segunda-feira, 2 de junho de 2008

Os rotos falando do rasgado*

por Uri Avnery*

NÃO POSSO DIZER que algum dia eu tenha gostado de Ehud Olmert. Mas hoje, já quase sinto pena dele.

O modo como tantos têm falado sobre Olmert não é agradável de ver. São como chacais e hienas disputando carcaça. O que também levanta algumas questões.

Olmert seria o único ser humano falível, no paraíso israelense? Não seria e não é. As histórias sobre envelopes gordos de dólares, charutos, suítes luxuosas em hotéis caros incendeiam a imaginação, mas o hedonismo de Olmert é idêntico ao de Binjamin Netanyahu ou de Ehud Barak. Quando Barak acusa Olmert, é o roto falando do rasgado.

Netanyahu viveu como rei em hotéis caros, pagos por apoiadores generosos que, é claro, nada pediram em troca e cujo único objetivo na vida foi permitir-lhe refestelar-se no luxo. Como Barak – depois de décadas de serviço militar, com salário muito humilde, e alguns anos como ministro com salário também baixo, Netanyahu desapareceu dos jornais e televisões por algum tempo. Quando reapareceu, já estava rico. Comprou um apartamento luxuosíssimo num dos prédios mais caros de Telavive, um monumento à ostentação. Como alguém enriquece tão rapidamente? Seria, talvez, graças aos contatos construídos enquanto trabalhava para o Estado, em Israel?

Olmert foi pioneiro, neste método. Enriqueceu jovem, desde seus primeiros anos de vida política, recém saído da Faculdade de Direito, valendo-se dos contatos com autoridades do governo, que conheceu no exercício das funções de assessor parlamentar.

Quanto mais direto o contato entre dinheiro e poder, quanto maior o contato entre magnatas locais e magnatas estrangeiros, por um lado, e entre políticos e generais, por outro lado… mais profusa e rapidamente a corrupção brota e floresce. É processo quase automático.

O QUE ISTO DIZ sobre os políticos israelenses? É simples: diz que nenhum deles pode ser líder político.

Verdadeiro líder político não é quem tenha um objetivo. Verdadeiro líder político é quem tenha só um objetivo, só um.

No melhor dos casos, que seja um objetivo positivo, ao qual o líder dedica toda a sua vida. No pior dos casos, o líder visa, exclusivamente ao poder. Mas um verdadeiro líder político dedica-se integralmente ao objetivo que tenha escolhido e não trabalha para objetivos ‘periféricos’ – como o dinheiro, a diversão nem, menos ainda, trabalha para viver em luxo ostentatório.

David Ben-Gurion foi um destes homens. Menachem Begin, também. Nunca viveram o dilema de decidir viver “vida modesta” e ter de rejeitar qualquer ostentação – o luxo e a ostentação não lhes interessavam, nem o dinheiro, nem a vida fácil. Para eles, nada disto importava. Do momento em que acordavam pela manhã, até que adormeciam à noite, só pensavam no que se haviam proposto como objetivo. Pode-se acrescentar Yitzhak Rabin, nesta lista.

As prioridades de um político profissional são muito diferentes: eles aspiram ao poder para gozar as amenidades que vêm com o poder. O poder é o meio. As amenidades do poder – dinheiro, luxo, restaurantes finos, hotéis luxuosos – são o objetivo, a finalidade.

Por esta definição, toda a safra de políticos que esteve no poder já há alguns anos, em Israel – Moshe Dayan, Ezer Weitzman, Shimon Peres, os dois Ehuds (Barak e Olmert) e Netanyahu –, não passam de políticos profissionais, ordinários.

NO CASO DE OLMERT o problema é mais grave, por causa de sua história, de seu background pessoal.

As pessoas perguntam-se: Por que fez o que fez? Será que não sabia que mais dia menos dia tudo viria à tona, que os amigos e admiradores o abandonariam? Que sentido há em arriscar toda uma vida política, em troca de férias na Itália, charutos caros, suítes luxuosas e… passagens de primeira classe?!

É possível que as condições em que viveu a infância tenham algo a ver com o comportamento do Olmert adulto. Ele cresceu, nos anos 50, num bairro definido pelo Partido Herud, para ex-combatentes do grupo Irgun, na cidade de Binyamina, perto de Haifa. Era um bairro pobre, e as crianças da parte mais antiga da cidade, do establishment local, filhos de seguidores do partido então dominante, olhavam com muita arrogância quem não fosse ‘como elas’. Crianças podem ser muito cruéis. Naqueles dias, o Partido Herud (atual Partido Likud) estava muito longe do poder e não controlava a opinião pública; os membros e militantes do Partido Herud ainda eram vistos como “marginais”, como gente diferente e inferior.

Quando gente que tenha passado por isto sobe os degraus do poder político, não raras vezes são intoxicados pelas possibilidades que se abrem à sua frente. Ali há um mundo de bajulação e adulação. Tudo parece estar ao alcance da mão. E quando um “judeu do exílio” [ing. exile Jew] – expressão muito pejorativa, que muitos israelenses usam para designar os judeus não-israelenses – um espertalhão profissional [em alemão e ídiche, schnorrer], que considera uma grande honra financiar políticos, aparece e oferece suas quinquilharias… a tentação pode ser avassaladora.

Há um ângulo especial na história de Olmert. Talvez por ter vivido infância de criança excluída, marginalizada, ele desesperadamente precisa de apoio pessoal, de companheiros. Em hebraico, diz-se Haverim, alguma coisa como camaradagem, solidariedade entre compabheiros. Haver é uma típica palavra hebraica, para denotar o camarada, o companheiro, o amigo-soldado que luta ao lado de outro. (Bill Clinton concluiu seu famoso elogio a Rabin, com uma expressão em hebraico: Shalom, Haver!) Olmert carece muito de Haverim, quer Haverim todo o tempo. Carece de gente que o adore, que o bajule, especialmente intelectuais e/ou milionários que o admirem e o amem.

Ele gosta muito de mimar os amigos, de levá-los com ele em viagens e férias. Cobre-os de atenção calorosa, de gentilezas, tapinhas nas costas, devota-lhes tempo e atenção. Para ele, a possibilidade de fazer isto é, também uma das tentações do poder político.

Um de seus amigos, o advogado Uri Messer, está mortificado. Não porque Olmert violou a lei. Não porque violou normas de moralidade e da democracia. Mas porque Messer ‘entregou’ Olmert à polícia. (O próprio Messer disse, dele mesmo, que teria agido como stinker – palavra em hebraico equivalente a “informante”.) É como uma criança, que não conseguiu mentir para a professora. Tortura-se. Como ele próprio disse de si mesmo, Messer não é um psicopata; é um homem torturado por ter traído um Haver, um companheiro, um camarada.

HÁ OUTRO ASPECTO, no mesmo caso: o relacionamento entre Olmert e Morris Talansky, fornecedor de gordos envelopes, por muitos anos.

Talansky tratou Olmert como um escravo trata o senhor. Com o tempo, Olmert passou a tratá-lo como servo. E quase escrevi: como um senhor colonial trata um nativo que considere inferior.

Não é raro que aconteça assim. Muitos israelenses tratam os judeus da Diáspora como se fossem seus inferiores coloniais, obrigados a servir e financiar os aristocratas da “terra mãe”. Ao falar e ao pensar sobre os judeus dos EUA, muitos judeus, inadvertidamente, repetem estereótipos anti-semitas. Talansky enquadra-se perfeitamente no estereótipo. Olmert via-o como inferior, e ele vê-se, também, como inferior. Quando Olmert esteve nos EUA e o honrou com sua presença, ao seu lado, frente aos amigos dele, Olmert fez subir a cotação de Talansky. Por isto, Talansky estava disposto a pagar – e pagou. Não foi barato.

HÁ MAIS UMA PERGUNTA que não quer calar: Por que estes escândalos fatais sempre vêm à tona quando um líder político israelense dá – ou pelo menos finge que dá – um passo em direção à paz?

Não creio que aí haja conspiração. Não sou dado a crer em conspirações, por mais que veja que há, quando há.

Creio que temos aqui um fenômeno mais profundo. A força que impulsiona todo o establishment de Israel, hoje, é manter a ocupação, a expansão e a guerra. Assim, quando um escândalo de corrupção envolve algum líder político que obre nesta direção, o escândalo é morto no berço. Mas quando o escândalo envolve alguém que se mostre disposto a considerar alguma possibilidade de fazer a paz, deixa-se crescer o escândalo até que atinja plena potência.

Já aconteceu com Sharon, às vésperas da desocupação das colônias na Faixa de Gaza. Está outra vez acontecendo com Olmert, quando ele atreve-se a falar sobre paz com a Síria e a remoção das colônias de Golan.

LORD ACTON é famoso por ter dito que “o poder corrompe. O poder absoluto corrompe absolutamente”. No mesmo mote, pode-se dizer que a ocupação corrompe. A ocupação total corrompe totalmente.

Ehud Olmert é produto típico do cinismo e da cumplicidade com a ilegalidade, que infecta Israel nestes já 41 anos de ocupação.

Não significa que antes não houvesse corrupção. Com certeza havia.

Para mim, a corrupção nasceu quando nasceu o Estado de Israel, e não por acaso. Muito já foi dito sobre a Naqba na passagem dos 60 anos do Estado de Israel. Mas um fenômeno foi absolutamente ignorado: o roubo massivo de propriedades árabes abandonadas.

Na guerra de 1948 e na expulsão dos palestinos, entre 100 e 150 mil famílias árabes abandonaram suas casas. Muitos viviam em casas muito pobres, mas não poucos viviam em residências elegantes em Jaffa, Jerusalém e Haifa. O que houve com o que havia dentro destas casas? O que foi feito de dezenas de milhares de tapetes caros, poltronas, refrigeradores, armários, pianos? Que fim levaram os produtos deixados em lojas e armazéns?

Desapareceram.

Muitos destes bens foram recolhidos aos depósitos do governo e foram distribuídos para imigrantes recém-chegados. Jamais vi um único documento sobre este tipo de negócio. A imensa maioria dos bens que os palestinos expulsos deixaram em suas casas, foram, numa palavra, roubados.

Em alguns, raros casos, foram roubados pelos soldados que ocuparam as cidades. Estes casos foram muito raros. Em geral, os soldados conquistavam a cidade e seguiam adiante. Mas depois dos soldados vinha o batalhão da retaguarda, o pessoal encarregado de transporte e organização, os burocratas representantes do governo; estes, sim, chegaram com caminhões e carregaram tudo o que puderam carregar.

Ninguém fez segredo disto. Sabíamos o que estava sendo feito; era assunto corriqueiro, então. Por muito tempo, viram-se sofás e poltronas estofados em veludo, em salas privadas e nos gabinetes. Este fenômeno jamais foi investigado e, depois, foi sendo apagado; por fim, foi suprimido.

Discursei várias vezes sobre isto, no Knesset. Falei até da história bíblica de Achan, filho de Carmi, que, na conquista de Jericó, desobedeceu o mandamento de deus e saqueou e roubou. Como castigo, os israelitas foram derrotados na batalha seguinte. “Israel pecou, e transgrediu a minha lei: roubou objetos destinados à destruição, partilhou o roubo entre os seus e recolheu objetos do roubo entre suas coisas” (Josué, 7:11). Josué executou Achan e toda a sua família, por apedrejamento. Foi genocida dos canaanitas, para impedir que se alastrassem, na guerra, as práticas de roubo e saque.

O roubo à luz do dia de propriedade abandonada por exilados ou expulsos de guerra já violava o ethos socialmente aceito antes da fundação do Estado. O apagamento e a posterior supressão deste crime tornou-o ainda mais grave. Mas a corrupção em larga escala, cujo fruto amargo vemos hoje, em todo o seu horror, começou, mesmo, com a ocupação da Palestina, em 1967.

A ocupação é corrupta e corrompe, por ela mesma. A ocupação atropela todos os direitos humanos, inclusive o direito de propriedade. A ocupação envenena o ar e cria uma atmosfera de indiferença à lei e à legalidade. A ocupação enriquece o ocupante e o bando que o cerque. A ocupação implanta o cinismo, cria um ambiente de “deixe ir de qualquer jeito”. Este ar envenenado não pára na Linha Verde. Ele penetra todos os poros do Estado de Israel, Estado ocupante. Aí, então, a podridão faz ninho.


*Uri Avnery,85 anos, é membro fundador do Gush Shalom (Bloco da Paz israelense). Adolescente, Avnery foi combatente no Irgun e mais tarde soldado no exército israelita. Foi três vezes deputado no Knesset (parlamento). Foi o primeiro israelense a estabelecer contato com a liderança da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em 1974. Foi durante quarenta anos editor-chefe da revista noticiosa Ha'olam Haze. É autor de numerosos livros sobre a ocupação israelense da Palestina, incluindo My Friend, the Enemy (Meu amigo, o inimigo) e Two People, Two States (Dois povos, dois Estados).

* URI AVNERY, 1/6/2008, “When the Kettle Calls the Pot Black”, em Gush Shalom [Grupo da Paz], em http://zope.gush-shalom.org/home/en/channels/avnery/1212277355?ver=Sun%2C%2001%20Jun%202008%2002%3A42%3A39%20%2B0300 . Reprodução autorizada pelo autor e pela tradutora. Copyleft.

Fonte: Blog do Bourdoukan


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