Os aeroportos parecem encarnar a última fronteira dos Estados e da sua paranóia nacional-soberanista, anti-imigrantes, que barra gente, num capitalismo em que tudo pode circular: mercadorias, informação, droga, imagens. Os fluxos do mercado não podem ser barrados, mas as pessoas são impedidas de ir e vir, de trabalhar, de se deslocarem seja pela necessidade, seja pelo desejo.
Entrar nos EUA (e outros países) virou uma operação de guerra, cômica e triste. As operações de segurança das empresas aéreas começam na fila de embarque: recebeu algum pacote de estranhos? Fez sua própria mala em casa? Alguém ajudou a fazer a mala? Deixou a mala onde nas últimas 24 horas? Tem algum objeto cortante na bolsa de mão, mais de 100mg de liquido (explosivo potencial), isqueiros, tesourinha de unha, faca, objetos “perfurantes”? ....Ao lado do sistema de raio X de algumas empresas aéreas uma urna transparente com centenas de pequenos objetos apreendidos, uma vitrine que tenta neutralizar a raiva e impotência de quem tem objetos retidos, é o índice da paranóia pós-11 de setembro, que transformou qualquer bolsa de mulher num arsenal de guerra e terror e todos nós em “portadores” de ameaças inomináveis a sociedade.
Uma segunda provação ao pisar em solo norte-americano (ou seja, no primeiro Aeroporto de entrada): centenas de passageiros vindos dos países mais diferentes tem que se “despir”, se expor, em público, e seguir em fila disciplinadamente para a inspeção em série, mas individualizada, um a um nos submetemos a esse dispositivo de poder, semi-automatizado, somos monitorados e “varridos” por um olho sem olhar (a máquina de raio X) e por olhares, dos vigilantes, segurança, alfândega, carregados de pressupostos, seguimos mudos e resignados.
Todos tiram os sapatos obedientes, solados grossos são examinados, todos tiram os casacos e sobretudos obedientes, as chaves, o celular, uns tiram o cinto que apitou na máquina detectora de metais, bolsas esvaziadas, removidos, enfeites de cabelos, botas, uma mulher com a roupa cheia de tachinhas metálicas quase fica nua na tentativa de se livrar do apito da máquina, um casal de velhinhos tem que passar mais de 10 vezes explicando que tem próteses metálicas no corpo e não poderão retirar as pernas.... Grávidas, gente fora de forma com uma barriga mais protuberante são apalpados em busca de um disfarce ou barriga falsa.
Todos somos portadores virtuais de risco e terror e o monitoramento e varredura dos corpos transforma a saída da máquina de Raio X num desconcertante “closet” coletivo, ante-sala das promessas de “liberdades”. Ali estão desalinhados, desarrumados, brancos, negros, homens, crianças, mulheres, descalços, em mangas de camisa, tentando se recompor do poder de policia do Estado.
Alguns não vão entrar ou serão retidos ainda por motivos outros: o desejo de migração se tornou crime, mulheres jovens, principalmente, desacompanhadas e sem cartão de crédito internacional ou mil dólares em dinheiro podem ser deportadas.... Estrangeiros seguirão depois por uma fila, cidadãos do país por outra.
Varredura, monitoramento, “triagem”, hierarquia, o sistema de poder sobre os corpos é violento e ao mesmo tempo semi-automatizado, o que cria a impressão que o poder é “impessoal”.
Mas o que vemos nos aeroportos é que todos os preconceitos raciais, econômicos, estereótipos culturais, paranóias coletivas,intolerância, todas as doenças sociais contemporâneas são atualizadas em nome das fronteiras e soberania do Estado.
Essa é a primeira lição de “nacionalismo” que qualquer viajante, turista, migrante aprende. O Estado-Nacional é a polícia do mundo, num contexto global de co-dependência em que a mobilidade, o nomadismo, a necessidade, o desejo, movem os fluxos, e que estamos em rede e em contato....os corpos são barrados, despidos, monitorados, identificados, rastreados.
A paranóia nacionalista, delimitação de territórios “soberanos” alimenta o folclore da internet, com mapas brasileiros que circulam sem a região Amazônica, adulterados supostamente por uma conspiração norte-americana de “internacionalização da Amazônia”, quando os territórios coorporativos, nacionais ou estrangeiros, já estão lá (sem necessidade de guerra territorial) com inúmeros negócios, predatórios ou não.
Distinto desse nacionalismo “proprietário”, os índios que vivem na Amazônia têm a floresta como “comunidade imaginada”, contínua, e entram e saem pelas fronteiras do Brasil com a Bolívia, com a Venezuela, com o Peru, experimentando há mais de 500 anos uma outra idéia de “nação”, como comunidade imaginada, fabulada, mais do que delimitada pela posse e propriedade. O que poderia ter sido esse nomadismo-global sem fronteiras, que não descarta a singularidade, territorializações e diferentes estilos de cultura? Hoje experimentamos essa possibilidade de lutas e vivências nômades “glocais” (globais e locais).
A “soberania nacional” (e a “cultura nacional”) tem sido geralmente invocada para defender interesses proprietários (um nacionalismo de mercado, muito conveniente), como reapareceu recentemente nas declarações do general Augusto Heleno, comandante militar da Amazônia, que se pronunciou contra a decisão da Justiça que determinava a saída de arrozeiros e não-índios da reserva de Raposa Serra do Sol (em Roraima), como se fossem os índios perigosos “separatistas” querendo uma terra “independente” em que os homens do agro-negócio não podem entrar.
Os índios brasileiros, de orgulho nacional, viraram “ameaça” a soberania. Impedidos de circular livremente pelas terras que foram suas, o que lhes restou, depois de perseguidos e massacrados, foram essas pequenas reservas, parques e “zoológicos” humanos, que ainda assim, querem tomar em nome da “soberania” do Estado brasileiro.
Esse “nacional” engessado cada vez tem menos sentido nas lutas globais, difícil é se livrar de um conceito (esvaziado) que ainda anima milicos e parte do empresariado, da universidade e da esquerda brasileira.
Fonte: Carta Capital
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