sábado, 25 de abril de 2009

A PEDAGOGIA DA FILA

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Por Jorge Valpaços (*)

É claro que todos já ouviram falar que o brasileiro gosta de fila. Mas, talvez uma das afirmações mais conhecidas do folclore popular esteja equivocada. Essa é a intenção das palavras que seguem. Como sou um ser pensante como todos que estão a ler o que escrevo, passei a questionar esse prazer pelo sofrimento, ou "burrice", como alguns chamam. Até porque, como as próximas linhas deixam claro, “o brasileiro” em questão tem seu lugar, é "um brasileiro" específico, não todos. Mas vamos com cautela. É necessária uma análise histórico-crítica para que meu argumento tenha um mínimo embasamento. Pensemos em algumas situações "de fila" para entendermos o processo de construção dessa formulação, que para mim é um mito.

Creio que para podermos entender a questão das filas para o brasileiro, bem como para qualquer indivíduo no mundo, é necessário falar do trinômio alimentação, educação e saúde. Tais são as bases da vida de qualquer indivíduo moderno. São também as fontes das principais filas encaradas em nossos dias. Então tomemos cada uma à parte. Primeiro, a alimentação, o tema que mais domino e estudo.

Censos apontam que a maior fatia do consumo das populações de baixa renda se devem à alimentação. A maior parte dos salários dos setores populares é gasto com a alimentação. Não é em vão que notamos que as filas em supermercados em dias de promoção são muito grandes. Já foram maiores, sobretudo em tempos de alta inflação, "compras de mês" e correria em face das temerosas máquinas remarcadoras de preços.

Há quem não precise correr atrás dos preços baixos, pois tem dinheiro para comprar os alimentos. Normalmente falamos de uma pequena parcela da população. Historicamente o arrocho salarial e a perda do poder de compra agravaram-se ao longo do século XX, instituindo uma diferenciação básica no consumo das diferentes camadas sociais. Não há "lazer e cultura” consumidos pelos setores populares, pois é necessário o gasto com a própria sobrevivência, para além das questões culturais que estabelecem determinados produtos como de "elite" em detrimento de outros.

Vou enumerar algumas filas relacionadas à alimentação que não se aplicam aos setores dominantes: fila para receber cestas-básicas ou bolsas-auxílio de diversas origens; fila para receber a sopa noturna nas ruas da cidade; fila para almoçar no restaurante popular, bem como em várias pensões; fila para almoçar nas escolas públicas. É interessante pensar como não há reclamação das filas nas praças de alimentação de centros de vendas como shoppings. Também é interessante notar que os "mais favorecidos" não têm que tomar filas ao pedir alimentos em suas residências usando o serviço de entrega, o que é muito mais caro. Aliás, como sabemos muito bem, se alimentar fora de casa é privilégio de poucos. É mais barato comprar os alimentos e os preparar em casa. Daí, mais filas, na compra dos mesmos.

Passemos para a educação. Quaisquer processos de maior acesso à educação automaticamente acarretam filas. É só pensar na fila da isenção do vestibular ou na matrícula de escolas públicas. Há fila para receber o livro didático, entre muitas outras que não atingem àquela fatia pequena da população que faz piada com as filas... Isso porque nem falo de concursos públicos e outras fontes de "filas" que estão indiretamente relacionadas com a educação.

A saúde é mais um exemplo claro que as filas são "relativas". Quem paga "aquele" plano de saúde não tem que ficar horas em filas, acordando nas madrugadas, recebendo uma senha e sem ter a certeza se será ou não atendido. Ainda há a fila do transplante, a fila para sair da internação, e a mórbida fila da liberação do cadáver. Sim, até ali quem não tem "condições" tem que pegar filas.

Então fica provado que trata-se de um mito. Como qualquer mito na História, não é uma mentira, mas uma possível versão, ou distorção do observado. Através dele podemos acessar e estudar os processos sociais. Há uma clara preocupação na construção do mito - e quem o construiu certamente se coloca enquanto setor dominante - "acima" do "brasileiro que gosta de fila". É claro que há filas, mas não é por isso que gostamos de freqüentá-las.

Quem não "usa a fila", quem "não está acostumado" com a fila, certamente estranha o hábito de levar horas para comprar um alimento barato ou tomar a condução, mas dizer que isso é do gosto dos populares, já é demais. Como sabemos, não há formulações sem intencionalidade. Dessa forma, reproduzir esse discurso encerra o lugar de quem "gosta de fila" em uma posição inferior em relação a quem "não gosta" (ou melhor, não precisa). Por mais uma vez, a dominação é dada através de discursos, de uma forma sutil, irônica, e repleta de humor. Humor que eu prefiro dispensar, pois sei que não é nada engraçado ver as desigualdades do ponto de ônibus enquanto passam carros de luxo com seus motoristas agraciados por ares refrescantes rindo de quem fica a espera da condução.

(*) Jorge Valpaços é historiador e freqüentador indignado de filas.

Fonte: Fazendo Media

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