quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Quando os pobres pagam pelos ricos

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Quando os pobres pagam pelos ricos.

Nosso sistema tributário tem atuado com um Robin Hood às avessas, que tira o dinheiro dos pobres para dar aos ricos. No topo da lista dos privilegiados, estão as grandes corporações (principalmente os bancos) e as multinacionais.

por Clair Hickmann*

Uma conta que poucos gostam de pagar é a dos impostos. Alguns privilegiados conseguem escapar, mas para o cidadão comum a conta aumentou muito nos últimos anos. Em geral, esquecemos que os tributos são também o preço da cidadania, fundamentais para financiar um conjunto de serviços - educação, saúde, previdência e assistência social - que depende da ação do Estado.
Mas não basta o Estado arrecadar tributos, é necessário cobrá-los do cidadão que tem capacidade contributiva. Caso contrário, o sistema tributário acaba sendo um Robin Hood às avessas, pois os tributos sobre o consumo oneram principalmete a classe de renda mais baixa, concentrando renda. O inverso ocorre quando a opção é por um sistema tributário progressivo, taxando mais o patrimônio e a renda. Há quem entenda que distribuição de renda se faz apenas via gastos sociais. Porém, diante da elevada concentração de renda no Brasil, é preciso atacar o mal de todas as formas.

COMO SE OBTEVE O AUMENTO DE ARRECADAÇÃO

A política tributária brasileira, a partir de 1995, foi determinante para as ações macroeconômicas que deram sustentação ao Plano Real. A superação da crise fiscal e a formação de superávit primário foram viabilizadas pelo aumento da arrecadação de impostos cumulativos sobre o consumo, agravando a regressividade do sistema tributário. A carga tributária subiu de 26% para 35%, de 1996 a 2006(1). Os tributos federais sobre o consumo aumentaram 110%, em termos reais, nos últimos dez anos.(2)

Esse aumento foi obtido, basicamente, com a majoração de alíquotas e base de cálculo de tributos sobre bens e serviços, como a Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), o PIS (Programa de Integração Social) e a criação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), além do aumento não legislado do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), congelando a tabela e as deduções do Imposto de Renda.

Atualmente, os tributos sobre o consumo representam 67% da arrecadação total, o imposto sobre a renda, 29%, e os impostos sobre o patrimônio, apenas 4% (3). Nos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ocorre o contrário: a arrecadação de impostos sobre consumo é menor do que a arrecadação de impostos sobre a renda, enquanto 7% recaem sobre o patrimônio (4).

Recente estudo realizado pela Fipe comprova a elevação da carga tributária das famílias de menor renda (5). Em 1996, a carga indireta sobre uma renda familiar de até dois salários mínimos representava 26,5% de sua renda; em 2004, esse número pulou para 45,8%. Para uma família com renda superior a trinta salários mínimos, a carga tributária foi de 7,3% e 16,4%, em 1996 e 2004, respectivamente.

O clamor por uma reforma tributária é grande, mas o debate gira em torno apenas da redução do tamanho da carga e não da melhor distribuição entre as bases de incidência. A participação nas discussões sobre o tema limita-se ao empresariado e ao governo, nos âmbitos municipal, estadual e federal. O cidadão comum participa muito pouco desse debate, apesar da "derrama" atual ser bem maior que os "quintos" dos tempos da Inconfidência Mineira.

O CONGELAMENTO DA TABELA DO IMPOSTO DE RENDA

Também pesou no bolso do brasileiro o congelamento da tabela do Imposto de Renda (IR), que deixou de ser corrigida no período de 1996 a 2001. Com isso, milhares de trabalhadores passaram a pagar IR. O cidadão que ganhava até 10,48 salários mínimos, em 1996, estava isento de Imposto de Renda. Em 2007, está isento apenas quem recebe até 3,46 salários mínimos.

O rendimento do trabalho do cidadão comum é taxado de forma implacável, na tabela progressiva, em até 27,5%, enquanto o rendimento do capital é isento ou sofre uma incidência bem mais suave e não é submetido à tabela progressiva. Os lucros e dividendos distribuídos aos sócios ficaram isentos, os rendimentos e ganhos de capital são tributados com alíquotas de 15% ou no máximo 20%. O tratamento diferenciado é gritante.

É preciso resgatar o Imposto de Renda como instrumento de distribuição de renda, aumentando a progressividade e tributando todos os rendimentos na tabela, independente da origem da renda.


BENEFÍCIO QUE FAVORECE GRANDES CORPORAÇÕES

Ao contrário do contribuinte comum (pessoa física), que tem sofrido a ação implacável do fisco para pagar a conta do ajuste fiscal, grandes grupos econômicos e rendas de capital receberam privilégios tributários. A maioria desses benefícios nem mesmo é computada como
renúncia fiscal no orçamento da União, apesar da exigência prevista no parágrafo 6º do artigo 165 da Constituição. Um dos benefícios fiscais, criado no final de 1995, é a permissão legal (6) para deduzir do lucro tributável uma despesa fictícia denominada "juros sobre o capital próprio", reduzindo com isso os tributos sobre o lucro - Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Essa inovação permite à empresa remunerar o capital próprio, pagando juros aos sócios e acionistas e deduzindo a suposta despesa do lucro. Grandes empesas com lucros fabulosos deixam de distribuir dividendos nos moldes típicos do sistema capitalista para distribuir juros aos sócios e aos acionistas, visando unicamente à redução do pagamento de tributos na empresa. Os maiores beneficiários desse incentivo são as grandes corporações, capitalizadas e lucrativas, principalmente bancos. Em 2005, os cinco maiores bancos brasileiros distribuíram aos seus acionistas R$ 6,1 bilhões de juros sobro o capital próprio, o que representou uma redução nos seus encargos tributários da ordem de R$ 2 bilhões (7).

Para os cofres públicos, somente em 2006, a distribuição de juros sobre o capital próprio significou uma renúncia fiscal da ordem de R$ 4,24 bilhões.

ISENÇÃO QUE PRIVILEGIA AS MULTINACIONAIS

Outro privilégio criado durante o governo FHC é a isenção de Imposto de Renda dos lucros e dividendos distribuídos. O lucro passou a ser tributado apenas na pessoa jurídica. Até 1995, os dividendos eram taxados na fonte ou na declaração anual de IR dos beneficiários. Na verdade, criou-se um privilégio para os rendimentos de capital. O princípio da isonomia foi ignorado.
Com essa isenção, os cofres públicos deixaram de arrecadar aproximadamente R$ 5,4 bilhões em 2006 (8).

Isentou-se também de imposto de renda a remessa de lucros e dividendos ao exterior (9). Até 1995, essas remessas eram tributadas em 15%. Estima-se a renúncia fiscal em R$ 4 bilhões para o ano de 2006 (10).

Esse benefício estimulou a remessa de lucros e dividendos ao exterior pelas multinacionais, batendo recorde em 2005, no valor de R$ 12,7 bilhões, maior montante desde 1947, segundos dados do Banco Central.
A soma desses três benefícios mencionados, em 2006, significa uma renúncia tributária a favor da renda do capital da ordem de R$ 13,4 bilhões.
Esses privilégios são desconhecidos pela maioria da populaçnao e os recursos que o Estado deixa de arrecadar com eles são omitidos do orçamento público (11).

O contrário acontece com os gastos que o cidadão comum deduz do imposto de renda. As despesas com saúde, educação e dependentes são computadas no orçamento da União como renúncias fiscais. Isso é um equívoco completo, porque tais gastos representam o mínimo existencial e, portanto, não podem ser considerados renda potencial a tributar. Como se vê, são dois pesos e duas medidas.

A estimativa do governo federal com desonerações de natureza tributária, para o ano de 2007, é de R$ 52,7 bilhões. Isso representa 2,29% do PIB e 12,79% da arrecadação tributária adminstrada pela SRF. Esses números são bastante questionáveis, visto haver renúncias tributárias expressivas não computadas, enquanto outras, que não representam potencial arrecadação, são consideradas benefícios fiscais. Além disso, há também benefícios e isenções concedidos pelos governos estaduais e municipais que têm gerado forte discussão, porque, muitas vezes, provocam guerra fiscal entre os entes federados. Mas esse é assunto para outro artigo. Meu objetivo aqui foi apenas mostrar que o privilégio de alguns é pago pelo cidadão comum.

*Clair Hickmann é auditora fiscal da Receita Federal. Foi diretora de Estudos Técnicos do Unafisco Sindical de agosto de 2001 a julho de 2003 e de agosto de 2005 a julho de 2007.

Notas:
(1) Cálculo feito com o novo PIB, reclaculado pelo IBGE.
(2) Hickmann, Clair Maria, e Salvador, Evilásio da Silva. Dez anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil. Brasília: Unafisco Sindical, 2006, p.30
(3) Fonte: Unafisco Sindical
(4) Dados da OCDE disponíveis em www.oecd.org
(
5) Ver Dez anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil, cit., p.28.
(6) Artigo 9 da Lei 9.249/95.
(7) Dez anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil, cit., p.36
(8) Foi considerada apenas a isenção de lucros e dividendos distribuídos das empresas que adotam o regime de apuração de lucro real. Valores estimados com base no DIPJ de 2000, aplicando a variação do IPCA.
(9) Artigo 10 da Lei 9.249/95.
(10) Remessa de lucros para o exterior convertidas à taxa de câmbio comercial média de 2006, aplicando a alíquota de 15% que vigorava até 1996.
(11) Ver www.receita.fazenda.gov.br: Demonstrativo de Benefícios Fiscais 2006 - SRF.

Fonte: Le Monde Diplomatique

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