terça-feira, 17 de junho de 2008

Qual é a "música" do Fórum de Mídia Livre?


Em boa gramática, quem comunica, comunica algo a alguém. E como nem essa nem regra alguma caiu de pára-quedas no mundo, a tese de que o problema da mídia hoje é de método e de linguagem e não de conteúdo, mais parece um círculo quadrado.

“Emancipamo-nos do medo da razão, o fantasma que assombrou o século XVIII: ousamos novamente sermos absurdos, infantis, líricos; numa palavra, 'somos músicos'.” (Nietzsche, A Vontade de Potência)

O I Fórum de Mídia Livre, ocorrido em 14 e 15 de junho no Rio de Janeiro, celebrou e debateu o fim da inocência no campo da democracia na comunicação. Em dois dias de trocas de experiências de democratização das mídias e de debates sobre regulamentação e partição de recursos de financiamento da comunicação não-capitalista no país, uma tensão um tanto silenciosa se apresentou, uma vez mais. Não é algo muito distinto da luta interna ao Fórum Social Mundial, mas, no caso do debate midiático, essa tensão se expressa de modo especialmente poderoso. De um lado há a defesa do fim da inocência no debate sobre mídia e liberdade de expressão e, do outro, a de “fazer mídia” em busca de um lugar sob o sol, isto é: de espaço e recursos, sem, necessariamente, pretensões refletidas de ter poder. Essa tensão não ocorre entre grupos distintos, formados e fechados no interior desse Fórum; ela se estabelece no âmbito das idéias, das posturas, das consciências e das falas dos seus participantes. Possivelmente de quase todos, até.

É uma variante, ao mesmo tempo recuada (retranqueira, para usar um termo futebolístico) e rígida, do conflito que atravessou o século XX em proporções gigantescas. Parece uma guerra fria não-refletida, marca da grande confusão e abertura que caracterizam o atual estado de coisas no planeta. E já que o objeto desse embate é a comunicação, neste mundo e nesta conjuntura, essa variante se apresenta com um privilégio peculiar: a relação entre mídia e poder político parece ser um dos únicos laços - rigorosamente internos e cultivados na confiança - que avança nas sociedades contemporâneas. Portanto, é de supor que os interesses políticos e os midiáticos se encontrem.

O que não deixa de ser surpreendente é a dificuldade que os desempoderados que participam dos Fóruns parecem ter perante esse laço. É como se o vínculo entre política e comunicação (e não seu conteúdo e protagonistas), fossem o que ameaça a liberdade de expressão e a democracia. Assim, o problema estaria no poder, tout court, e não na qualidade ou na maneira como o poder é exercido. E, se o poder é tomado abstratamente, separado de outras coisas, por que a comunicação não o seria? Sob o triunfo dessa intransitividade está uma paranóia, espécie de medo anticoletivo, sem o qual, paradoxalmente, a democracia não permanece ameaçada.

Uma paranóia anti-poder que torna um Holloway o guru intelectual de uma geração (mesmo que ela não seja ou não esteja exatamente sabendo disso). Como um estado maniático de temeridade empedernida, essa paranóia se expressa de várias maneiras, tornando-se séria candidata a censurar, inclusive, a expressão midiática crítica à aliança que ameaça a liberdade de expressão e, portanto, a democracia.

Poder político, Estado e coletivismo ocupam, nessa paranóia, uma posição de objeto abstrato de ódio. Um ódio fruto da irreflexão que jamais os apoderados, da política e da mídia, cometem. Em cada denúncia de “estatismo”, em cada ataque à atuação republicana – um tanto inédita na história brasileira – da Polícia Federal, em toda criminalização dos movimentos sociais e da organização da sociedade civil está a consciência refletida, rigorosa e intransigente, do laço confiante entre poder político e mídia. Esse já seria um elemento mais do que suficiente para questionar o medo que esse vínculo do e com o poder impinge à via social. O que acontece que isso não ocorre? Quando é que a ressaca do delírio individualista anos 90 vai passar?

Uma das coisas que se aprende quando se sai da casa dos pais é que os ralos dos banheiros e cozinhas precisam ser limpos. Perder a inocência, como lembrou Dario Pignoti, do Página 12, na abertura desse Fórum, sempre custa caro. É preciso saber para onde se está indo e, ainda mais, onde se está. A aversão à política na juventude não passa de uma mentira (aliás confirmada pela enorme e nacional participação de centenas, estudantes inclusive, nesse primeiro Fórum de Mídia Livre), isso é certo; mas qual é mesmo a política que tem ocupado a juventude engajada nesses Fóruns e que organiza suas ações – que, sim, existem e são variadas e riquíssimas? Ela é pensada enquanto política ou – irrefletidamente – como um “fazer a sua parte para melhorar e qualificar a comunicação”?

Em boa gramática, quem comunica, comunica algo a alguém. E como nem essa nem regra alguma caiu de pára-quedas no mundo, a tese de que o problema da mídia hoje é de método e de linguagem e não de conteúdo (tese abundante dentre muitos participantes desse Fórum), mais parece um círculo quadrado. Coisa tão bizarra como a afirmação da atual governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, ao responder a um jornalista sobre o que fez um dos seus mais importantes secretários cair, no contexto do horror que assola o estado: “para você ver, uma foto, uma fotografia faz o secretário cair”, sem pestanejar nem referir-se ao que está fotografado nem a quem a fotografia foi mostrada, isto é, sem referir-se ao que uma foto comunica. Fotos não são intransitivas e tampouco o são o método e a linguagem e isso é tão trivial como o raciocínio de um crente na revista Veja, a mais recente força-tarefa midiática nacional.

Abrir mão do conteúdo e dos protagonistas da relação entre mídia e poder é não apenas descaracterizar a responsabilidade gerada com o fim da inocência como incorrer na desconstituição gramatical da comunicação; é apostar no caráter irrefletido do fazimento de mídia e no combate às crenças mercadológicas que vendem desinformação e demais mentiras nos quiosques midiáticos.

A descolonização dos corações e mentes que foram sequestrados pela fantasia da intransitividade da comunicação e do jornalismo em particular depende de muitas coisas, inclusive ainda não-sabidas. Isso é certo; mas há pelo menos duas coisas sem as quais nem fazer mídia nem qualquer combate anti-aparência na sociedade e na Política podem fazer sentido: a responsabilidade perante o fim da inocência quanto ao que aparece enquanto informação, escrita e imaginada, e o compromisso com aquilo que já está se fazendo, isto é, a reflexão sobre aonde já se chegou. Não é pouca coisa ter a Petrobrás patrocinando um encontro, numa universidade pública, que visa a regulamentar, partilhar recursos e questionar a fundo o reino da aparência que responde, de modo dominante, irregular e concentrador, pela comunicação no país. Não é irrelevante lutar pela autenticidade da descrição do real, sobretudo quando essa autencidade, no Brasil em particular, apresenta a desigualdade e a violência, a riqueza e a diversidade de seu povo e natureza.

Essa luta, além de necessariamente transitiva, merece ser refletida. E para isso é preciso perder aquilo que Nietzsche chamou de “medo da razão”. Pensar sobre o que já está sendo feito, sobre o que já se alcançou, sobre o que se está (e, correlatamente, sobre o que não está nem pode) mudando na realidade, para além das intenções, umbigos e desejo de espaço é passo determinante da luta pela democracia, na mídia e em todos os aspectos da vida social. Só que é um passo que requer confiança. A autoconfiança que nos tira da posição (como bem lembrou Ivana Bentes, uma das organizadoras do encontro) reconfortante do discurso da falta e que leva a sério a gramática de que se faz a comunicação; por conseguinte, a confiança nos pares, nos diferentes e nos iguais.

Como se sabe, Friederich Nietzsche defendia a confiança no melos (melodia) não no logos (palavra) como fonte confiável de descrição da realidade. É na música, tomada em sua acepção logicamente antecedente à palavra e também como metáfora, e não no discurso, que se encontra, segundo Nietzsche, a realidade. É essa acepção de música que pode libertar das amarras que a aparência de informação introduziu e precisa manter na sociedade, com o poder das forças-tarefas, de Veja e grande elenco. Sermos “músicos” quer dizer, entre outras coisas, que a experiência e a vida da sociedade dependem de mais do que palavras e medos que nos habitam; e que comunicar é e deve ser verbo de transitividade direta e indireta porque faz sentido que seja assim, como melos, como confiança e, então, como liberdade.


Katarina Peixoto é doutoranda em Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: katarinapeixoto@hotmail.com

Fonte: Agência Carta Maior


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: