terça-feira, 1 de setembro de 2009

Como os trabalhadores foram enganados durante a crise

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por Leonardo Sakamoto


Veja como você tem sido passado para trás nos últimos meses. E, ainda por cima, achando isso normal.

A crise econômica global veio em forma de marolinha para o Brasil, como previa o presidente Lula? Não. Mas foi longe de ser o tsunami alardeado por alguns empresários e pelas carpideiras a serviço de terceiros no espaço midiático. O fato é que o Brasil realmente chegou depois e está saindo antes da crise. E até começam a pipocar aqui e ali análises de que o país lucrou com tudo isso, como a manchete deste domingo do jornal O Estado de S. Paulo, que diz que o país está melhor do que entrou na turbulência global. A revista Exame soltou uma capa eufórica com a Bolsa de Valores de São Paulo, embalada com a recuperação econômica.

E apesar de todo esse crescimento, os empresários não estão recontratando na mesma velocidade com a qual demitiram. Uma matéria no Uol, também de domingo, trouxe dados do IBGE e do Ministério do Trabalho e Emprego, mostrando que o semestre terminou com 63 mil empregos a menos que em dezembro (queda de 0,64%), enquanto a produção das empresas subiu 16% no mesmo período. Em outras palavras, grandes empresas como Vale, Embraer e General Motors deram pé na bunda de empregados, lucraram e não contrataram. E mais: nem precisavam ter demitido.

Vamos voltar um pouco no tempo e ver quais os discursos foram usados para justificar seguidas tungadas no trabalhadores. Na época, foram saudados pelas carpideiras como “bom senso”. E hoje?

Caso Vale
“Eu tenho conversado com o presidente Lula no sentido de flexibilizar um pouco as leis trabalhistas. Seria algo temporário, para ajudar a ganhar tempo enquanto essa fase difícil não passa.” A frase é do presidente da Vale, Roger Agnelli, em dezembro de 2008. “Estamos conversando com os sindicatos também. O governo e os sindicatos precisam se convencer da necessidade [grifo meu] de flexibilizar um pouco as leis trabalhistas: suspensão de contrato de trabalho, redução da jornada com redução de salário, coisas assim, em caráter temporário.”

Se ela lutasse para sobreviver, poderíamos até entender a fala de Agnelli. Mas para uma gigante que teve lucro líquido de R$ 21,279 bilhões em 2008, R$ 20,006 bilhões em 2007 e de R$ 13,431 bilhões em 2006, essa declaração foi um tapa na cara. Reduzir direitos a fim de garantir os lucros dos acionistas.

Em janeiro, a empresa anunciou que iria adquirir a operação de minério de ferro da multinacional Rio Tinto, em Corumbá (MS), e outras posições dessa concorrente na Argentina, Canadá e Paraguai, por US$ 1,6 bilhão. Uma contradição no meio da crise? Nada. Na verdade, a Vale nos privilegiou com uma aula de capitalismo. A empresa aproveitou a crise para enxugar o custo trabalho, garantindo o lucro dos acionistas onde ele está mais em risco, e aproveitou a baixa dos preços internacionais causados pela crise para comprar posições no mercado – e se expandir. Por que não usar o dinheiro em caixa ou empréstimos para garantir a integridade da massa salarial sua e de seus terceirizados e só depois para ir às compras? Prioridades, prioridades…

Caso Embraer
A Embraer, terceira maior fabricantes de jatos do mundo, anunciou em fevereiro a demissão de mais de 4 mil empregados - 20% dos seus quadros.

Ao ver essa notícia, a impressão é de que os pedidos nacionais e internacionais de aeronaves desapareceram como em um passe de mágica: Puf! Afinal de contas, uma empresa que ganhou (e cresceu) muito nos últimos anos e que estaria capitalizada para enfrentar fortes turbulências – sem trocadilho – certamente viu o abismo de perto para tomar medida tão drástica.

Contudo, mesmo sendo uma empresa eminentemente exportadora (e, lá fora, a situação está realmente mais feia), a empresa diminuiu em apenas 10% a previsão de entregas neste ano (de 270 para 242 aeronaves) com uma queda de receita prevista em 13% (de 6,3 para 5,5 bilhões de dólares) - dados na época do Valor Online e da Folha Online. A empresa fechou o ano com uma carteira de pedidos firmes de 20,9 bilhões de dólares, tendo entregue 204 aviões em 2008. E, até agora, não houve catástrofe: no primeiro semestre de 2009, lucrou R$ 505 milhões, apenas 0,6% menos que no mesmo período do ano passado. Ou seja, não tinha como encontrar outra possibilidade para manter os trabalhadores?

“A Embraer expressa seu profundo respeito às pessoas que ora deixam suas posições [outro grifo meu] na Empresa. Respeito pelo trabalho que desenvolveram, pelo tempo de convívio profissional e pessoal, pelo momento difícil que atravessam.” Eu adoro esses trechos de notas que tentam dourar a pílula. “Deixar posições”? Como diria o articulista José Simão, tucanaram o “pé na bunda”! Se era para ter dito isso, melhor não dizer nada.

Este momento de crise econômica global também é uma ótima justificativa para acertar o custo trabalho em muitas empresas que avançaram tecnologicamente e, agora, querem dispensar mão-de-obra. Presidentes e CEOs (ou assessorias de imprensa, no caso dos mais envergonhados) vieram a público dizer que isso iria garantir a manutenção da “competitividade” nos negócios (e consequentemente, lucro). Não falaram, contudo, que isso ocorreria em detrimento à qualidade de vida dos trabalhadores que tornaram a capitalização possível.

O Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos diz que a Embraer teve acesso a 7 bilhões de dólares de financiamento do BNDES (dinheiro público, meu, seu, nosso, dos trabalhadores em geral) desde que foi privatizada em 1994. O que só aumenta a necessidade de debater e implementar contrapartidas à concessão de crédito público que garantam manutenção de empregos. É importante ressaltar que a negociação dos empregados com a empresa teve que ser feita na Justiça do Trabalho.

Caso General Motors
Durante o pico da crise, a General Motors demitiu 744 trabalhadores de sua fábrica em São José dos Campos (SP) sob a justificativa de “diminuição da atividade industrial”. Mesmo após ter recebido apoio dos governos da União e do Estado de São Paulo no sentido de facilitar a compra de seus produtos por consumidores. O setor também é beneficiário de recursos oriundos de fundos públicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ou seja, pertencente aos trabalhadores.

Colunistas de economia e outras carpideiras disseram e escreveram que o Ministério do Trabalho e Emprego e sindicatos fazem uma chiadeira irracional, pedindo contrapartidas à cessão de linhas de crédito ou corte de impostos. Atestam que empresas não podem operar esquecendo que estão inseridas em uma economia de mercado, buscando a taxa de lucro média para continuar sendo viável. Em outras palavras, defendem que não dá para esperar que o capital seja dilapidado da mesma forma que o trabalho em uma crise. Blá, blá, blá…

Essa “regra do jogo” me faz lembrar um restaurante self-service. Você passa com a bandeja e escolhe o que quer e o que não quer para o almoço. O que é bom coloca no prato, o que é ruim fica para a massa se servir depois. Traduzindo: o Estado tem que garantir e ajudar o funcionamento das empresas, mas as empresas não podem sofrer nenhuma forma de intervenção em seu negócio. Um liberalismo de brincadeirinha, com um Estado atuante, mas subserviente do poder econômico, em que o (nosso) dinheiro público deve entrar calado para financiar os erros alheios. Privatizam-se lucros, estatizam-se prejuízos.

O setor automobilístico lucrou muito nos últimos anos no país. O que, é claro, se traduz em empregos, geração de renda, impostos e tudo o mais. É interessante como diretores de federações de patrões e economistas ligados a empresas defendem a redução salarial com manutenção de jornada durante a crise e se arrepiam quando sindicatos e parlamentares defenderam a diminuição de jornada de 44 para 40 horas semanais com manutenção salarial.

O governo tem a obrigação sim de exigir contrapartidas de quem vai receber recursos ou benefícios devido à crise econômica – aliás, este é o momento ideal para isso. Quando as empresas estiverem surfando novamente, após este ciclo recessivo mundial passar, vai ser mais difícil colocar cartas na mesa como agora.

Li depoimentos de montadoras dizendo que os trabalhadores têm que entender que esta é uma crise global e muitas de suas sedes estão passando sérias dificuldades, correndo o risco, inclusive de fechar. O que é mais um caso self-service. Lembro um exemplo que pode ser ilustrativo: um dia, matrizes de determinadas empresas automobilísticas foram questionadas sobre o porquê de não atuar de forma mais incisiva para evitar que suas subsidiárias em países como o Brasil estejam inseridas em cadeias produtivas em que há trabalho escravo ou crimes ambientais. Como resposta, disseram que há independência entre as ações da matriz e das subsidiárias e que as matrizes não podem interferir, apenas pedir que atuem de acordo com a legislação. Ótimo! Então, elas não vão se incomodar se o Brasil regular o envio de remessas de lucros para o exterior, que atingiu patamares recordes em 2008. Esses recursos poderiam ser utilizados para ajudar a passar a tempestade de forma mais suave. Já que elas não se incomodam com a qualidade de vida do trabalhador por aqui, por que se incomodar com o resultado dos lucros desse trabalho, não é mesmo?

Outro ponto que deveria ser cobrado como contrapartida é a redução dos salários de executivos sempre que houver qualquer prejuízo ao salário da massa trabalhadora. Que tal propor também a eles redução de salário sem redução de jornada? Ou propor que fiquem em casa alguns meses, vivendo do teto do seguro-desemprego, até que a situação melhore? Até nos Estados Unidos, berço da crise, parlamentares têm exigido como condição para conceder empréstimos públicos que as empresas dêem transparência sobre os ganhos de altos executivos de grandes empresas. Por que não adotamos aqui também?

Em momentos de crise como esse é que direitos trabalhistas e sociais têm que ser reafirmados, garantidos, universalizados e não o contrário. Pois é nesta hora que a população que sobrevive apenas de seu salário está mais fragilizada. E é em momentos como esse que sabemos quem é socialmente responsável. As empresas sérias se sobressaem, diante daquelas que desejam se aproveitar do momento. Alguém acredita, sinceramente, que uma vez retirados, esses direitos voltarão a ser garantidos?

PS: Aliás, é um absurdo alguém ainda dar ouvidos para os chamados os “especialistas”, as carpideiras do qual falo, que entre o final de 2008 e começo de 2009, disseram que o mundo iria acabar por aqui. Minha cachorra cega e surda de 17 anos acertou mais previsões de cenários do que eles. Deixaria meu fundo de investimento – se tivesse um – na pata dela e não na mão de muitos deles.

Fonte: Blog do Sakamoto

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