quarta-feira, 18 de junho de 2008

"NA CULTURA DOS BEM DE VIDA, POBRE É INIMIGO INTERNO"

por Luiz Carlos Azenha

Em editorial de 2 de maio de 2008 – "Guerra ao pobre" – o Correio da Cidadania lembrava que "na cultura dos bem de vida, o pobre é o seu inimigo interno. Inimigo é aquele que quer nos destruir e que, portanto, precisa ser destruído. Nega-se a humanidade do pobre, a fim de justificar moralmente a guerra que se trava contra ele nas favelas e periferias, seja no apoio às medidas que facultam às polícias agir com maior truculência, seja pela audiência enorme dos programas de televisão que enaltecem a violência policial e ridicularizam os que a ela se opõem."

A história de Sandro Wellington de Jesus, de 24 anos, e da defensora de direitos humanos Valdênia Paulino, sua testemunha de defesa, contada na narrativa abaixo em minúcias, mostra como se orquestram instituições do Poder Judiciário e do aparelho repressivo do Poder Executivo – a Polícia Militar – para reduzir todos os espaços de vida e do comezinho direito de defesa de um pobre.

Há muitos Sandros em São Paulo e no Brasil. Só que neste caso temos a oportunidade de acompanhar passo a passo de que maneira todas as chances de sobrevivência lhe foram retiradas, constituindo uma das mais brutais injustiças, permeada a toda uma série de humilhações a todo o seu grupo social, familiares e vizinhos, moradores da Favela do Jardim Elba, de Sapopemba, cidade de São Paulo. É que ele faz parte da classe dos "inimigos", os pobres.

Nesta história vemos um jovem de 20 anos, negro e favelado, que apenas estava atravessando uma viela para alcançar a avenida, na madrugada de 23 de outubro de 2004, e tomar o ônibus de uma excursão que faria, quando foi alvejado por uma bala perdida disparada por policiais militares que naquele momento matavam Paulo Maciel, um adolescente de 17 anos. Ou, como disse o promotor quatro anos depois, "mais um bandido morto". Sandro ferido fugiu para sua casa e, sabendo que se fosse pego ferido seria preso, agüentou a dor do ferimento até o dia amanhecer. Ao ser atendido no hospital foi preso pelos mesmos policiais da madrugada sob a acusação de traficante e homicida. Ficou preso por um mês mas conseguiu a liberdade provisória.

No entanto não soube e nem foi avisado de que seu processo corria e que estava sendo acusado de tentativa de homicídio contra os três policiais militares que atuaram na madrugada de 23 de outubro de 2004. Um dia, ao tentar tirar um documento no Poupatempo, foi preso.

No dia do seu julgamento, em 16 de janeiro de 2008, depois que toda a comunidade se mobilizou em solidariedade a ele e à sua mãe, depois que o CDHS (Centro de Direitos Humanos de Sapopemba) colaborou ativamente na consecução das provas que demonstravam que ele apenas passava por ali para pegar o ônibus de sua excursão, ele e todo o seu grupo social, os favelados do Jardim Elba, foram ridicularizados e injustiçados. Foi uma clara demonstração de que há, no Brasil, cidadãos de pleno direito e o "outro", a classe dos pobres, aquele inimigo invisível que mora lá do outro lado da cidade e que não tem direito algum.

Durante o julgamento, tanto a juíza como o promotor se permitiram frases ofensivas atingindo o adolescente morto, sua mãe (ausente por temer comparecer), toda a comunidade da favela do Jardim Elba presente, qualificada pela juíza de "esse tipo de gente" e as testemunhas de defesa, desqualificadas e humilhadas. Neste cenário hostil e com o clima criado pelas observações preconceituosas, os jurados condenaram Sandro, por quatro votos a três, a 24 anos de reclusão.

O documento que apresentamos em seguida é o relato detalhado dessa história, feito pela advogada Valdênia Paulino, do CDHS e testemunha de defesa de Sandro. Feito ainda sob a emoção do que foram as 14 horas do julgamento, apenas quatro dias depois, com esse resultado dramático de uma vida perdida no inferno do sistema prisional brasileiro.

Mal sabia ela que a gana de destruição do inimigo invisível que é o pobre - essa "gentinha" - teria prosseguimento. O próprio promotor do caso abriu um processo indiciando Valdênia e a Sra. Olga Regina Erwitz da Silva (a mãe de Paulo Maciel, o adolescente executado em 2004 e que nem sequer compareceu ao julgamento) por "falsidade ideológica" (Inquérito Policial nº 485/08). E anexou como demonstrativo os próprios documentos do julgamento de Sandro.

É por tudo isso que Valdênia Paulino conclui seu relato sobre o caso de Sandro afirmando que a causa da condenação é, em essência, a sua condição de pobre. Há, seguramente, muitos milhares de Sandros pelo Brasil afora. Mas é estarrecedor conhecer a narrativa detalhada que mostra que enquanto as forças policiais exercem a truculência, autoridades judiciais impedem o direito de defesa dos pobres e humilham a condição de pobreza, criminalizando-a como tal. No Brasil, os pobres são o "inimigo interno", as "classes perigosas" que é preciso exterminar. Mas elas teimam em lutar por justiça e semear esperança, onde só há injustiça e dor.

Observatório das Violências Policiais-SP
junho de 2008


"Olha, que tipo de gente!" Sandro Wellington de Jesus, 24 anos


por Valdênia Aparecida Paulino

Sandro é um dos seis filhos de Marisa. Não sei dizer o nome do pai, pois a mãe criou, praticamente sozinha, seus filhos na favela do Elba. Muito se orgulha pelo fato dos filhos não terem virado "bandidos".

Sandro cresceu dentro da favela cercado por jovens envolvidos com tráfico de drogas e outros tipos de práticas ilícitas. Contudo, afirma que seu envolvimento foi experimentar baseado (cigarro de maconha) por duas vezes. A única vez que esteve na Febem, não foi porque estava traficando, mas porque foi levado junto com outros jovens apreendidos. Na ocasião, a autoridade judiciária da infância aplicou a medida socioeducativa de liberdade assistida a fim de possibilitar que Sandro tivesse o atendimento da assistência social. Tanto é que seu acompanhamento foi muito tranqüilo e ele nunca mais teve qualquer passagem pela Vara da Infância ou Delegacia de Polícia. Ademais, a exemplo de outras pessoas que moram na favela, Sandro foi abordado várias vezes por policiais e em seguida liberado.

Quando criança, sempre participou das atividades dos projetos sociais em horários extra-escolares. Quando adolescente, tomou parte em atividades culturais promovidas pelo Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Mônica Paião Trevisan. Era também ativo na Comunidade Católica São José Operário.

Sandro sempre gostou de trabalhar. Fazia bico aqui e ali. Ajudava a família e "curtia" as meninas.

Quantas vezes, entre educadores e lideranças da comunidade, comentamos a história de Marisa, mãe de Sandro: morar num barraco tão pequeno com tantos filhos, zelar por todos eles em situação social tão adversa à dignidade humana e estar sempre bem-humorada e solidária. Todos os seus filhos trabalham e se ajudam.

Quanto ao Sandro, este sentia-se muito satisfeito porque estava obtendo bons rendimentos no lava-rápido na cidade de Santo André e, finalmente, podia ir para excursão à Aparecida do Norte no dia 23 de outubro de 2004, organizada por dona Celeste, uma moradora da favela.

Não sabia Sandro que tentar participar da excursão iria lhe custar a liberdade.

Para entender melhor o que vem depois, precisamos descrever a região onde mora e a relação com o Poder Público.

Jardim Elba é uma das 32 favelas da região de Sapopemba, zona leste de São Paulo. Esta favela faz divisa com a cidade de Santo André. Muitas pessoas desta favela trabalham, estudam e fazem uso dos serviços na cidade de Santo André devido à proximidade.

Por estar na divisa entre a cidade de São Paulo e a cidade de Santo André, e também próxima às cidades de São Caetano e Mauá, a favela se tornou um ponto estratégico para práticas delituosas. Durante muitos anos, a presença do Poder Público se deu apenas através da polícia, que, na maioria das vezes, aparece para fazer acertos com traficantes e maltratar os moradores.

Para os moradores o desafio é sobreviver entre a violência dos jovens envolvidos na criminalidade, a violência policial e o descaso do Poder Público.

Naquela região há uma creche e um centro de saúde que ficam em um espaço cedido pela Igreja Católica. Não existem atendimentos diretos da Prefeitura ou do Estado. Qualquer outro recurso, como a escola, deve ser buscado fora do bairro.

A violência policial na região já foi objeto de várias denúncias. Para ilustrar, segue abaixo uma lista de práticas cometidas pelos agentes do Estado que deveriam promover a segurança:

- violência sexual contra adolescentes usuárias de drogas;

- tortura contra moradores;

- extorsão contra jovens que cumprem livramento condicional;

- abuso de autoridade e tratamento vexatório (tal como abrir marmita de trabalhador e jogar a comida fora dizendo que "se é para levar aquilo como comida era melhor não comer"; rasgar documentos porque, dizem, bandido também tem documento; etc.);

- invasão nas casas sem ordem judicial;

- prisões com flagrante forjado;

- roubo de objetos nas casas invadidas;

- calúnia e injúria (ofendem as pessoas, chamam as mães de vagabundas, entre outras palavras de baixo calão);

- execução sumária.

Além das práticas acima relatadas, é muito comum ter incursões da polícia acompanhada pela mídia sensacionalista. Todas as vezes que a região aparece na televisão através de uma situação de violência, dias depois cresce o número de pessoas que, sem saber o porquê, perdem o posto de trabalho.

Outro aspecto preocupante para a população se dá na prática dos registros das pessoas abordadas. Os agentes policiais, 99% homens, abordam as pessoas com critérios aleatórios, revistam as pessoas, anotam seus nomes na lista dos averiguados e as dispensam. Nunca nos foi dito para onde vão esses nomes. Contudo, estas listas já foram utilizadas por policiais em processos criminais para justificar as arbitrariedades cometidas pelos mesmos nas favelas. A apresentação das listas dos averiguados servem de álibi para dizer que naquela região há muita violência.

Essa prática já foi mais intensa. No ano de 2004 conseguimos realizar várias audiências públicas com a presença de representantes do Ministério Publico, Poder Legislativo Estadual e Municipal, professores universitários, representantes de entidades de Direitos Humanos, entre outras autoridades. Nestas audiências os moradores fizeram as denúncias e buscaram providências junto às autoridades competentes. No ano de 2005 começamos a sentir algumas mudanças positivas com relação à atuação da polícia, seja civil, seja militar.

É neste contexto social que Sandro heroicamente chega vivo aos 24 anos de idade.

Não obstante as dificuldades do cotidiano, a vida seguia e, finalmente, chegara o dia 23 de outubro, dia em que Sandro iria participar da excursão para a cidade de Aparecida do Norte.

Na noite do dia 22, Sandro vai com a namorada - ou "ficante", como denominam os jovens - para o forró até chegar o horário de partida da excursão. O forró ficava próximo precisamente da Avenida Marginal do Oratório, paralela à rua da qual sairia o ônibus da excursão. Ali cada bar tem um aparelho de som e um forró tocando.

Alcançadas as 4h00 da manhã, Sandro sai do forró em direção ao ônibus. Quando passava na altura do nº 900 foi atingido por um tiro disparado por policiais que alvejavam outro jovem de nome Paulo Maciel. Paulo foi executado ali mesmo. Sem saber o que estava acontecendo, Sandro correu em direção à sua casa e ali ficou até às 6h30, quando se dirigiu ao Hospital Santa Casa, de Santo André, para ser socorrido. Teve que agoniar na dor da ferida até ter certeza que os policiais já haviam saído da favela. Pois quem mora ali sabe que a polícia primeiro mata e depois pergunta quem é, como se estivessem em uma infindável guerra civil.

Sandro foi socorrido, mas foi retirado do hospital pelos mesmos policiais que atiraram nele. Foi levado para o 70° DP e lá acusado de ser traficante e homicida. Depois de ficar preso por um mês, foi beneficiado pela liberdade provisória, pois não havia provas que sustentassem sua prisão.

Na ocasião, Sandro pediu para que não fosse dada continuidade às denúncias que tínhamos feito contra os policiais, pois tinha medo da ameaça de matar seus irmãos e sua mãe, feita pelos policiais, caso a denúncia contra estes se concretizasse.

Concedida a liberdade provisória, Sandro continuou a trabalhar. Com o passar do tempo conseguiu trabalho registrado, construiu ele mesmo um cômodo para morar com sua companheira com a qual tem um filho e seguia sua vida. Este cômodo fica ao lado da casa de sua mãe, local onde nasceu e se criou sem nunca ter mudado dali.

Um dia foi ao Poupatempo tirar um documento e ficou detido. A partir daí Sandro iria descobrir que sua situação de pobreza seria sua pior sentença. Assim como o foi para tantos outros jovens da favela.

A partir deste momento vamos acompanhar a trajetória de Sandro até o dia 16 de janeiro de 2008, dia do seu julgamento.

Sandro é preso porque não havia comparecido a uma audiência da qual ele nunca recebeu intimação. Segundo o oficial de justiça, o seu endereço não fora localizado. Por ironia a casa de Sandro é uma das mais fáceis a ser localizada na favela porque fica próxima à rua de asfalto.

Desde então a mãe de Sandro procurou o CDHS e passamos a orientá-la. A primeira atitude foi telefonar a uma defensora de confiança para que nos indicasse um bom defensor público. Afinal tratava-se de uma pessoa inocente presa injustamente. Esta orientou a mãe de Sandro a levar documentos que fossem importantes para a defesa até o Fórum Criminal da Barra Funda. Ajudamos Marisa, mãe de Sandro, a preparar o material: cópia da denúncia na Ouvidoria de Polícia; cópia da lista das pessoas que iriam viajar para a cidade de Aparecida do Norte no dia 23 de outubro de 2004; cópia de comprovante de trabalho e endereço; cópia da certidão de nascimento do filho; nomes de testemunhas, inclusive o meu.

Ao chegar ao Fórum, Marisa entregou os documentos a uma moça da sala da Defensoria. A cada ida ao Fórum Marisa falava com um defensor diferente. Sempre diziam que o anterior estava de férias ou em outra atividade. Em um ano Sandro teve cinco defensores diferentes. Dada a mudança contínua de defensor, a Dra. Renata, advogada do CDHS, chegou a ligar várias vezes e falar com uma defensora. Olhando o processo se observa que os defensores que passaram pelo caso se manifestaram nos autos, mas o caso nunca teve titular.

Preocupada com a situação de Sandro, procurei um promotor em quem confiava e pedi orientação, pois Sandro era inocente. O mesmo disse que eu o procurasse com os dados do processo, que iria ver o que se poderia fazer. Ironia do destino, era ele o promotor do caso. Por conta de trabalhos profissionais acabei procurando o promotor apenas dias antes do júri. Este me disse que iria dar trabalho no julgamento do Tribunal de Júri, pois não acreditava na inocência de Sandro. Tentei argumentar, demonstrando através de recortes de jornais, o quanto a polícia era truculenta na região. Mostrei a cópia da denúncia que fizemos à época, na Ouvidoria de Polícia, e relatei que conhecia o jovem, que havia ouvido muitas pessoas e que Sandro era inocente.

Procurei, dois dias antes do júri, o defensor que iria fazer a defesa. O defensor estava de férias e quem iria fazer a defesa era o Defensor Dr. Ricardo. Faltando dois dias para o Júri, o caso ainda não havia sido estudado. Contudo, Dr. Ricardo nos acolheu, ouviu o que tínhamos a dizer e se comprometeu a estudar com mais carinho o caso.

Sandro nunca soube quem fora seu defensor, pois cada vez que ia ao Fórum havia um rosto diferente. Somente com o nosso auxílio soube antecipadamente que no Júri iriam defendê-lo os defensores Dr. Ricardo e Dr. Mário.

Saliente-se que os jurados eram todas pessoas que habitam em ruas asfaltadas, ou seja, desconhecem como a vida se realiza em uma favela. A maioria deles tinha nível universitário.

A Juíza: como se não bastasse a expressão de desprezo em seu rosto ao olhar para os familiares de Sandro e para as pessoas da comunidade que atravessaram a cidade para acompanhar o julgamento, ainda disse para um funcionário, referindo-se às pessoas ali presentes: "Olha o tipo desta gente." Determinou que a qualquer conversa ou manifestação, ainda que no horário de intervalo, os policiais retirassem "aquelas pessoas" da sala da audiência.

Como fui testemunha de defesa, fiquei sem assistir boa parte das oitivas das testemunhas.

Depois soube que os policiais caíram várias vezes em contradição, mas foram tratados com respeito. As testemunhas de Sandro, pelo contrário, foram ali inquiridas como se tivessem cometido os piores crimes contra a humanidade. O pior estava por vir nos debates.

A testemunha que organizou a excursão, uma senhora, foi ofendida todo o tempo como criminosa perigosa somente pelo fato de ter duas filhas que respondem processo-crime e um filho doente. Ao final do Júri esta senhora disse: "Hoje eu fui julgada com o Sandro e condenada com ele."

Depois de mais de 23 anos de trabalho com reconhecimento nacional e internacional, eu sou apontada pelo promotor como quem passa a mão na cabeça de "bandido".

Um senhor de 72 anos, que foi uma das testemunhas dos fatos antecedentes, foi completamente ignorado. Como se o seu parecer sobre sua comunidade e conhecimento da pessoa de Sandro não fizesse nenhuma diferença para a humanidade.

Para sustentar a acusação, o Promotor santificou os policiais e antecipou aos defensores públicos que se eles dissessem qualquer coisa contra os policiais seriam processados. Não parou ai. Ofendeu pessoas públicas de nível nacional e internacional, como o Presidente da República e um médico legista citado ocasionalmente, entre outras pessoas que nada tinham com o caso e sequer tinham seus nomes citados nos autos.

Dentre os questionamentos do Promotor, estavam os seguintes argumentos:

- Por que alguém iria a um forró para depois ir a Aparecida do Norte?

- Por que uma pessoa do Jardim Elba é socorrida na cidade de Santo André e não na cidade de São Paulo?

- Ao se referir à morte de Paulo Maciel, executado pelos policiais militares na madrugada do dia 23 de outubro de 2004, ressaltou que se tratava apenas de mais um bandido morto.

- Ressaltou ainda que é um absurdo a família do Sandro estar recebendo auxílio reclusão, que tal benefício é "bolsa-bandido"; e ainda que, neste caso. seria melhor que Sandro continuasse preso, pois assim a família continuaria recebendo às custas dos trabalhadores a "bolsa-bandido".

A Defesa foi muito respeitosa e procurou o tempo todo trabalhar em cima de fatos e da lei.

Sala secreta: ouvimos o grito da juíza e depois soubemos também que o corpo de jurados teve dúvidas em alguns quesitos, mas que não lhes foi permitido uma nova apreciação dos mesmos. Segundo os Defensores, se a Juíza houvesse permitido o esclarecimento Sandro teria sido absolvido. Afinal Sandro foi condenado por quatro votos contra três, sendo prolatada a sentença de 24 anos de reclusão.

Sandro continua preso.

A comunidade está ofendida e desacreditada da Justiça.

Os policiais militares estão autorizados a matar.

Passaram quatro dias para que eu tivesse forças para relatar aquela tarde, noite e madrugada, pois chegamos ao Fórum Criminal da Barra Funda às 12h30 e saímos as 2h30 da madrugada.

Meus sentimentos ficaram muito misturados, confusos.

O Sandro é inocente e um excelente rapaz. Paulo Maciel foi executado por aqueles policiais.

O Promotor é conhecido por sua seriedade, e eu mesma já fui testemunha arrolada por ele em um caso. Dessa vez atuou com ética, técnica e emoção. Mas nada que aproximasse ao que aconteceu no dia 16 de janeiro no Júri do Sandro. Mesmo no caso do Sandro, conversou comigo e deu orientações. Difícil de entender a manifestação de tanta raiva e agressividade quando ele sequer conhece Sandro, sua família e sua comunidade.

Foram dois os Defensores que atuaram na defesa no Júri: Dr. Ricardo e Dr. Mário. Dois jovens recém ingressados na carreira. Apesar de pegar o caso dias antes da audiência fizeram o que foi possível dentro daquele tempo. Mas isto não exime a responsabilidade da Defensoria no curso de todo o processo.

A equipe do CDHS, consciente do desconhecimento da realidade por parte da Defensoria Pública e da Promotoria de Justiça, fez um acompanhamento in loco, ou seja, seguimos o processo no balcão do cartório.

A Ouvidoria de Polícia, quando procurada um dia antes do julgamento, nos informou que iria enviar um ofício para saber como estava o caso. O Promotor havia pedido o arquivamento do inquérito contra os policiais vários meses antes.

As pessoas do corpo de Jurados eram boas, muito boas, mas não conhecem favela, não moram em favela, muito provavelmente nem moram em bairro de periferia. Não conhecem de perto a prática cotidiana da polícia nas favelas. Os jurados ouviram do Promotor que os policiais representam o Estado e que trabalham para proteger a população, que na favela só tem bandido e tráfico de drogas. Assim, uma condenação de quatro votos contra três aponta que os jurados não são estúpidos.

Todo este processo me tocou no mais íntimo e no mais profundo do que alcanço do conceito de Justiça. Assim, se queremos o mínimo de justiça, será preciso repensar o corpo de jurados.

Por exemplo: os operadores da lei (juízes e promotores, salvo raríssimas exceções) vêm das classes média e alta. Não conhecem o que é pobreza e muito menos a dinâmica dos bolsões de miséria. A proteção é sempre em desfavor do negro e do pobre. Há juízes e promotores que pisam no barro, mas esses são raros e perseguidos dentro do próprio Sistema Judiciário.

Entretanto, ainda nos resta uma alternativa: os jurados. Segundo a normativa legal, os jurados devem ser pessoas do povo, pessoas que representem a sociedade. Se a pessoa que esta sendo julgada é da favela, se o fato ocorreu na favela, seria oportuno e legal ter pessoas que representem esta parte da sociedade, que até hoje sequer é considerado parte da chamada "sociedade". Afinal, a presidente daquele Tribunal do Júri, Meritíssima Juíza, se referiu às pessoas desta parte da sociedade como: "Que tipo de gente!"

Se é certo que para julgar é preciso conhecer, então vamos realizar uma campanha para inscrever pessoas das favelas, a fim de inclui-las no corpo de jurados do Tribunal do Júri. Desta forma, os jurados saberão o que é sair para ser socorrido só depois que a polícia não estiver mais na rua.

Sandro é um preso político.

Está preso por conta da condição de pobreza em que foi criado e em que vivia quando alvejado por um policial.

Ainda dá tempo.

Valdênia Aparecida Paulino


Fonte: Vi o Mundo


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: