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por Pedro Fiori Arantes*
Se o programa "Minha Casa, Minha Vida" pudesse ser resumido em uma metáfora futebolística, ele foi um "golaço" para tirar o setor da crise. "Golaço que estamos comemorando até hoje", passados quatro meses de seu anúncio, diz Celso Petrucci, diretor executivo e economista-chefe do Secovi (Sindicato das empresas imobiliárias de habitação).
Em debate na "Casa da Cidade", em São Paulo, organizado com apoio da Revista Retratos do Brasil, o diretor do Secovi afirmou que as maiores empresas aproveitaram o pacote para "desovar" seu estoque de terras e imóveis já construídos e sem compradores. Em menos de três meses foram apresentadas na Caixa Econômica Federal 180 mil unidades habitacionais que estavam com seus projetos e obras paralisados devido à crise, restituindo a liquidez do setor.
Para o "segundo tempo do jogo" não há mais terrenos de padrão popular nas mãos das principais empresas, o que vai significar uma nova rodada de compras no mercado de terras. Sabendo disso, os proprietários já estão se antecipando e elevando os preços, numa espiral especulativa que se sabe aonde chegará. As associações dos movimentos populares, por exemplo, já não estão mais conseguindo comprar terrenos desde o anúncio do pacote, pois os proprietários têm pedido mais de 100% do que queriam no início das negociações. Foi o que contou Evaniza Rodrigues, coordenadora da União Nacional de Movimentos de Moradia.
O diretor do Secovi confirmou ainda que, desde o final de 2008, com a crise internacional associada ao crescimento interno insustentável do mercado imobiliário, as grandes empresas do setor já estavam negociando com o governo federal um pacote de salvação – uma espécie de Proer para o mercado imobiliário. A primeira iniciativa foi permitir que a Caixa comprasse empreendimentos e mesmo parte do capital de algumas das empresas em maior dificuldade, o que significaria uma espécie de "estatização", que desagradava, contudo, o setor.
Foi então que o Ministério da Fazenda e a Casa Civil decidiram promover um pacote de ajuda com recursos da União e do FGTS cuja contrapartida seria o foco em habitação popular e para a classe média-baixa, famílias com renda mensal de até 10 salários mínimos. Segundo Petrucci, "Lula abraçou a idéia e decidiu que não ia terminar o mandato sem fazer algo para o setor da habitação". A injeção de recursos nas empresas passava então a ser condicionada ao seu compromisso em expandir o mercado popular, no qual já estavam envolvidas algumas das empresas que chegaram a ser das mais rentáveis do setor, como Tenda, MRV, HM e Rodobens.
Evaniza Rodrigues comentou, contudo, que, na primeira reunião de prestação de contas no Conselho das Cidades, enquanto dezenas de projetos já haviam sido aprovados para a faixa de 3 a 10 salários mínimos (a que mais interessa ao mercado), apenas quatro projetos foram aprovados para 0 a 3 salários, faixa que concentra mais de 80% do déficit habitacional brasileiro. Ela ainda contou ter sido apresentada à nova metodologia de análise dos empreendimentos pela Caixa Econômica baseada em fotos de satélite. Pressionados para "agilizar e aprovar tudo", os técnicos fazem a análise de empreendimentos sem vistoriar as áreas e traçam um círculo de raio de 1km em imagem do Google Earth para verificar a "inserção urbana" de cada projeto.
A relatora especial para o Direito à Moradia da ONU e professora da USP, Raquel Rolnik, confirmou que o motivo do pacote é mesmo "salvar o setor da construção, sobretudo as grandes empresas". E apresentou slides das experiências habitacionais de países como Chile e México, que foram implementadas com apoio do Banco Mundial e se tornaram modelos internacionais, inclusive para o Brasil. Petrucci confirmou ter ido com delegações de empresários ao México para conhecer o seu "modelo" de grandes conjuntos periféricos, mas afirmou que "aqui faremos melhor". Os conjuntos habitacionais de Santiago, por exemplo, foram erguidos em sua maioria por apenas 5 empresas e concentram ali bolsões de pobreza, violência e desemprego. As unidades habitacionais são mínimas e exigem a criatividade dos moradores inclusive para ampliar apartamentos, com puxadinhos que ficam pendurados para fora dos prédios sobre palafitas instáveis. Segundo Rolnik, ao interpelar um dos empresários sobre o desastre urbanístico e social que haviam produzido, ele respondeu cinicamente: "ganhamos muito".
Nabil Bonduki, coordenador da equipe técnica responsável pelo PlanHab, plano nacional de habitação que foi "atropelado", segundo ele pelo pacote, lembrou de diversas das "salvaguardas" que o plano previa para evitar um laissez-faire do mercado. Entre elas a existência de indicadores municipais de reforma urbana e de gestão participativa e também o subsídio à localização dos empreendimentos internamente a cada município (para estimular a construção em áreas mais centrais, providas de infra-estrutura, pois com um valor unitário as empresas sempre procurarão terras mais baratas e periféricas, que lhes auferem maiores ganhos). Além disso, alertou que o modelo de fundo garantidor que está sendo proposto é diferente do previsto no Plano e que a definição de faixas de atendimento e sua proporcionalidade foram alteradas.
Ao final do debate, aqueles que lutaram pela reforma urbana no Brasil e que vêem seu "trabalho de décadas jogado fora", consideraram o pacote habitacional um tremendo "gol contra", enquanto o sorriso do diretor do Secovi não escondia o time vencedor: "foi um golaço", gesticulava com os punhos fechados, fazendo lembrar um antigo presidente que é melhor esquecer.
*Pedro Fiori Arantes é arquiteto e urbanista, mestre e doutorando pela FAU-USP. É coordenador da Usina, assessoria técnica de movimentos populares em políticas urbanas e habitacionais, e assessor do curso "Realidade Brasileira", da via Campesina. É autor de Arquitetura Nova (Editora 34, 2002), e organizador da coletânea de textos de Sérgio Ferro, Arquitetura e trabalho livre (CosacNaify, 2006).
E-mail: pedroarantes@uol.com.brFonte: Correio da Cidadania
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