quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Um bilhão de favelados

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Raquel Rolnik*


Entrevista publicada na Folha Universal (tiragem de 2,7 milhões de exemplares!!!) em 6 de setembro de 2009.


Por Gisele Brito

A violência das recentes reintegrações de posses de terrenos particulares ocupados em São Paulo traduz em cores fortes a carência habitacional do País. Ter uma casa própria não passa de sonho para grande parte dos brasileiros. Com déficit de oito milhões de casas, a habitação é um dos nossos principais problemas. Mais de 34,5% dos brasileiros vivem em moradias inadequadas. A urbanista e professora da Universidade de São Paulo (USP), Raquel Rolnik, que há mais de 1 ano ocupa o cargo de Relatora Internacional do Direito à Moradia Adequada do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), fala sobre esse grave problema: “Os lugares bons, urbanizados, com infraestrutura, estão bloqueados para os pobres.”

1 – O direito à moradia se resume a ter um teto?

Não, absolutamente. De acordo com os tratados internacionais na área de direitos humanos, moradia adequada é um lugar no qual a pessoa ou família tem acesso aos meios para uma sobrevivência com dignidade. Acesso a tratamento de água e esgoto, coleta de lixo, iluminação pública, pavimentação, arborização. A existência de um bairro que tenha equipamentos de saúde e educação. O acesso ao emprego, às oportunidades econômicas e culturais.

2 – E na área rural?

No meio rural, uma moradia adequada é um lugar onde a família pode plantar, pode distribuir seus produtos, ter água para irrigar sua plantação, ter acesso à estrada.

3 – Segundo o IBGE, 34,5% dos brasileiros vivem em condições inadequadas. O que isso acarreta?

Significa que as oportunidades estão muito limitadas, bloqueadas. E é por isso que o lugar onde a pessoa vive é uma engrenagem muito importante da concentração de renda e de oportunidades no Brasil. O lugar tem a ver com a ideia de quem é cidadão e quem não é cidadão.

4 – A Defensoria Pública de São Paulo questiona como a prefeitura recupera áreas de proteção ambiental ocupadas. O que a senhora acha?

Nos casos de remoção, existem procedimentos que devem ser adotados para se respeitar o direito das pessoas. Não é chegar de madrugada com trator, derrubando casas e muito menos dando cheques que não permitem que aqueles moradores possam ter uma moradia, no mínimo, igual a anterior. Não é por acaso que a maior parte dos lugares em que as pessoas moram está em áreas que não podiam ser ocupadas.

5 – E por que isso acontece?

Os lugares bons, urbanizados, com infraestrutura, estão bloqueados para os pobres. E aí, acabam sobrando os lugares onde o mercado formal não pode entrar: beiras de córregos, encostas íngremes, áreas de preservação, mangues. Isso só vai parar se aumentar o acesso à moradia em lugar adequado para quem tem menos renda.

6 – O que a senhora pensa do programa do Governo Federal, “Minha Casa, Minha Vida”, que pretende investir R$ 34 bilhões para construir um milhão de casas?

É muito positivo uma decisão governamental de colocar dinheiro do orçamento para construir moradia popular para quem ganha de zero a três salários mínimos de renda familiar mensal, onde a moradia é inteiramente subsidiada. Até hoje, nunca houve dinheiro para produzir moradia para esse grupo. E muito positivo também dar bastante subsídios a famílias com renda de três a seis salários, que conseguem pagar alguma coisa, mas não tudo. Esse valor, de R$ 34 bilhões, é algo que a gente não viveu ainda. Mas, por outro lado, o “Minha Casa” não faz nenhuma exigência de que a localização seja adequada. E isso faz com que a gente possa prever que a totalidade das moradias de baixa renda vai ser na extrema periferia.

7 – O que a senhora acha dos muros nas favelas no Rio de Janeiro?

É uma ideia infeliz, para dizer a palavra mais leve que eu consigo em relação à proposta do governador Sérgio Cabral. É muito sintomática. O Rio de Janeiro foi um dos lugares onde mais chegou dinheiro do PAC Favelas (programa voltado para a urbanização de favelas). Na hora que a favela vai virar um bairro, se põe um muro. Para quê? Para deixar claro que aquilo não é um bairro, é outra coisa. Então, eu acho que isso é um sinal, um símbolo da política excludente que a gente tem no País, que não quer deixar o pobre fazer parte da cidade.

8 – Qual é o paralelo entre precariedade da habitação e a violência?

O fato do lugar dos pobres na cidade ser o lugar da irregularidade e o da precariedade urbanística tem a haver sim com a violência. Em um lugar sem regra é muito mais fácil a penetração de circuitos ilegais.

9 – Há outros fatores?

É aquilo de todo dia eu estar num lugar em que eu vejo onde o outro mora, o carro que ele tem, a condição de vida que ele tem, a escola que ele tem e, daí, eu olho a minha e comparo. Esse embate exacerba a violência. Quanto mais segregação, mais violência. Quanto mais muro, mais câmera, mais carro blindado, mais violência.

10 – O que a relatoria do direito à moradia tem observado sobre habitação no mundo?

Um bilhão de favelados no planeta. Um terço da população mundial vive em favelas. Eu vi situações bem piores que as favelas brasileiras. Em assentamentos na Ásia, na Índia e em alguns lugares da África, existem situações muito precárias. Mas, por outro lado, existem lugares que resolveram seus problemas de moradia. Claro que são países desenvolvidos e europeus, mas que já tiveram o problema e o enfrentaram.

*Raquel é urbanista, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada.

Fonte: Blog da Raquel Rolnik

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