sábado, 5 de setembro de 2009

Impunidade dos crimes da ditadura gera violência policial no Brasil

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O procurador Marlon Alberto Weichert, que há anos tenta condenar os ex-chefes do DOI-Codi, vê um pacto de esquecimento em relação à ditadura difícil de romper no Brasil


por William Maia*


Weichert: Estado protege cultura de impunidade

Ferraz de Vasconcelos, cidade-dormitório no leste periférico de São Paulo, madrugada de carnaval. Uma câmera de segurança registra o início de uma discussão entre policiais militares e três jovens que passavam pelo local, uma praça pública. O clima esquenta depois que um dos moradores atira uma lata de cerveja no chão. Os PMs passam a agredi-los. Chutes, socos, pontapés, tapas na cara, mordidas de cachorro.

No entanto, as imagens não servirão para punir os responsáveis, já que elas não existem, nada foi filmado. O operador da câmera giratória, também um PM, preferiu ignorar o tumulto e registrar uma rua onde nada acontecia.

Para a grande maioria dos brasileiros, o flagrante mostrado pelo Jornal Nacional no começo de abril soa como mais um exemplo, apenas, de uma truculência policial comum nas grandes cidades, em especial na periferia. Mas para o procurador da República Marlon Alberto Weichert, o deslocamento da câmera representa com perfeição uma lógica sistemática de acobertamento da violência estatal no país, que tem raiz direta na não-punição dos crimes da ditadura militar (1964-1985).

O procurador, um dos autores da ação que pede a condenação dos coronéis reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel, ex-comandantes do DOI-Codi, também analisa o motivo do atraso do Brasil em relação aos países vizinhos no julgamento dos acusados de tortura. Leia a entrevista, dividida em três partes.

A falta de punição aos crimes dos militares influencia de alguma forma a violência policial no Brasil?

Sem dúvida. Porque a cultura da impunidade e da ocultação recebe total proteção do Estado brasileiro. O Brasil passa a seguinte mensagem: torturem, violentem, estuprem, façam a violência que quiserem, como agentes estatais, desde que seja contra grupos estigmatizados, perseguidos que nós tratamos de ocultar e deixar impune.

É a mesma idéia de que, aqui, o Estado existe para proteger os agentes estatais que praticam violência, são corruptos, roubam, espoliam o patrimônio público. A mesma lógica da ocultação e da impunidade que protege o torturador é a que protege o político corrupto e o policial violento.

O Brasil piorou em relação ao que acontecia durante a própria ditadura no grau de promoção dos direitos humanos. A polícia brasileira tortura e mata hoje, tanto ou mais do que durante o regime militar, e utilizando os mesmos métodos, a mesma lógica, a mesma cultura.

É preciso que se passe a mensagem de que violações graves aos direitos humanos não ficarão impunes, serão sempre objeto de Justiça, independente do tempo que demande.

Como surgiu a iniciativa de ir à Justiça para pedir a responsabilização dos ex-chefes do DOI-Codi ?

Foi a partir de uma representação feita há cerca de 10 anos pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, que solicitava a intervenção do MPF (Ministério Público Federal) diante da paralisação dos trabalhos de identificação das ossadas do Cemitério Clandestino de Perus. Essas ossadas estavam abandonadas na Unicamp, pela equipe coordenada pelo legista Badan Palhares [o mesmo do caso PC Farias].

Quando chegamos lá tinha acontecido uma inundação na sala, os sacos com os ossos estavam todos sujos de lama, em uma situação de profundo abandono. Conseguimos que a Secretaria de Segurança Pública reassumisse as perícias que resultaram até hoje na identificação de três desaparecidos políticos, dentre os mais de mil restos mortais que foram retirados de lá. O trabalho acabou comprometido com a falta de dados para comparação.

Mas nós conseguimos a prova da ocorrência desses três crimes, e como argumentou a procuradora Eugênia Fávero, o Ministério Público, como instituição que tem responsabilidades públicas, precisava examinar se não cabem medidas de responsabilização cível e criminal.

Para nós era natural e muito importante que a primeira ação fosse contra os comandantes desse centro de terror que ainda estão vivos, os coronéis Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir dos Santos Maciel. A partir de 1970. O DOI-Codi se tornou o protagonista dos atos de tortura, desaparecimentos forçados e homicídios, já que os demais órgãos de repressão como o Dops, a Aeronáutica, a Marinha e a Policia Federal passaram a atuar todos sob sua coordenação.

Mas em tese esses crimes não estariam anistiados e prescritos?

Sim, mas coincidentemente foi nessa época que CIDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) proferiu uma decisão fundamental nesse nosso processo de convencimento, que é o do caso Almonancid Arellano, uma vítima da ditadura chilena. A corte multilateral decreta que seus países membros estão obrigados a aplicar os princípios de justiça transicional (referentes ao período de transição democrática).

Esses preceitos são fixados pela comunidade internacional e incluem a responsabilização dos culpados, a promoção da verdade, a instituição de espaços de memória, e reformas do serviço de segurança. Não havendo espaço para leis de anistia ou autoanistia.

Então com essa visão mais ampla que essa decisão da CIDH nos trouxe nós verificamos que havia a necessidade de propor tanto ações civis públicas como de solicitar que a área criminal da procuradoria entrasse com ações penais.

A punição dos torturadores depende de uma revisão da Lei de Anistia?

A nosso ver não é necessária uma revisão ou revogação da Lei de Anistia. O que precisa ser fixado é se na sua redação ela abrangeu ou não os crimes praticados pelos militares. Não é preciso nenhuma alteração legislativa na Lei de Anistia.

Mas mesmo que a Lei de Anistia tenha tratado dos crimes dos militares e previsto um perdão, o que a nosso ver só pode decorrer de uma interpretação extremamente ampla e política do texto, e não técnica —porque a lei fala em crimes conexos e o crime do torturador não é conexo ao crime do torturado—, ela seria então incompatível com as obrigações internacionais do Brasil, que não admitem que crimes contra humanidade —que é como nós entendemos que foram esses crimes— possam ficar impunes.

Essas normas internacionais são superiores à lei ordinária brasileira. A nosso ver a questão poderia ser resolvida num outro patamar para o qual é irrelevante saber se houve anistia ou não, porque o Brasil tem a obrigação de punir os responsáveis, porque são crimes contra a humanidade e esses crimes são imprescritíveis e impassíveis de anistia.

Leia mais:

Parte 2 - Atraso em relação a vizinhos ainda é grande
Parte 3 - Extradição de uruguaio pode abrir espaço para ações no Brasil

*Texto e foto.

Fonte: Opera Mundi

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