domingo, 1 de junho de 2008

O Estado laico venceu

por Luiz Antonio Cintra

Ainda são incertos os avanços terapêuticos do uso de células-tronco de embriões de seres humanos no tratamento de doenças degenerativas ou em transplantes de órgãos, duas frentes de estudo tidas como promissoras pelos especialistas. Certo é que a decisão a favor das pesquisas científicas na área serviu para reafirmar a separação entre o Estado laico e as diversas religiões, a começar pela Igreja Católica, conforme prescreve a Constituição Federal. Um bom motivo para a quinta-feira 29 entrar para os anais da história, como anteciparam alguns ministros do STF, já que se tratou de avaliar a proteção jurídica à vida, cuja inviolabilidade é garantida pelo texto constitucional.

Para além dos aspectos religiosos, também pesou – e muito, segundo alguns ministros – a pressão da indústria de biotecnologia, de olho nas possibilidades econômicas embutidas na decisão. Como no caso das patentes de medicamentos que poderão ser desenvolvidos a partir das pesquisas com células-tronco. Também houve quem visse no resultado um movimento rumo à liberação do aborto no País.

Em mais de uma ocasião os ministros deixaram entrever o peso da responsabilidade que lhes coube. Pela primeira vez na história da instituição uma audiência pública foi convocada para discutir um processo. Em abril de 2007, 30 especialistas – a maioria biólogos e médicos, mas também alguns advogados especializados em direitos humanos – foram a Brasília prestar esclarecimentos, dada a complexidade do tema.

Diante de um plenário lotado e uma audiência poucas vezes vista pelo Supremo, os 11 ministros se dividiram. Seis rejeitaram completamente a Ação Direta de Inconstitucionalidade, ajuizada em 2005 pelo então procurador-geral da República, Cláudio Fonteles, poucos meses após a autorização dada pelo Congresso. Fonteles argumentou que o artigo 5º da Lei de Biossegurança ia contra o espírito da Constituição, pelo fato de as pesquisas matarem o embrião ao recolher o material genético, o que equivale à realização de um aborto. O procurador contou com o apoio imediato da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que neste ano incluiu o tema em sua tradicional campanha anual. Na mídia, juristas e alguns poucos biólogos e médicos também argumentaram a favor da tese vencida.

Cinco ministros foram favoráveis à constitucionalidade do artigo 5º, e portanto a favor da liberação das pesquisas, porém mediante a imposição de restrições. A intenção de alguns desses ministros, como ficou evidente para quem assistiu ao acalorado debate após a leitura dos votos, era criar um órgão federal que regulasse as pesquisas.

O objetivo era incrementar um texto considerado demasiadamente enxuto diante de tantas questões de fundo, resultado, avaliam alguns ministros, do fato de o artigo 5º ter sido incluído às pressas em meio a uma legislação originalmente criada para regular a produção e comercialização de alimentos transgênicos.

A Lei de Biossegurança impõe algumas condições. Permite apenas a utilização de embriões fertilizados in vitro, congelados há mais de três anos ou aqueles considerados impróprios para a fertilização uterina. Em todos os casos, é necessária a autorização prévia e expressa dos pais.

“Foi uma decisão histórica, produto de muita ponderação e análise. No conjunto, ficou evidente a responsabilidade de quem faz as pesquisas, no sentido de incluir aspectos sociais”, afirmou o ministro Eros Grau.

O esforço contrário à liberação das pesquisas com células-embrionárias não surtiu os efeitos esperados. Nem mesmo o voto do ministro Carlos Alberto Direito, católico fervoroso, foi abertamente favorável à tese defendida pelos religiosos. Ainda que tenha argumentado, como fez a CNBB, que tratava o caso a partir de uma perspectiva estritamente jurídica. Em vez de acatar a tese da inconstitucionalidade, investiu em uma interpretação da lei que favorecesse sua linha de argumentação, segundo a qual o óvulo fecundado carrega em si a “vida em potência”. Estaria, portanto, protegido pela Constituição, que garante a inviolabilidade da vida.

A sessão no STF ainda não havia sido formalmente concluída, quando a CNBB divulgou nota, na qual lamentou o resultado da votação. “A decisão revelou uma grande divergência sobre a questão em julgamento, o que mostra que há ministros do Supremo que, neste caso, têm posições éticas semelhantes às da CNBB. Portanto, não se trata de uma questão religiosa, mas de promoção e defesa da vida humana, desde a fecundação, em qualquer circunstância em que esta se encontra.”

Um dos juristas que se manifestaram contrariamente às pesquisas com células-tronco embrionárias, Ives Gandra Martins, professor da Universidade Mackenzie, faz coro com a CNBB, ao chamar a atenção sobre os cinco votos dissidentes. “Ficou comprovado que cinco dos 11 ministros entendem que a vida começa na concepção. O Supremo deu uma interpretação que não é a que eu gostaria, mas eu sou um simples advogado”, diz.

Entre os cientistas e médicos, a reação foi outra, diante da possibilidade de voltar à bancada científica para desvendar os mistérios das células-tronco, chamadas pluripotentes pela capacidade de se especializarem nos mais variados tecidos do corpo humano. “É um incentivo para a pesquisa no Brasil. Além de uma esperança para o tratamento das doenças degenerativas, em especial às doenças neurodegenerativas, porque as pesquisas com células-tronco adultas jamais conseguiram produzir células do sistema nervoso central”, afirma Salmo Raskin, presidente da Sociedade Brasileira de Genética Médica.

Chefe do Laboratório de Genética Molecular da Universidade de São Paulo, a biofísica Lygia da Veiga Pereira participou da audiência pública convocada pelo Supremo. Agora, festeja a liberação das pesquisas e acredita que os especialistas terão condições de levantar os recursos necessários. A pesquisadora também considera que a liberação do uso de células embrionárias não deve limitar os horizontes dos cientistas. “Podemos e devemos investir em diversos tipos de pesquisa. Só não posso admitir que me obriguem a pesquisar usando apenas células adultas. Por mais que tragam resultados, não se comparam com o potencial das células-tronco embrionárias.”

Ao contrário do que pode sugerir a reação da mídia, nem toda a comunidade científica vê com bons olhos a decisão do STF. Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Cláudia Batista manifestou-se em mais de uma ocasião pela utilização apenas das células adultas. Para ela, os resultados neste caso podem ser mensurados, ao contrário do que acontece com as pesquisas em células de embriões, cuja utilização implicaria “extrapolar os limites éticos”.

Para a ONG Conectas Direitos Humanos, também ouvida na audiência pública, a decisão é importante também por colocar o Brasil “numa posição de vanguarda no tema, ante as demais cortes do mundo”. Na Itália, a pressão do Vaticano venceu. Lá existe uma lei que proíbe expressamente o uso de células embrionárias. “Esses embriões, cujo sistema nervoso central nem sequer começou a se formar, e que se demonstram inviáveis, não podem ser equiparados moral ou juridicamente a uma pessoa, enquanto experiência existencial única, fecho de emoções, sentimentos e potencialidade de uma existência autônoma”, avalia Oscar Vilhena Vieira, diretor-jurídico da Conectas.

Fonte: Carta Capital
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