil reais) se avisam quem são os donos das plantações e os refinadores de coca”, afirma o líder Awá José Apolinar.

Tais acusações implicam em violação da Convenção de Genebra, que proíbe o envolvimento de civis. O governo colombiano nega reiteradamente o uso de informantes. Em julho, a questão foi levada ao ministro da Defesa, Gabriel Silva, pelo relator da ONU para direitos indígenas, James Anaya.

“Me asseguraram que isso não acontece. Espero que seja verdade e que sigam lutando para que as boas intenções sejam vistas na prática”, disse Anaya. Pouco depois, o relator concluiu que as Farc, em especial, “parecem desconhecer por completo os direitos humanos e o direito internacional humanitário”.

O massacre também marcou uma forte cisão com o movimento indígena nacional. Em abril, uma carta assinada pelo secretariado das Farc procurou contornar o problema. Garantia que “nem o ocorrido em fevereiro nem nada parecido pode voltar a acontecer”, e afirmava que três comandantes haviam sido designados para averiguar o que aconteceu e conversar com os Awá.

Os indígenas recusaram a oferta. “O fato é que nos mataram sem pensar porque pensaram que nós íamos seguir calados. Mas agora se rompeu o silêncio”, diz o governador da reserva, José Libardo.

Rompeu-se o silêncio, mas não o cenário de violência. Semana passada, mais 12 índios Awá entraram para as estatísticas de vítimas fatais - entre eles, um bebê. Dessa vez, os indígenas acusam os paramilitares pelo crime.

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* Texto e fotos.


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