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A visibilidade que povos e comunidades tradicionais vêm experenciando é fruto de um trabalho sócio-político que estimulou a ampliação da participação desses grupos na esfera pública e política, resultando no aumento de suas organizações e mobilizações.
por Silvia A. Zimmermann*
Desde o início de seu mandato, o Governo Lula se propôs a diversificar o âmbito de beneficiários de suas políticas públicas. A instituição, pelo Decreto nº 6.040/2007, da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT) se deu nesse sentido. Essa política entende que, num país tão diverso em sua composição étnica e cultural, é um grande desafio estabelecer e implementar políticas públicas para promoção do bem-estar social dessas populações que, muitas vezes, encontram-se na invisibilidade, sendo socialmente excluídas por pressões econômicas, fundiárias ou por processos discriminatórios.
Dividida em princípios gerais e objetivos específicos, a política está estruturada em quatro grandes eixos: I) garantia de acesso a territórios tradicionais e aos recursos naturais; II) infra-estrutura; III) inclusão social e educação diferenciada; e IV) fomento à produção sustentável.
Representantes do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) ocupam, respectivamente, a secretaria-executiva e a presidência da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, criada em agosto de 2006, com a finalidade de coordenar a elaboração e implementação da política. Uma série de debates públicos, promovidos por essa Comissão, antecedeu a PNPCT. Com o objetivo de operacionalizar a política, o MDS criou o Núcleo de Povos e Comunidades Tradicionais, composto por técnicos da área de antropologia e/ou com experiência específica junto aos povos e comunidades tradicionais.
A criação da PNPCT foi envolvida por muitas polêmicas, que poderiam ser resumidas da seguinte forma: as relacionadas à dimensão conceitual das temáticas relacionadas; as relativas ao universo de abrangência da categoria “povos e comunidades tradicionais”; e a definição do número de categorias incluídas na política, na época mais de dez: Povos Indígenas, Comunidades Remanescentes de Quilombos, Ribeirinhos, Extrativistas, Quebradeiras-de-Coco-Babaçú, Pescadores Artesanais, Seringueiros, Geraizeiros, Vazanteiros, Pantaneiros, Comunidades de Fundos de Pastos, Caiçaras, Faxinalenses, dentre outros. Atualmente, esse universo está ainda mais amplo.
Em fevereiro de 2009, a PNPCT completou dois anos, e ainda parecem mal equacionadas questões relacionadas ao reconhecimento de terras quilombolas, à demarcação de áreas indígenas, aos conflitos em torno da construção de barragens e hidrelétricas, à extração sustentável dos recursos naturais entre outros. No texto, pretende-se revisitar três dos quatro eixos da PNPCT e comentar alguns conflitos e ações do governo e da sociedade civil originados neste processo.
O primeiro eixo, relativo ao acesso a territórios tradicionais e aos recursos naturais, é certamente um dos mais polêmicos. Aqui, enquadra-se o caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, cuja homologação contínua foi feita em abril de 2005 e julgada legítima pelo STF em dezembro de 2008. A área da União que estava sendo ocupada há mais de vinte anos por arrozeiros foi palco de uma série de conflitos entre estes e os indígenas. Como estratégia para agilizar o processo e reduzir os conflitos, a União transferiu por Decreto (nº 6.754/2009) as terras para o Estado de Roraima, o que facilita que as terras sejam preferencialmente utilizadas em atividades de conservação ambiental e desenvolvimento sustentável, assentamento, colonização e regularização fundiária. Embora tenha sido determinada a retirada dos não-indígenas da área, incluindo os arrozeiros, até 30 de abril de 2009, a questão segue cercada de disputas políticas.
Os conflitos em torno do acesso dos povos e comunidades tradicionais aos territórios também estão presentes no reconhecimento de áreas quilombolas, a exemplo de Sapê do Norte no Espírito Santo, da Marambaia no Rio de Janeiro, do Pontal dos Crioulos em Sergipe, de Minas Novas em Minas Gerais, e de Alcântara no Maranhão. A edição do Decreto nº 4.887/2003, que dá poderes ao Incra para identificar e destinar às comunidades quilombolas as terras por elas tradicionalmente ocupadas, vem sofrendo uma série de tentativas de derrubada desde sua criação. Destaca-se o PDL 44/2007, cujo objetivo é sustar a aplicação do decreto federal antes mencionado. Segundo os seus críticos, vários de seus pontos, entre os quais o direito à autoidentificação e à desapropriação para remanescentes das comunidades de quilombos, não estariam previstos por lei ou pela Constituição. Até o momento, o texto está em análise na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, provocando protestos e debates.
Entre os fatores que pressionam o entorno das áreas dos povos e comunidades tradicionais estão o avanço das fronteiras econômicas do país – agrícola, madeireira e mineral – e a construção das grandes obras de infraestrutura, especialmente de transporte e energia, para atender às demandas de crescimento econômico. Somam-se a essas pressões outros elementos que tornam a implementação da política ainda mais conturbada: o processo de reconhecimento das áreas de povos e de comunidades tradicionais, e das suas populações; a intensificação da exploração dos recursos naturais; e a crescente demanda econômica desses grupos, diante de mudança em seus hábitos de consumo.
Esse quadro de crescente dificuldade na garantia de acesso ao território e aos recursos naturais pelas comunidades tradicionais expõe, de uma forma geral, outra carência: a necessidade de uma política mais consistente de reforma agrária para o Brasil, a qual inclua essas populações. Não subestimando as boas intenções envolvidas na PNPCT, não há menção nem em seu texto, nem nos decretos vinculados, sobre como equacionar as problemáticas já citadas, o que amplia os conflitos em torno do acesso a terra e ao uso dos recursos naturais.
O segundo eixo da PNPCT trata de infraestrutura para esses grupos. No entanto, a questão polêmica aqui se relaciona às obras federais destinadas a beneficiar a população de modo geral, mas que têm impactos nas áreas dos povos e comunidades tradicionais. Destacam-se o caso da construção da BR 163 (que liga o estado do Mato-Grosso ao Pará), a hidrelétrica do Belo Monte no Rio Xingu, a transposição do Rio São Francisco, a hidrelétrica Tijuco Alto (entre São Paulo e Paraná), a Hidrelétrica do Madeira, a área de lançamento de foguete em Alcântara no Maranhão. Esses projetos têm gerado conflitos das mais diversas ordens, indicando um descompasso entre a PNPCT e projetos de infraestrutura em áreas desses grupos populacionais.
A ocupação e uso sustentável das áreas mencionadas esbarra nas contradições em torno do projeto de desenvolvimento proposto e implementado pelo Governo Federal. Por envolver interesses políticos e econômicos, certamente é uma questão muito delicada e por isso tratada com cautela. Destaca-se aqui a proposta do Fórum Amazônia Sustentável, a qual tem por finalidade criar um espaço de diálogo entre empresas, governos e organizações da sociedade civil para estudar e apontar alternativas e modelos de desenvolvimento sustentáveis para a Amazônia. Isso, no entanto, não está em andamento em outras regiões do país.
O terceiro eixo da PNPCT trata do fomento a produção sustentável. Aqui o conflito está em torno da extração sustentável dos recursos naturais, como a Lei de Cultivares nº 9.456/1997, a defesa da produção agroecológica e dos sistemas agroflorestais. Há hoje uma proposta de alteração da lei que, segundo representantes de agricultores familiares e de povos e comunidades tradicionais, ameaçaria o direito dessas populações às sementes. O PL 2.327/2007, debatido pela Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados, ainda não foi aprovado. Ele propõe alterar a atual lei atual e permitir que empresas possam proteger e obter exclusividade na reprodução e comercialização de variedades de sementes. A lei em vigor, fruto de intenso debate, garantiu o direito aos pequenos produtores da guarda, da troca e do uso de sementes na safra seguinte.
Diante das polêmicas vinculadas ao eixo, duas novas propostas do Governo Federal estão em curso: a criação de um Plano Nacional para Promoção dos Produtos da sociobiodiversidade e a fixação de preços mínimos para produtos extrativistas. O primeiro foi debatido em 2008 e ainda não está concluído. O segundo, aprovado pelo Conselho Monetário Nacional, encontra-se em andamento, mas até o momento só inclui quatro produtos: borracha natural, açaí, pequi e castanha de babaçu. A intenção é melhorar a capacidade produtiva, promover a autossustentação e apoiar a comercialização dos produtos pelos povos e comunidades tradicionais.
Para além da PNPCT, a visibilidade que povos e comunidades tradicionais vêm experenciando é fruto de um trabalho sócio-político que estimulou a ampliação da participação desses grupos na esfera pública e política, resultando no aumento de suas organizações e mobilizações. A influência no Poder Judiciário pode ser observada pela criação de uma rede jurídica na América do Sul, de defesa da Amazônia e seus Povos. Os povos e comunidades tradicionais também têm participado de debates sobre o decreto que irá regulamentar o Fundo Nacional de Desenvolvimento Florestal (FNDF) e estão presentes na Política Indianista, em elaboração, e de debates sobre o Programa Territórios da Cidadania e na Política Nacional de Manejo Comunitário e Familiar.
Não obstante os problemas e desafios que a PNPCT vem enfrentando em sua implementação, pode-se afirmar, de uma forma geral, que a política teve efeitos positivos. Seu mérito reside, antes de tudo, em reconhecer as desigualdades sofridas pelos povos e comunidades tradicionais e trazê-las para o debate público, fortalecendo a participação de representantes desses grupos sociais nos espaços políticos, sejam eles formais ou informais. Nesse processo, apesar das controvérsias, foram criadas novas categorias sociais que vêm lutando por reconhecimento político.
É certo que as polêmicas em torno das definições conceituais e da abrangência das categorias da PNCPT ainda não foram superadas. Basicamente, as disputas observadas na revisão dos três eixos da política exigem não apenas a garantia da igualdade dos direitos, mas, sobretudo, o reconhecimento da igualdade dos seres humanos e dos direitos daí decorrentes. O que vai além muito além de uma política pública.
*Silvia A. Zimmermann é engenheira agrônoma, doutoranda CPDA/UFRRJ e
assistente de pesquisa do OPPA.
Fonte: Carta Maior
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