por
Antonio Luiz Monteiro Coelho da CostaHá um vídeo na internet que brinca com a quantidade de coisas que parecem imemoriais para muitos jovens, mas são menos velhas, às vezes bem menos, que o candidato republicano nos EUA, John McCain. Incluem, entre outras,
Branca de Neve e os Sete Anões, super-heróis, a Disneylândia, refrigerante em lata, franquias de fast-food, a ponte Golden Gate, a Força Aérea dos EUA, a ONU,
Casablanca, o Pentágono, o radar e a boneca Barbie.
A lista de coisas hoje rotineiras que são mais recentes que a
CartaCapital é obviamente muito menor, mas já dá para a garotada imaginar que era outro mundo. Não havia DVD, Pokémon, Euro, Google, Viagra,
Titanic, Yahoo!, bolivarianismo, Internet Explorer, Harry Potter, lanchonetes de wraps, bebidas energéticas, carros bicombustíveis, fundamentalismo islâmico, Protocolo de Kyoto, câmeras digitais ou desenho animado por computação gráfica. A ascensão e queda da Enron, das pontocom e da “nova economia” ainda estavam por vir. Os EUA não tinham rivais ou inimigos que valessem a pena mencionar, o dólar era a moeda forte, o petróleo era barato e o crescimento da Ásia fora dos quatro Tigres tradicionais – incluindo Hong Kong, que ainda era colônia britânica – ainda era novidade.
A matéria internacional da primeira
CartaCapital, de agosto de 1994, “O capital é vermelho”, iniciava pelo Vietnã uma série de reportagens de Pepe Escobar sobre os Tigres Asiáticos: “Para um povo que forjou guerrilheiros capazes de passar semanas em túneis à base de rações minimalistas e despachou a mais poderosa armada da história depois de tomar na cabeça 1,2 milhão de toneladas de bombas, desmantelar alegremente o comunismo é barbada”.
Seis meses depois passava pela China, torcendo o nariz para “a hidra de infortúnios que inferniza os homens de negócio ocidentais” e um tanto cético quanto às suas perspectivas: “O objetivo oficial superotimista é chegar ao ano 2000 com uma renda per capita de 800 dólares, alcançada pela Nicarágua em 1985”. Chegou na virada do milênio a 840 dólares e hoje passa de 2.400, enquanto o país centro-americano ainda não chegou aos 1.000.
“Não há sequer uma mísera estrada ligando a capital, Pequim, à principal cidade industrial, Xangai.” Hoje, a China tem a segunda rede de vias expressas do mundo, depois dos EUA. “As locomotivas ainda são a vapor.’’ Hoje, a velocidade máxima dos expressos chineses subiu de 120 para 250 quilômetros por hora – sem contar o pioneiro maglev que liga o centro de Xangai ao aeroporto, no qual os trens literalmente voam a até 430 quilômetros horários. Na busca de modelos, olhava-se para trás e para os lados mais que para a frente, mas ao menos se notava o fenômeno econômico mais importante da economia e da geopolítica global, o despertar da Ásia. Não era feito tão insignificante. Os debates sobre a eleição presidencial e o futuro do Plano Real monopolizavam as atenções. Em 1994, todos falavam da tal da globalização, mas a maioria das redações enxugava a cobertura internacional: só as brigas de Charles e Diana tinham chance de chegar à capa ou à primeira página.
O consenso era de Washington. Todo o continente era neoliberal, não havia esquerda no poder fora de Cuba, América Latina e Mercosul ainda eram abstrações. Mesmo na
CartaCapital, o colapso do México passou em branco, apesar de repercutir em todo o continente. O Brasil da mídia continuava de costas para os vizinhos. Houve uma reportagem isolada sobre a Argentina de Menem em 1995, mas os vizinhos só receberam atenção mais sistemática quando a revista se tornou quinzenal, no ano seguinte, a começar por uma reportagem de Gianni Carta na Colômbia.
Essa matéria, em particular, quase poderia ser tomada por atual por um leitor distraído quanto a nomes e datas. Guerrilha, narcotráfico e corrupção no governo colombiano continuam entre nossos assuntos de todos os dias. Mas em quase tudo o mais a realidade mudou, principalmente na geopolítica.
Em 1994, os EUA e o dólar não enfrentavam desafios dignos de nota. Sua hegemonia era indiscutível. A Rússia se desintegrava, com as forças armadas desmanteladas. A União Européia era uma recém-nascida de viabilidade duvidosa. A China era mais um dos muitos países periféricos onde as transnacionais estadunidenses exploravam mão-de-obra barata e sua conversão ao neoliberalismo sem restrições parecia questão de tempo.
A Opep estava desarticulada e o Irã se dispunha à liberalização econômica e a chegar a um acordo sobre a questão nuclear. Os bombardeios da Otan enquadravam a ex-Iugoslávia na nova ordem e, com os acordos de Oslo, a paz entre Israel e palestinos pareceu mais próxima do que jamais fora – talvez mais do que jamais voltará a ser. Alguns países obscuros da África e Ásia Central, como o Afeganistão, seguiam cada vez mais caóticos, mas e daí? Na opinião de especialistas em política internacional como Thomas Friedman, o mundo podia erguer uma “barreira corta-fogo” em torno deles e esquecer que existiam. Isso não podia durar para sempre, mas talvez tivesse durado mais se os EUA tivessem sido mais hábeis, levassem menos a sério o próprio triunfalismo e aplicassem mais atenção e inteligência (nos dois sentidos da palavra) às inevitáveis reações a seus excessos. O Projeto para um Novo Século Americano – tentativa demasiado explícita de prevenir um Século Asiático – e sua desastrada aplicação após os atentados de 11 de setembro de 2001 anteciparam o fim da hegemonia moral de Washington sobre o mundo e até mesmo sobre a América Latina, coisa quase impensável em 1994.
No Iraque, os EUA começaram por descobrir que nem todos os governos do Ocidente estavam dispostos a dar crédito a quaisquer histórias que seu governo quisesse inventar, nem a apoiá-lo em quaisquer arbitrariedades sem ganhar nada em troca. Com o passar do tempo, verificaram, também, que seu imenso poder militar não bastava para impor seus valores, sua ordem e sua agenda ao povo de um país periférico de médio porte ou sequer para garantir o objetivo primário da invasão, ou seja, o controle do petróleo iraquiano.
No balanço geral, os EUA ainda são a maior potência econômica e militar, mas o termo “hiperpotência” já começa a soar datado. Governos de países como Nicarágua, Bolívia, Equador, Venezuela, Irã e Coréia do Norte desafiam abertamente suas imposições, a América do Sul recobra autonomia e o mundo volta gradualmente a ser multilateral em muitos aspectos.
A Rússia reconstrói seu poderio militar, o dólar despenca ante o euro e mesmo ante moedas de países periféricos – e sem conseguir restabelecer o equilíbrio da balança comercial estadunidense –, o PIB da China continua a caminho de superar o dos EUA em futuro previsível e não muito distante. Por outro lado, os desafiantes continuam capengas.
A União Européia foi muito bem-sucedida em dar credibilidade ao euro – em relação ao qual muitos, dentro e fora da Europa, eram céticos –, mas em pouca coisa mais. Não tem estratégia política ou militar, sua diplomacia é frágil e míope e não consegue apoio popular para se consolidar como federação ou mesmo para aprovar uma constituição. Seus cidadãos mostram cada vez mais medo do futuro e dos estrangeiros. Em relação ao que se podia esperar dela em 1994, a União Européia tem sido, em grande parte, uma decepção.
A recuperação da Rússia não deixa de ser surpreendente, considerando o estado em que se encontrava há 14 anos, a caminho do completo desaparecimento como nação. Mas ainda está muito longe de voltar a ser uma potência de primeira classe. A relativa prosperidade econômica se baseia em exportação de matérias-primas revalorizadas.
A indústria continua incapaz de se modernizar e atualizar, muito menos de criar tecnologia – fora, talvez, do setor bélico, se é que não está raspando o tacho dos projetos da era soviética. A nova coesão não é dada pela reconstrução de instituições sólidas e de um consenso em torno de interesses nacionais, mas por um centralismo autoritário a meio caminho entre o dos czares e o de uma república de bananas, imposto a empresários piratas incapazes de ver mais que seu interesse privado a curto prazo.
A China, considerados todos os aspectos, é o desafio mais consistente, em uma escala que ninguém, com a possível exceção dos próprios chineses, teria imaginado em 1994. Com uma direção autoritária, mas que até agora se mostrou hábil e coesa, começa a se projetar como potência global. Consolida investimentos e alianças em países periféricos tidos, há 14 anos, como reserva de caça dos EUA. Compra fatias substanciais dos abalados bancos de investimento do Ocidente. Já é o segundo país do mundo (depois dos EUA) em publicação de artigos científicos e gastos com pesquisa e desenvolvimento, superando Japão, Reino Unido e Alemanha.
Na surdina, vai construindo um poderio militar mais do que respeitável, sem cometer os exageros que quebraram a União Soviética nos anos 80 e hoje fazem das contas públicas dos EUA um abismo sem fundo. Gasta menos, proporcionalmente ao PIB, que a França, o Reino Unido ou a Suécia, mas mantém o maior contingente ativo do mundo e recursos de ponta. Sua política de “dissuasão mínima” – manter o poderio militar no mínimo que baste para dissuadir qualquer rival, inclusive EUA e Rússia, de atacá-la – tem sido mantida com sucesso, mas, caso deseje, logo terá meios para adotar uma postura mais agressiva sem sacrificar a base civil da economia.
A China foi o primeiro país a demonstrar capacidade de abater um satélite em órbita. Sua capacidade em guerra cibernética também preocupa seriamente o Pentágono, que, em setembro de 2007, revelou que os hackers militares chineses invadiam repetidamente seus computadores e os de seus aliados europeus, chegaram a paralisar a rede do Colégio Naval e tinham planos para desabilitar a frota estadunidense de porta-aviões em caso de guerra.
O limite de Pequim está, ao que parece, em poder manter o povo razoavelmente satisfeito, apesar do caráter autoritário do regime e, talvez mais importante, das injustiças e enormes disparidades entre regiões, classes e etnias que o desenvolvimento capitalista tem criado.
Como no Brasil da ditadura militar, essa capacidade tem dependido, até agora, de sustentar o crescimento em ritmo acelerado. A China, como os tubarões, corre o risco de morrer sufocada se parar de nadar. Uma desaceleração prolongada, para não falar de recessão, poderia ter implodido o sistema chinês, como pareceu possível durante os protestos de Tiananmen, em meados de 1989, ano de crescimento “baixo” (4,1%) e inflação alta (25%, depois de 18,5% em 1988). Aparentemente por receio desse risco, os governos chineses, até Jiang Zemin, ignoraram tudo que parecesse empecilho ao máximo de crescimento a curto prazo, inclusive o ambiente, apontando para o risco de um colapso ambiental vir a ser muito pior – não só para a China, como para todo o mundo – do que a temida desaceleração econômica.
Com o agravamento do problema, incluindo a desertificação do norte, o dessecamento do rio Amarelo, escassez e contaminação da água potável e a morte ambiental do outrora turístico lago Taihu, o governo de Hu Jintao parece, desde 2003, tomar certa consciência do problema e representar certa inflexão nesse aspecto. Além de se esforçar por aplicar mais estritamente os regulamentos ambientais, quis criar um pioneiro “PIB verde”, debitando do crescimento econômico o valor da degradação ambiental. Engavetou o índice em 2007, depois que os cálculos indicaram que esse critério reduziria o espetacular crescimento de 10% ao ano para praticamente zero.
O governo atual também tem dado mais atenção à questão social: restaurou a educação gratuita, trocou impostos rurais por subsídios, criou um seguro-saúde para o campo e novas leis trabalhistas para a cidade. Desde janeiro deste ano, voltou a exigir contratos de trabalho assinados, salário mínimo, benefícios trabalhistas e indenização por demissão sem justa causa e está preparando uma nova lei sindical. Prepara-se a transição da dependência das exportações para o consumo interno e do uso extensivo de recursos naturais e mão-de-obra barata para o desenvolvimento intensivo, focado em ciência, tecnologia, aumento de produtividade e qualificação da mão-de-obra, e também podem tornar a sociedade mais tolerante para com uma eventual redução do ritmo do crescimento.
Eventual, não. Inevitável, sejamos sinceros. Em 1994, o aquecimento global era uma possibilidade pouco discutida fora dos meios especializados. Em 2008, é uma certeza amplamente atestada, somada ao arrepiante pressentimento de que pode ser tarde demais para contê-lo.
A escassez de petróleo e matérias-primas – e suas conseqüências inflacionárias em todo o mundo – parece neste momento o problema mais urgente da economia global, mas se fosse miraculosamente resolvido, a deterioração do ecossistema mundial seria ainda mais rápida. Se com o petróleo a 130 dólares o mundo já sufoca em gás carbônico, o que seria com os 5 dólares que
The Economist previa nos anos 90? A humanidade precisa ter o máximo cuidado com o que deseja neste momento.
O esgotamento dos materiais não renováveis e aos limites físicos das terras disponíveis para a produção dos renováveis está fazendo do mercado global de matérias-primas um leilão entre os desenvolvidos e os chamados emergentes no qual os lances não param de subir, com o risco de fazer os menos emergentes e nada emergentes, submergirem em uma miséria cada vez mais profunda, alimentando – e não só no mundo muçulmano – revoltas, ressentimentos e fundamentalismos tão terríveis que farão os atentados da Al-Qaeda parecerem travessuras de criança pequena.
Dada a improbabilidade de os ricos aceitarem reduzir seu consumo e a impossibilidade de pobres abrirem mão do crescimento econômico, as perspectivas, neste momento, não parecem nada brilhantes. Não havendo acordo para redistribuir os recursos naturais e racionar os direitos à emissão de gases e poluição, crescerá a tentação de impor interesses pela força.
Pouco a pouco, mas em ritmo que tende a acelerar, o mundo está tomando consciência de que o atual modelo de consumo e crescimento não tem futuro, sem conseguir conceber outro no lugar. Neste caso, não haverá século americano nem chinês. Há que ter esperança de, em algum momento não muito distante, o mundo altere a rota que tem seguido nas últimas décadas, mas nos últimos 14 anos só fez acelerar a corrida para o abismo.
*Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa, ex-analista de investimentos com formação em engenharia, economia e filosofia, está em CartaCapital desde 1996.
Fonte: Carta Capital
Um mundo que se racha.
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