terça-feira, 15 de setembro de 2009

A crise é mais velha que o Sarney

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Por Tatiana Merlino, na Caros Amigos

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Apesar de a oposição ter defendido que a saída do presidente do Senado era solução, a atual crise da Casa tem origem mais longínqua e reflete distorções sérias do sistema político eleitoral brasileiro.

Quadro do regime militar. Ex-político da Arena. Há décadas, dono do estado do Maranhão. Famoso por práticas clientelistas, fisiológicas e corruptas. Depois de mais de meio século de uma vida pública com esse currículo invejável, só agora, em 2009, José Sarney (PMDB-AP) foi “desmascarado”. Os responsáveis por alertar (ou iluminar) a opinião pública foram os representantes do PSDB e do DEM, além, é claro, da grande imprensa.

Pivô da crise instaurada no Senado Federal, seu presidente acumulava 11 acusações no Conselho de Ética da Casa. No entanto, todas as denúncias foram arquivadas, com a decisiva ajuda da bancada do PT.

Desde o começo do ano, a chamada Câmara Alta do legislativo brasileiro viu sua imagem ainda mais comprometida com a divulgação de uma série de irregularidades, como o excesso de diretorias, horas extras pagas a servidores durante o recesso parlamentar, mal uso das cotas de passagens aéreas e a utilização de atos secretos para nomear de apadrinhados e aumentar salários.

A oposição defendia que se investigasse, ainda, a denúncia de que Sarney omitiu da Justiça Eleitoral uma propriedade de R$ 4 milhões, além da acusação de que o parlamentar teria participado do desvio de R$ 500 mil da Fundação José Sarney, que atua no Maranhão. Na outra representação, o PSOL pedia para o Conselho de Ética do Senado investigar o presidente da Casa pela edição de atos secretos que teriam beneficiado parentes e afilhados políticos.

A suspeita é a de que Sarney teria interferido a favor de um neto que intermediava operações de crédito consignado para servidores do Senado, usado seu cargo a favor da fundação que leva seu nome e mentido sobre a responsabilidade administrativa pela entidade.

As denúncias pediam investigações, ainda, sobre a acusação de que o presidente do Senado estaria envolvido em vendas de terras sem o pagamento de impostos e de que teria recebido informações privilegiadas da Polícia Federal em inquérito que investigou
seu filho, Fernando Sarney.

Origem longínqua

Assim, nada mais normal que o movimento “Fora, Sarney”, bradado por diversos setores, entre eles colunistas da grande imprensa, sinalize que a saída do mandatário do Senado daria conta dos problemas éticos da casa. No entanto, a atual crise tem origens bem mais longínquas, e é reflexo de uma crise maior da democracia e do sistema político eleitoral brasileiro, sustenta o sociólogo Francisco de Oliveira, professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). “Ela é muito maior e muito mais ampla do que essas falcatruas das quais os senadores estão sendo acusados.”

Todas as irregularidades cometidas pelo senador maranhense “nada mais são do que o resultado da acumulação das corrupções que historicamente fazem parte, não apenas do Senado, mas de todo o sistema político que vigora no país”, acredita Waldemar Rossi, coordenador da Pastoral Operária, entidade ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Para ele, esse escândalo se incorpora aos do “mensalão”, do “sanguessuga”, dos “cartões corporativos”, dos altíssimos salários com seus reajustes freqüentes e a um sem número de benefícios aos parlamentares. “Ele também se incorpora às corrupções reveladas em várias instâncias do próprio Judiciário. Tudo está definitivamente podre”, assinala.

Já para o economista João Pedro Stedile, da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), a atuação do ex presidente da República no Senado é uma aula didática, diária, de como os ricos no Brasil usam a coisa pública apenas em beneficio de sua classe d e apadrinhados. Assim, a crise que atinge hoje o Senado tem origem no sistema arcaico e nada democrático de eleições no Brasil. “As oligarquias seguem dominando todo o eleitorado, em especial os mais pobres. Elas têm o dinheiro repassado pelas empreiteiras e bancos, e controlam todos os meios de comunicação. O Sarney é apenas a cara mais nua e antiga da classe dominante brasileira, e de como ela está acostumada a atuar na institucionalidade”, analisa. “Fica Sarney! Você é tão didático”, ironiza.

No entanto, o cientista político carioca Wanderley Guilherme dos Santos não acredita que a crise que o país vive hoje seja decorrente da decadência da democracia brasileira. “Basta ver como temos uma participação elevada nas eleições”, diz. Segundo ele, o problema está relacionado com a fragilidade das instituições representativas brasileiras diante do potencial sedutor da corrupção. “No Brasil, é muito fácil comprar um deputado, um senador. Isso é que é vergonhoso. O país vive um estágio histórico em que ainda somos dominados pela oligarquia”, define.

Colonização

Na avaliação do professor Chico de Oliveira, no entanto, a origem principal da crise no Senado Federal decorre de uma tendência mundial: a perda de importância política das câmaras de representação. “Estamos vivendo um momento histórico em que há uma colonização da política pela economia”, sustenta. Ou seja: a primeira vem sendo deixada em segundo plano, em detrimento de objetivos econômicos.

Desse modo, explica, a pressa do sistema capitalista e a obsolescência acelerada das leis têm obrigado a uma intervenção mais ativa do Poder Executivo. “Na verdade, quem legisla no Brasil é o Executivo. Por exemplo, qualquer medida de natureza sanitária, aquela que mexe com o dinheiro público, não pode ter origem nem na Câmara nem no Senado. É o Executivo que origina. A iniciativa é sempre dele”, explica. Como consequência de tal concentração de poderes no sistema capitalista, a política institucional vai se tornando pouco relevante para o povo. “Não tem nenhuma grande medida política com efeitos sobre a população que seja de iniciativa da Câmara ou do Senado. Tudo que é importante sai do Executivo. A população percebe isso”. O uso indiscriminado das Medidas Provisórias seria um exemplo disso. “O governo praticamente governa com elas. É um abuso”.

Jogo político

Mesmo assim, o apoio do PMDB sempre foi fundamental para a garantia da governabilidade, seja nos dois mandatos do governo Lula, seja nos oito anos de FHC. Além disso, Sarney, historicamente, foi aliado de muitos peixes grandes de partidos como o PSDB e DEM, antiga Arena, partido do regime civil militar do qual José Sarney era integrante.

Por que, então, agora ele deixou de servir para tais setores da direita? “Ideologicamente, não há nada que oponha os Democratas ao Sarney”, recorda Oliveira. “Nessa crise do Senado, salvo algumas posições muito consistentes que partem ou de posições ideológicas, como o PSOL, ou de uma vida com muita coerência, como o senador Pedro Simon, é tudo muito embolado, não tem muita consistência ideológica. Trata-se meramente de jogo político”, analisa.

Assim, apesar de Sarney ter sido alçado à condição de maior inimigo da nação brasileira, as denúncias de corrupção não são exclusividade sua. “Ninguém vai levar em consideração que o DEM está na 1ª Secretaria do Senado nos últimos cinco anos? E o envolvimento em escândalos praticados pelos tucanos, entre eles o presidente nacional do PSDB, senador Sérgio Guerra, e o líder do partido, senador Arthur Virgílio? Nada menos que dez senadores do DEM e do PSDB são processados judicialmente no Supremo Tribunal Federal”, aponta o petista e ex ministro chefe da Casa Civil, José Dirceu. “O DEM não só votou em Sarney para presidente do Senado como faz e fazia parte do grupo que dirige a Casa há anos”, completa.

Questionado sobre o motivo pelo qual o PT e o presidente Lula defendem Sarney, o assessor especial de Política Externa do presidente da República, e vice-presidente do PT, Marco Aurélio Garcia, respondeu: “Por que concentrar nele acusações que podem ser perfeitamente ‘socializadas’ para quase todo o Senado? Não é necessário ser um grande analista político para concluir que se trata de um ataque contra o governo Lula. É uma manobra para colocar na presidência do Senado um tucano e, ao mesmo tempo, uma tentativa de minar uma aliança entre o PMDB e os partidos de esquerda”.

Portanto, o que explicaria o fato do aliado do passado se tornar o inimigo do presente são as eleições presidenciais de 2010. “Tem a ver com dificultar a consolidação de coligações e alianças, e, nesse sentido, vale tudo. Em todo período pré eleitoral acontece a criação de turbulências políticas dessa natureza”, sustenta Wanderley Guilherme dos Santos.

Preço da governabilidade

No entanto, o governo Lula está longe de ser a grande vítima dessa história. Desde o começo do primeiro mandato, em 2003, o PMDB foi o aliado principal pra garantir a tão almejada “governabilidade” no Congresso Nacional. Pese o fato de que a presidência da República vem sendo ocupada há 15 anos ora pelo PT, ora pelo PSDB, o PMDB é, ainda, o principal partido do país. É o fiel da balança no parlamento e o que possui o maior número de prefeituras pelo país. Portanto, a aproximação com um dos seus principais caciques era fundamental.

Desse modo, seis anos e meio após virar governo, a opção por preservar a aliança com o PMDB para garantir a eleição da atual ministra chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, em 2010, levou o PT e o presidente Lula a apoiarem o fim das investigações contra o senador do Amapá.

Portanto, a opção por defender Sarney, na opinião do professor Chico de Oliveira, é puro oportunismo. “Para armar um palanque para Dilma, vale tudo, até defender o Sarney hoje e amanhã jogá-lo às traças”, avalia.

Durante a sessão do Conselho de Ética do Senado que anulou as denúncias contra Sarney, o PT divulgou uma nota em que orientava seus senadores a votarem pelo arquivamento do processo no Senado. No texto, o presidente do partido, Ricardo Berzoini, pedia a apuração das irregularidades pelo Ministério Público e pela Polícia Federal, e atribuía a crise em torno de Sarney a uma “disputa política relacionada
às eleições de 2010”.

O líder da bancada, Aloizio Mercadante (SP), que já havia sinalizado estar disposto a desarquivar pelo menos uma acusação contra Sarney, se recusou a ler a carta. Após a votação, Mercadante chegou a anunciar que deixaria a liderança. Porém, após ser enquadrado por Lula, o senador petista recuou e disse que ficaria no cargo a pedido do presidente. “Mais uma vez não tenho como dizer não ao presidente Lula. Meu governo errou, o partido errou e eu errei. Eu peço desculpas, mas, pela minha história com o Lula, não posso dizer não”, afirmou. Mercadante também defendeu a manutenção da aliança pela governabilidade com o PMDB e afirmou que a crise não é só de Sarney, devendo ser compartilhada por todos os 81 senadores da Casa.

De acordo com Waldemar Rossi, da Pastoral Operária, o PT vem demonstrando estar numa encruzilhada, porque sempre fez tudo o que Lula mandou. “Seus dirigentes e parlamentares são sempre subservientes ao Lula, defendendo-o contra a própria razão e o bom senso. Não devemos nos esquecer que Lula bancou o Sarney para a presidência do Senado por puro fisiologismo, cooptando o PMDB, que tem estado ao seu lado para o que der e vier, até mesmo para a aprovação de mudanças na Constituição que vêm prejudicando os trabalhadores. Aliás, o Lula está redimindo o próprio Collor!”, indigna-se.

João Pedro Stedile, assim como Chico de Oliveira, avalia a defesa de Sarney pelo PT como pragmatismo: “A prioridade número um é eleger Dilma, e eles fazem o cálculo de que precisam da aliança com PMDB (mas cá entre nós, poderiam escolher uma ala melhor da federação peemedebista). Por conta disso, taparam o nariz, os olhos...”, critica. “Em alguns Estados, a justificativa para apoiar candidatos a governador do PMDB se dá na mesma base ou pior, como aconteceu no Maranhão, ao apoiar o golpe que o Sarney deu no Jackson Lago, para depô-lo no tapetão e repor sua filhota (Roseana Sarney), agora no PMDB. Em troca, eles ganharam duas secretarias estaduais. Espero que o PT e o governo se deem conta de que não precisam se abaixar tanto para elegerem a Dilma”.

No caso da cassação do governador Jackson Lago, à qual Stedile se refere, Lula e o PT nacional fingiram-se de mortos. Desde a eleição de Lago, em 2006, o presidente nunca havia ido ao Maranhão.

Fonte: Caros Amigos

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