terça-feira, 1 de setembro de 2009

Um Brasil que teme o Brasil

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por Carlos Motta


No seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1989, Ariano Suassuna fez um observação que se presta muito aos dias de hoje:

"Um dia, lendo Alfredo Bosi, encontrei uma distinção feita por Machado de Assis e que é indispensável para se entender o processo histórico brasileiro. Ele critica atos do nosso mau governo e coisas da nossa má política. Mostra-se ácido e amargo com uns e outras depois explica:
Não é desprezo pelo que é nosso, não é desdém pelo meu País. O 'país real', esse é bom, revela os melhores instintos. Mas o 'país oficial', esse é caricato e burlesco."

O autor da consagrada "Auto da Compadecida", a peça teatral mais encenada nos palcos brasileiros, e do grandioso "Romance d'A Pedra do Reino", prosseguiu, na ocasião:

"Quando eu quis que o uniforme que uso agora fosse feito por uma costureira e uma bordadeira do Recife, Edite Minervina e Cicy Ferreira, estava levando em conta a distinção estabelecida por Machado de Assis e uma frase de Ghandi que li aí por 1980, e que me impressionou profundamente. Dizia ele que um indiano verdadeiro e sincero, mas pertencente a uma das duas classes mais poderosas de seu país, não deveria nunca vestir uma roupa feita pelos ingleses. Primeiro, porque estaria se acumpliciando com os invasores. Depois, porque estaria, com isso, tirando das mulheres pobres da Índia um dos poucos mercados de trabalho que ainda lhes restavam.

A partir daí, passei a usar somente roupas feitas por uma costureira popular e que correspondessem a uma espécie de média do uniforme de trabalho do brasileiro comum. Não digo que fiz um voto, que é coisa mais séria e mais alta colocada nas dimensões de um profeta, como Gandhi, ou de um monge, como Dom Marcos Barbosa. Não fiz um voto; digamos que passei a manter um propósito. Não pretendo passar pelo que não sou. Egresso do patriarcado rural derrotado pela burguesia urbana de 1889, 1930 e 1964, ingressei no patriciado das cidades como o escritor e professor que sempre fui. Continuo, portanto, a integrar uma daquelas classes poderosas, às quais fazia Gandhi a sua recomendação. Sei, perfeitamente, que não é o fato de me vestir de certa maneira, e não de outra, que vai fazer de mim um camponês pobre. Mas acredito na importância das roupagens para a liturgia, como creio no sentido dos rituais. E queria que minha maneira de vestir indicasse que, como escritor pertencente a um País pobre e a uma sociedade injusta, estou convocado, 'a serviço'.

Pode até ser que o País objete que não me convocou. Não importa: a roupa e as alpercatas que uso em meu dia-a-dia são apenas uma indicação do meu desejo de identificar meu trabalho de escritor com aquilo que Machado de Assis chamava o Brasil real e que, para mim, é aquele que habita as favelas urbanas e os arraiais do campo. Voltarei depois a este assunto, de tal modo é ele importante na minha visão do mundo e, em particular na do nosso país, a esta altura submetido a um processo de falsificação, de entrega e vulgarização que, a meu ver, é a impostura mais triste, a traição mais feia que já se tramou contra ele."

Em inúmeras oportunidades, Suassuna voltou a esse tema.

Os trechos das duas entrevistas abaixo são um ótimo exemplo de como ele dá importância para a concepção machadiana:

- Qual é a pior doença e qual é a melhor cura para o Brasil de hoje, às vésperas do ano 2000 ?

- Ariano Suassuna: Machado de Assis fez uma distinção definitiva entre o Brasil oficial e o Brasil real que, a meu ver, é o do povo, o do "Quarto Estado''. As maiores doenças nossas têm origem no Brasil oficial e a cura só lhe pode vir do Brasil real. As pessoas que sustentam ideias diferentes das nossas parecem pensar: ''O Brasil oficial é o problema; na Europa e nos Estados Unidos está a solução''. Eu acho que o Brasil oficial é o problema, no Brasil real está a solução. Ou, um pouco à moda de Unamuno (Miguel, poeta e filósofo espanhol): "O Brasil é o problema,o Brasil é a solução".
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- O senhor recorre a um artigo escrito por Machado de Assis em 1870 para falar de um Brasil real e de um Brasil oficial. Essas definições ainda valem hoje em dia?

Ariano Suassuna: Machado de Assis diz que o país real é bom, revela os melhores instintos, mas o oficial é caricato e burlesco. Não sei se fazendo violência ao pensamento de Machado de Assis, identifico o Brasil oficial com as classes privilegiadas e o Brasil real com o Brasil do povo, dessa imensa maioria de despossuídos que, a meu ver, é a fonte da grande esperança que eu tenho no meu povo. Se Machado de Assis fosse vivo, constataria que o país real continua bom, revelando os melhores instintos, e o país oficial ficou ainda mais caricato e burlesco.
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Como se vê, pouca coisa mudou no Brasil desde Machado de Assis - e desde que Ariano Suassuna fez uso pela primeira vez do resumo que o notável escritor e cronista apresentou deste país.

O que se vê hoje é o Brasil oficial reagindo desesperado à ameaça de perder alguns míseros privilégios em favor do Brasil real.

Machado de Assis, creio, quando fez essa distinção entre os dois Brasis, não havia lido Karl Marx.

Suassuna, quando descobriu Machado de Assis, certamente já conhecia a obra do filósofo alemão.

Nacionalista extremado como é, ele prefere usar o grande escritor brasileiro para se referir a um dos conceitos básicos do marxismo.

Pode parecer incrível para alguns, mas a velha luta de classes continua mais viva do que nunca.

Fonte: Crônicas do Motta

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