por Emiliano José
Chega ser quase obscena a posição hegemônica da mídia brasileira quanto a Lula. Isso voltou a se evidenciar nas reações iradas, irônicas, rasteiras às reiteradas falas do presidente dos EUA, Barack Obama, que não economizou elogios ao presidente brasileiro. Talvez pudéssemos qualificar tais reações como “ódio de classe”, para seguir a trilha teórica do marxismo.
Não creio, no entanto, que isso explique tudo. Há, aqui, como tenho sustentado em alguns trabalhos meus, uma posição política de nossa mídia, também associada a aspectos culturais, como o acentuado desprezo das classes dominantes àqueles que vêm de baixo, quanto mais se provenientes do Nordeste. Descartadas sempre as honrosas exceções, CartaCapital entre elas, a imprensa brasileira carrega a marca da Casa Grande. A ascensão de Senzala a incomoda muito, provoca urticária.
Foi Obama falar e ela se agitar. Os colunistas entraram rapidamente em ação. Um dizia que Lula apenas enfeitava o projeto dos grandes países capitalistas, capitaneado pelos EUA. Outro dizia que tudo bem, belos elogios, mas que Lula devia voltar logo e “começar a governar o Brasil em crise”. Outro, alcançando os píncaros da indigência intelectual, afirmava que tudo aquilo era ironia do presidente dos EUA. Eles não resistem à afirmação desse “presidente-operário-metido-a-besta”.
O que as reiteradas declarações de Obama, a performance de Lula no G-20 e na Cumbre recente provocaram foi a discussão sobre a liderança de Lula na cena mundial, particularmente o seu papel diante da crise econômica.
Volto ao início: todo esse discurso está fundado numa posição política: a mídia brasileira sempre sustentou uma atitude contrária a governos reformistas e democráticos. Não cabe detalhar isso nos limites desse texto. Se apenas passássemos os olhos em episódios históricos como o suicídio de Getúlio, o golpe de 64 e a própria convivência com a ditadura, perceberiam o quanto houve de participação decisiva na tentativa de golpe em 54, na articulação de 64 e na convivência com os militares, na seqüência. Aceitar uma liderança como Lula é demais. Trata-se da encarnação de um projeto bastante diferente do que a maior parte de nossa mídia defende.
Não me parece que seja correto discutir a ascensão de Lula como líder mundial a partir das declarações do presidente dos EUA. É evidente que elas têm um significado forte, um poderoso impacto político e midiático. A liderança de Lula, no entanto, ao ser reconhecida pelo país-líder do Império, reclama uma explicação que vai muito além da “chancela” de Obama. Essa liderança se constitui ao longo do tempo e é a encarnação de um projeto histórico-cultural e político coletivo. É evidente que esse projeto encontrou em Lula um ator excepcional, de um talento raro. Talento que vem se afirmando de maneira indiscutível.
Quando o atual presidente da República se colocou à frente da classe operária moderna, nas impressionantes mobilizações do final da década de 70 do século passado, pouca gente podia desconfiar estar ali o germe de um novo poder político no Brasil. De líder operário a líder político foi um salto. Lula deixa de ser uma liderança corporativa, desprega-se do exclusivismo da luta operário-sindical, para elevar-se à condição de dirigente político, passando a representar o conjunto da classe trabalhadora e, com isso, caminhando para hegemonizar toda a sociedade brasileira. E dos anos 80 em diante, o novo projeto foi ganhando consistência, constituindo-se uma constelação de forças capitaneada pelo Partido dos Trabalhadores que, com altos e baixos, erros e acertos, foi ganhando pacientemente a confiança da população brasileira até que em 2002 Lula se torna presidente da República, rompendo pela primeira vez uma tradição secular. Um integrante da classe operária dirigia os destinos do Brasil.
As classes dominantes e suas elites políticas desdenharam. Tinham certeza de que “ele e sua equipe” não saberiam o que fazer, que tudo desandaria rapidamente. Deram com os burros n’água. Lula e sua equipe imprimiram um novo rumo ao País. Podemos dizer que de 2003 para cá, o Brasil passou a experimentar uma revolução democrática. Iniciou-se um processo real de distribuição de renda, com políticas públicas capazes de garantir melhorias das condições de vida de milhões de pessoas. Claro que se trata do inicio de um processo, mas revelando inegavelmente uma mudança profunda de rumos no plano da política interna.
Esse projeto foi duramente atacado em 2005/2006. Para além dos erros cometidos, e que o PT reconheceu, o fato é que tudo girava em torno da necessidade de derrotar Lula e o projeto que ele encarnava. Lula resistiu porque tinha a convicção de que era fundamental continuar as mudanças que apenas havia iniciado.
E ele tinha plena convicção de ter as mãos limpas. Era necessário continuar a distribuir renda, promover o desenvolvimento, modernizar o país, redesenhar sua infra-estrutura isso depois de ter conseguido equilibrar as finanças públicas. Lula se reelegeu. O povo brasileiro reconhecia nele a sua liderança.
No plano da política externa, deu um giro de 180 graus. Privilegiou as relações com a América Latina, Ásia e África. Tomou posições corajosas, como a de opor-se à guerra do Iraque, à Alca (que foi derrotada), defendeu os interesses dos países mais pobres, pregou a união entre eles, lutou e luta pelo Mercosul.
E, diante da crise econômica originada no coração do Império, foi incisivo: os mais pobres não podem pagar essa conta. Lula conseguiu firmar-se no seu país e ao fazê-lo sabia que não podia deixar o mundo de lado. A seu modo, compreendeu que precisava enfrentar os desafios da globalização com posições políticas democráticas, capazes de opor-se à crescente exclusão dos mais pobres. E por isso tornou-se essa liderança. Que tem compromissos profundos com o seu povo e com os povos do mundo.
Os líderes se afirmam quando são capazes de interpretar sentimentos e aspirações profundas dos povos. Lula tem sabido fazer isso. Não desvinculou-se de suas raízes.
Fonte: Carta Capital
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