segunda-feira, 16 de junho de 2008

A crise argentina

por Idelber Avelar

quarta-feira, 11 de junho 2008

Já dura três meses a queda-de-braço entre o governo de Cristina Kirchner e o que imprensa convencionou chamar “o campo”. Em março, o governo decidiu por um aumento de 45% nos impostos sobre as exportações de produtos como a soja. A partir daí, o locaute patronal, o bloqueio de estradas e o confronto marcado pela incapacidade do governo de conseguir aliados no campo vêm polarizando a Argentina. Os entidades patronais rurais parecem ter conseguido arrebanhar a simpatia dos pequenos produtores, e o governo enfrenta dificuldades também entre setores da sociedade civil que são críticos dos métodos da família Kirchner, hoje hegemônica dentro do Partido Justicialista (Peronista). A polarização chegou à imprensa, com o Clarín se transformando num verdadeiro porta-voz da oposição e o Página 12 ocupando posição mais alinhada ao oficialismo.

O “racha” na sociedade argentina é mais agudo que qualquer cisão que tenhamos experimentado no Brasil em anos recentes e é incompreensível sem referência a dois elementos bem antigos na Argentina: o abismo político entre Buenos Aires e as províncias (que se remonta ao século XIX) e a falta de alternativas políticas reais ao Peronismo. Ao contrário do que pode parecer, a cisão não é exatamente contígüa à divisão entre direita e esquerda, apesar da linguagem usada pelo governo contra seus opositores (“gorilas”, “golpistas” etc.).

Para entender melhor a crise argentina, o Biscoito deixa aqui alguns links a textos publicados pelas partes envolvidas: a Carta Aberta assinada por milhares de intelectuais e ativistas em apoio ao governo; o Acordo do Bicentenário assinado por um grupo de docentes que tomou distância do kirchnerismo; por fim, o texto Nem com o governo nem com os patronais do campo, assinado por aqueles que mantêm posição crítica a ambos os lados do conflito. A Carta Aberta provocou uma resposta de Vicente Palermo, que faz uma crítica interessante do que poderíamos chamar a "política do possível". Essa intervenção foi contestada – no meu modo de ver de forma não muito convincente – por Horacio González. A polarização chegou ao ponto em que Hebe de Bonafini, líder de um setor das Mães da Praça de Maio (e alinhada com o governo), pediu a prisão dos membros da comissão de enlace do campo. A polêmica já gerou um texto sugestivo sobre a Nova Direita.

PS: O blog transmite de Buenos Aires de amanhã até o dia 27 de junho. Para quem me perguntou sobre o curso sobre música popular e cidadania, aí vão os detalhes. Nesta sexta-feira, nos reunimos de 14:00 às 20:00 na sede da Universidad San Andrés no centro da cidade. No sábado, a aula acontece de 9:00 às 13:00 no auditório da FUNCEB.

PS 2: Alguns outros posts do Biscoito sobre a Argentina:
Esses estranhos seres vegetarianos.
Biblioteca básica de literatura argentina.
Desde Buenos Aires: Revelación de mi identidad.

Dia tenso na Argentina - domingo, 15 de junho 2008

A situação aqui na Argentina, embora não seja a hecatombe que às vezes pinta o Clarín, vai ficando bem grave. O dia de hoje foi o mais tenso dos últimos três meses de crise. Caminhando por Buenos Aires ao léu, vi nada menos que quatro grandes manifestações: três contra o governo e uma a favor, na Praça de Maio. Em primeiro lugar, há que se esclarecer que o aumento das retenções imposto pelo governo não é à exportação de “grãos”, como afirmou hoje a Folha de São Paulo. Aplica-se à soja e ao girassol. De acordo com o decreto original, de maio, que provocou a crise, as retenções sobre o trigo e o milho baixaram, inclusive. 98% da soja produzida pela Argentina se destina à exportação.

Observando as manifestações contra o governo no chiquérrimo bairro de Belgrano, é impossível não perceber uma curiosa ironia: as panelas, em geral, são utilizadas em passeatas por gente que não tem muita intimidade com elas. É aquele desjeito que você vê, por exemplo, nas mãos de um não-fumante forçado a segurar um cigarro. Do lado do governo, o patetismo chega quase ao mesmo nível. Hoje, o ex-presidente Néstor Kirchner, marido da presidente Cristina e chefe do Partido Peronista, foi participar da manifestação pró-governo na Praça de Maio, junto com ministros de estado. Quando a passeata se transforma em instrumento de governo de um país de 40 milhões de habitantes, é porque a coisa vai mal. O peronismo (kirchnerismo), por sua própria natureza, impede o surgimento em seu interior de políticos como Hermes Binner, ao mesmo tempo comprometidos com um idéario de esquerda mas capazes de gestão e negociação.

A grande derrota do governo, até agora, é da ordem das relações públicas: uma queda-de-braço com os exportadores de soja é quase universalmente percebida como um conflito com “o campo”. Essa percepção vai, é claro, informando as atitudes dos próprios sujeitos agrários, que são diversificados entre si, mas que passam a ver-se representados, mesmo que imaginariamente, nos interesses dos sojicultores -- percepção reforçada pelo milenar ressentimento das províncias contra Buenos Aires. Até as Mães da Praça de Maio racharam: enquanto Hebe de Bonafini, fiel ao governo por sua política de direitos humanos, pede prisão de 15 anos para os que bloqueiam as estradas, Mireya González, das Mães de Gualeguaychú, defende a “luta social” dos dirigentes agropecuários. A situação entre os prefeitos também é de cisão: na província de Buenos Aires, 52 prefeitos apóiam “o campo” e 68 apóiam o governo. Em Córdoba, a esmagadora maioria dos prefeitos está contra o governo. Em Santa Fé, a coisa está mais ou menos pau a pau. Ainda não há desabastecimento para valer em Buenos Aires, mas é uma possibilidade real. Em várias províncias, faltou combustível.

Aí vai uma coleção de links para quem quiser acompanhar a crise pelos blogs argentinos de política.

Um lado:
Lomas nuevo o lomas viejo
Homus economicus
NerdProgre
Ramble Tamble
El magma

O outro lado:
50 amaneceres
Nanopoder
Abuelo económico.

PS. Vem-me à memória uma citação de Julio Cortázar, d'O livro de Manuel: O campo é esse lugar onde os frangos passeiam crus.


Fonte: O Biscoito Fino e a Massa


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