Do pen drive à sala de aula
Depois de conectar todas as escolas à internet, o Paraná investe na formação dos professores para lidar com as novas tecnologias.
Por Rodrigo Martins
Quando o vídeo começa a ser exibido, a turma fica irrequieta. Os rapazes gracejam diante das imagens de belas modelos que desfilam a coleção primavera-verão. “Essa aí está para mim”, zomba um garoto de boné, da turma do fundão. Àquela altura, a tevê laranja de 29 polegadas mostrava cenas de consumo nas grandes metrópoles. Após um corte seco, o filme traz imagens de africanos famélicos, cenas de guerra, crianças abandonadas, nossa miséria cotidiana.
A sala emudece e a professora de filosofia Beatriz Matos consegue expor seu argumento aos agora atentos alunos do 2º ano do Ensino Médio da Escola Estadual Paulo Leminski, em Curitiba. “Este vídeo foi produzido por alunas da PUC. É um trabalho que fizeram na universidade para discutir a atualidade do Mito da Caverna”, explica a docente. A obra em questão trata de um diálogo atribuí-do a Sócrates, no qual o filósofo grego descreve uma caverna habitada por homens aprisionados por correntes desde a infância, que acreditavam ser expressão da realidade as sombras que viam projetadas na parede.
“O filme discute se a atmosfera de consumo também não está nos impedindo de enxergar a realidade além das marcas, das grifes e do modismo reinante”, argumenta Matos, que pediu auxílio aos alunos para conectar o pen drive à TV Multimídia, como foi batizado o equipamento, hoje presente em todas as 22 mil salas de aula da rede estadual.
Instalados no início de 2008, os aparelhos são apenas alguns dos instrumentos à disposição dos professores, desde que o governo estadual encampou um ambicioso projeto de tecnologia educacional. O primeiro passo foi a universalização do acesso à internet nas escolas paranaenses, com a aquisição de 44 mil computadores para montar os laboratórios de informática em mais de 2,1 mil escolas. Um investimento de 100 milhões de reais, financiado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Além disso, a Secretaria de Educação criou, em 2003, o portal Dia a Dia, com conteúdos específicos para professores, alunos e a comunidade escolar. Um diferencial do modelo é o conteúdo produzido por 27 professores da rede, cedidos para a equipe do site, que também aceita a colaboração de qualquer docente, inclusive para a publicação de artigos e programas de aulas de sua autoria. “Neste ambiente pedagógico colaborativo, o material enviado ao site é avaliado por uma banca de professores, que sugere as alterações e revisões necessárias para a posterior publicação”, diz Mônica Schreiber, coordenadora de mídia impressa e web.
O portal, com quase 114 mil usuários cadastrados, praticamente o dobro dos 57,2 mil professores da rede, possui mais de 1,7 mil artigos e mil dissertações. O professor pode acessar ainda 8,9 mil arquivos de imagens, 2,2 mil de áudio e 3,4 mil de vídeos. Todo o material é público, com reprodução autorizada, como ocorre com livros didáticos criados por professores e distribuídos gratuitamente nas escolas. “O educador tem como consultar uma ampla biblioteca digital, além das sugestões de aulas feitas pelos próprios colegas, e apresentar isso aos alunos”, completa Mônica. “Os vídeos e imagens podem ser exibidos na TV Multimídia, basta transferir o arquivo da internet para o pen drive e depois plugá-lo na tevê.”
Não é tudo. No ar desde junho de 2006, a TV Paulo Freire, com transmissão via satélite, oferece uma programação voltada para a formação dos profissionais da educação básica, incluindo debates com especialistas e programas para dar visibilidade a experiências pedagógicas bem-sucedidas. “Diferentemente de outras emissoras do gênero, nós não trabalhamos com produções terceirizadas nem com uma equipe de profissionais majoritariamente da área de comunicação”, afirma Aldemara Pereira de Melo, coordenadora da emissora. “Dos nossos 42 profissionais, só nove são técnicos e editores de vídeo. Todo o restante é de professores da rede.”
Para dar suporte às várias mídias digitais, o programa mantém uma equipe de multimeios, que produz animações para a TV Paulo Freire, colabora com a produção de arquivos para o portal Dia a Dia e elabora conteúdos para materiais e projetos gráficos pegagógicos. “Um dos projetos é a tradução de softwares livres educacionais para o português”, comenta Ricardo Petracca, coordenador da equipe. “E o engraçado é que ninguém aqui é programador ou diretor de arte. São todos professores com certa afinidade com computadores. Em tudo há preocupação pedagógica.”
O foco no trabalho dos próprios professores é destacado pela secretária de Educação, Yvelise Arco-Verde, como o grande trunfo das iniciativas de tecnologia educacional. “Em 2004, reestruturamos os planos de carreira. À época, cerca de 80% dos professores estavam no último estágio, não poderiam progredir nem melhorar de salário, o que os deixava desestimulados para buscar especialização e investir em novos métodos de ensino”, avalia. “Com a reestruturação, passamos a exigir do professor investimento na formação ou participação nesses projetos de produção de conteúdo. Hoje, quem envia um programa de aula para o site e tem o material aprovado, ganha pontos para progredir na carreira.”
O gasto mensal com todo o sistema de tecnologia educacional, incluindo pessoal e manutenção, é de cerca de 1,2 milhão de reais, menos de 0,5% do orçamento de Educação.
Segundo a secretária, é cedo para avaliar o impacto das medidas, que começaram a ser implantadas em 2003, com a conexão de todas as escolas paranaenses à internet. Mas há sinais de que o estado tem obtido êxito na política educacional. Em 2007, superou todas as metas fixadas pelo Ministério da Educação no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), que leva em conta o fluxo escolar e as notas obtidas por alunos em exames nacionais. Pelos últimos dados consolidados, o Paraná ocupa a liderança no ranking dos anos iniciais do Ensino Fundamental (média 5,2) e só está atrás de Santa Catarina nos anos finais e no Ensino Médio (notas 4,0 e 3,7, respectivamente).
O articulado projeto de tecnologia educacional do estado foi recentemente destacado como referência pela secretária Nacional de Educação Básica, Maria do Pilar Lacerda de Almeida e Silva, durante um encontro da Universidade Federal do Litoral, em Matinhos. Mas especialistas acentuam que ainda há um longo caminho a ser trilhado. “O Paraná está à frente de outros estados porque conseguiu universalizar o acesso aos computadores”, avalia Gláucia Brito, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e especialista em tecnologias educacionais. “Mas ainda falta ouvir o professor, saber o que ele precisa, além de oferecer uma formação pedagógica consistente, para que possa fazer bom uso dessa estrutura.”
A professora Beatriz Matos confirma: “No início, eu não sabia sequer converter os arquivos no formato adequado. Quem muitas vezes me ajudava eram os próprios alunos. A secretaria oferece algumas aulas de capacitação, mas ainda é pouco”. Apesar disso, pondera: “Eu resolvi me aventurar, até porque os alunos me cobravam sempre. E, devo reconhecer, o desempenho deles melhorou muito após o uso desses recursos”.
O estado conta com 270 assessores técnicos e pedagógicos para visitar as escolas e orientar os professores no uso das novas tecnologias. “Cada um deles é responsável por acompanhar de dez a doze escolas”, afirma Elizabete dos Santos, diretora de Tecnologia Educacional da Secretaria de Educação. “Não se trata de uma simples capacitação técnica, eles têm a função de mostrar como os docentes podem usar os equipamentos de maneira pedagógica.”
Outra aposta é o Programa de Desenvolvimento Educacional (não confundir com o projeto homônimo, mantido pelo governo federal), voltado para a formação dos docentes. “Pelo PDE-PR, os professores recebem licença de dois anos para estudar na universidade e formular projetos que possam ser aplicados na escola em que atuam”, resume Yvelise. Até agora, 1,2 mil profissionais concluíram os estudos, que têm a validade de uma pós-graduação e contam pontos na progressão da carreira, e outros 4,4 mil estão nos bancos universitários, desenvolvendo seus projetos.
“O programa é uma via de mão dupla. Beneficia tanto as escolas como as universidades, que passam a contar com mais essa ponte para conhecer a realidade nas salas de aulas”, comenta Cleusa Valério Gabardo, professora de Educação da UFPR. “O problema continua sendo a volta dos professores para as escolas, porque eles nem sempre têm condições materiais ou ambiente propício para levar adiante o projeto.”
Alheios às dificuldades, os alunos avaliam positivamente as modificações tecnológicas. Alisson Schmit, de 15 anos, aluno da escola Paulo Leminski, é um dos entusiastas da TV Multimídia. “Tudo fica bem menos cansativo. Lembro de uma aula de história em que o professor descrevia uma vila medieval, enquanto apresentava imagens na tela. Acho que sem ver as fotos, eu não entenderia nada”, comenta. Já o colega de classe Pedro Rafael da Rosa não perde a oportunidade de dar um puxão de orelha nos mestres. “Quase todos os alunos apresentam trabalhos na tevê, mas só uma minoria dos professores usa frequentemente o aparelho”, lamenta.
A diretora da escola, Célia Luzzi, diz que esse tipo de reclamação é habitual. “Os alunos cobram mesmo e os professores se sentem compelidos a planejar a aula de maneira diferente, o que é muito bom”, avalia. “Muitos não tinham familiaridade com os equipamentos e é muito difícil um professor dizer ‘eu não sei’. Mas essa barreira inicial foi superada. E, em cada turno, todo dia, ao menos quinze salas usam a tevê.”
Fonte: Carta Capital
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