terça-feira, 14 de abril de 2009

Padilha: 'Garapa' defende Bolsa Família e irrita Ali Kamel

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Padilha: 'Garapa' defende Bolsa Família e irrita Ali Kamel, diretor-geral de jornalismo da Globo (aquele que escreveu um livro pra dizer que no Brasil não há racismo...)

O diretor de Tropa de Elite e Ônibus 174, José Padilha, acaba de lançar no festival "É Tudo Verdade" seu mais recente documentário, Garapa, que aborda a fome crônica. O filme acompanha a rotina de três famílias do Ceará que estão, segundo conceito da ONU, em situação de insegurança alimentar grave ou, nas palavras de Padilha, fome crônica. O tema já é polêmico por si só, mas o jornalista Ali Kamel esquentou ainda mais.

Em artigo publicado em O Globo, ele contesta Garapa e Padilha em referência ao programa do governo Bolsa Família. Segundo Kamel, essa não é a solução do problema da fome, pois "a enorme abrangência do programa pode ser contraproducente". Outra crítica do jornalista se refere à pesquisa do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas) feita entre beneficiados do Bolsa Família para verificar a segurança alimentar. Para ele, a pesquisa é falha e não detalha com precisão o problema. Kamel defende ainda que os recursos seriam melhores aproveitados se investidos na educação.

Em resposta, o cineasta escreveu que “o Bolsa Família é um programa de simples execução e de retorno humanitário rápido. Quem defende a alocação de parte dos seus recursos em educação precisa especificar um projeto educacional e demonstrar que tanto o projeto quanto seu executor serão eficientes a ponto de compensar rapidamente a perda de receita de quem ficou de fora do programa. E precisa detalhar o impacto que essa perda terá na vida dos excluídos.” Em entrevista à edição deste mês da revista Bravo, Padilha explicita a antiga polêmica.

- Confira a seguir a íntegra da entrevista com o cineasta:

Como foi sua volta ao documentário depois do grande êxito de Tropa de Elite? Por que você voltou ao gênero?

Padilha - Na verdade eu não voltei porque nunca saí. Filmei o Garapa e o Tropa de Elite juntos, e enquanto filmava os dois eu ainda estava com um outro documentário sobre antropologia, o Povos Selvagens (filme trata da exploração dos índios Yanomami por antropólogos americanos e franceses), que está hoje na ilha de montagem.

Você começou com Ônibus 174, um retrato da violência urbana no Rio de Janeiro. Tropa de Elite, dentro do campo da ficção, também trata da violência, a violência da polícia. Você volta agora com Garapa a tratar de uma mazela social, o problema da fome. Em um artigo, o diretor-executivo de jornalismo da Rede Globo de Televisão, Ali Kamel, contesta o seu filme. Como você analisa mais essa polêmica criada por um filme seu?

Padilha - A fome é um problema social seríssimo. O Garapa lida com um problema que é muito maior que os problemas que eu lido no Ônibus 174, no Tropa de Elite. Não estou falando que o problema da violência seja pequeno, é enorme. Mas Garapa lida com a fome crônica, algo que existe em todos os países. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), são mais de 910 milhões de pessoas no mundo passando fome. Para ser bem preciso, sofrendo de insegurança alimentar grave, que é um conceito da ONU.

Agora, a forma pela qual o Estado lida com os pequenos criminosos, os meninos de rua também é um problema social grave. A forma que a polícia trata os policiais, o mau salário, o alto risco a periculosidade, o treinamento que torna o policial uma pessoa violenta também são problemas sociais. Todos esses filmes lidam com problemas sociais, então não têm uma descontinuidade temática. O que o Garapa faz - e os outros não fazem - é lidar com um problema mais universal.

O Ali Kamel não tinha visto o meu filme quando fez o artigo, então o Garapa era um mote. O artigo era essencialmente sobre uma pesquisa do Ibase (Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), sobre os números da desnutrição dentro do universo do Fome Zero. O Ibase tinha mensurado que 11 milhões de brasileiros ainda estavam na categoria de insegurança alimentar grave, que para o Ibase, para mim e para quase todos os países do mundo significa passar fome crônica. O que o Ali Kamel contesta é que o conceito de insegurança alimentar grave não é uma boa medida para a desnutrição e para a fome crônica. O artigo não era sobre o meu filme, era sobre a pesquisa. Eu respondi com o Francisco Menezes e ficou esse debate. Mas eu não acho que o Ali Kamel seja mal- intencionado, a gente só discorda. Ele propõe uma realocação dos recursos do Fome Zero e do Bolsa Família para a educação. O que falta dizer é que problema de educação é esse, porque o Bolsa Família é um programa muito fácil de operar: você transfere o dinheiro para a família e ela compra comida ou o que ela quiser, mas prioritariamente, pelo que eu vi, comida. O problema de educação é muito complexo e o governo brasileiro não tem se demonstrado muito eficiente nos seus programas educacionais, então o Ali Kamel precisa detalhar que programa educacional é esse, quem vai operar esse programa, como funciona, porque vai abarcar um universo grande. Por que não a verba de publicidade do governo, ou parte dela, que é 10% do Bolsa Família, ou outras verbas? Então eu não entendi bem a posição dele, mas foi um artigo respeitoso.

Como você vê o Programa Bolsa Família?

Padilha - Existe um debate importante do Bolsa Família. É uma quantidade, que não é significativa no contexto do orçamento geral da União, mas é uma quantidade razoável de dinheiro - R$ 12 bi, R$ 10 bi por ano. Eu acredito nos números do Ibase e acho que o programa Bolsa Família necessário; o Ali Kamel não. Eu acho que seria temerário realocar os recursos num programa de educação, sobretudo num programa muito vagamente ou sequer especificado. Muitas famílias dependem do programa para sobreviver. Eu filmei uma família que sobrevivia com ele por 12 dias e pelo resto do mês as crianças comiam açúcar. Eu não li a estatística só. A estatística é importante, fundamental, mas você tem que ver. Eu escuto gente falando 'Ah, o cara comprou um eletrodoméstico com o dinheiro do Bolsa Família', mas o cara não tem geladeira, não consegue nem conservar a carne, o leite. E também essa ideia de que você só mede a desnutrição pesando as pessoas, que é mais ou menos a proposta, pelo que eu entendi, do artigo do Ali Kamel é assim, por exemplo, no Cerro Corá, uma favela do Rio, todo dia se você for lá de manhã você vai ver quatro ou cinco senhoras obesas que descem o morro, metem a mão no lixo, catam açúcar, farinha e comem esse troço. As famílias que eu filmei comem açúcar de colher. Então essas pessoas ficam obesas e desnutridas. Existe um conceito que abre o filme do Josué de Castro da fome parcial, que não é a ausência total de alimentos, mas a ausência de nutrientes fundamentais para o desenvolvimento de uma criança. Se você não garantir a base biológica nutricional da criança, como você vai educá-la? Discordo educadamente, mas discordo da posição do Ali Kamel em relação a isso. O artigo atribuía ao filme o que ele não faz. O filme mostra a fome do ponto de vista que quem passa fome.

Outro aspecto do Bolsa Família que é relevante falar é que ele é muito criticado por ser um programa que transfere renda, e é mesmo. O governo arrecada imposto e transfere a renda para pessoas que ele classificou como sendo mais pobres. Por isso, dizem que tem um viés eleitoral. Pode ser que tenha, pode ser que o cara que recebe aquela renda vote no político que ele acha que melhorou a vida dele - e de fato melhorou -, que faz parte do raciocínio democrático. Agora eu quero lembrar que o Brasil teve um programa mais eficiente e muito mais volumoso que o Bolsa Família, que mexeu com muito mais dinheiro que 10, 12 milhões de reais, que foi a inflação e as altas taxas de juros praticadas pelo governo durante anos e até hoje. Elas transferiram dinheiro dos mais pobres pros mais ricos, essas pessoas enriqueceram muito e influenciaram na política brasileira muito mais que a classe que recebe Bolsa Família. Influenciaram fazendo caixa de campanha, ajudando seus pares. Então, como é que o programa de transferência de renda agora está mudando a eleição? E antes? Por que ninguém falou desse fenômeno que acontecia antes? Só por que era no sentido contrário? É uma questão que eu coloco aqui."

Por que você optou pelo preto e branco e pela forte granulação em seu filme?

Padilha - Eu não optei pela imagem granulada, foram as condições de luz que optaram por ela. Mas as pessoas imaginam erradamente que o diretor de cinema tem uma opção, que ele pode captar as coisas de maneira completamente fidedigna ou não. Quis fazer um filme em que o espectador sentasse na sala de cinema e logo de cara visse que era um filme sobre a falta. Ausência de comida, de roupa. Aqueles personagens têm uma grande sensação de falta. Eu optei esteticamente por retirar coisas que o público está acostumando a ver no cinema. Então, não tem dolby surround, o som é mono; não tem fusão, é tudo corte seco; não tem música nenhuma; o filme é quase todo com lente fixa e não tem cor. Poderia fazer um filme a cores e ser completamente fora da realidade, e alguém talvez não falasse nada. Também, essa ideia de que a arte representa bem quando é fidedigna é muito inocente. Acho que o problema da arte não é o problema da representação fidedigna. É o problema da expressão e eu fiz a opção estética que achei que exprimia melhor o que eu vi.

Você está com outro filme no gatilho, Nunca antes na história deste país.

Padilha - É um filme sobre o processo eleitoral no Brasil, financiamento dos partidos. É sobre corrupção. Como é o processo eleitoral, fala um pouco também sobre essa transferência de renda dos pobres pros ricos e depois como essa renda entra no mundo político. O antropólogo Luiz Eduardo Soares é o autor do roteiro. É muito bom e eu estou animado para fazer.

Como você enxerga essa questão que parece ter tomado conta do cinema autoral hoje, no qual a realidade e a ficção estão tão imbrincadas? Pergunto isso porque foi a partir de Ônibus 174 que o Bruno Barreto resolveu filmar a história do Sandro, Parada 174. E foi a partir de Notícias de uma Guerra Particular que você fez o Tropa de Elite.

Padilha - Eu só fiz um filme de ficção e um número razoável de documentários (foram seis ao todo), então me sinto mais à vontade para falar de documentário. O cinema de documentário sempre teve uma tradição de engajamento social. A ficção pode ser a representação de um aspecto da realidade, o Tropa de Elite é assim, como Cidade de Deus e Carandiru. E não só no cinema brasileiro, tem o Platoon (filme de 1986 com Charlie Sheen, no qual interpreta um recruta voluntário do Vietnã que perde a inocência ao adentrar o universo da guerra), por exemplo. É uma coisa muito comum no cinema. Eu me interesso por esse tipo de filme, não me interesso por fazer filmes totalmente deslocados da realidade. Não faria Star Wars! Não existe o Luck Skywalker, ai já me atrapalho (risos).

Assim como Tropa de Elite, E Se eu Fosse Você 2 (dirigido por Daniel Filho e recordista de bilheteria da chamada era da retomada com 5.324.387 milhões de espectadores) é um sucesso. Você é a favor de filmes populares?

Padilha - Não acho que um filme comercial e um filme engajado socialmente sejam coisas excludentes. Dá para fazer as duas coisas e eu tento fazer isso o máximo que posso. Às vezes não dá. Nunca imaginei que Tropa de Elite fosse ser um sucesso comercial. Fiz o melhor filme que eu podia fazer. As músicas que usei foram as músicas que os policiais ouviam na época. Filmei com a câmera na mão, porque eu gosto. Narrei do ponto de vista do policial violento, assim como eu narrei Ônibus 174 do ponto de vista do menino de rua que se comportou de maneira estupidamente violenta dentro de um ônibus. Eu gosto de narrar todos os meus filmes do ponto de vista da pessoa que está dentro da história.

Com a Lei do Audiovisual, a Ancine procurou levantar a indústria do Audiovisual. O que falta para isso acontecer?

Padilha - O cinema no mundo inteiro é subvencionado estatalmente - a não ser pelos Estados Unidos e pela Índia, mas mesmo assim vai começar a ter subvenção nos EUA. Então, o cinema funciona em algumas economias que têm certo porte para fazer cinema. Mas acho que há um erro aí na estruturação comercial do cinema brasileiro. As distribuidoras operam no Brasil no mesmo molde que operam no mercado americano e esse formato é antieconômico, ele não funciona no ambiente brasileiro. As distribuidoras nos Estados Unidos entram com o dinheiro inteiro do filme, que podem às vezes custar US$ 70, US$ 80 milhões, e negociam seus contatos com as produtoras com base nessa realidade. No Brasil, as produtoras colocam uma fração do dinheiro do filme para lançar, em comparação ao orçamento do filme. E, no entanto, a posição comercial é a mesma que têm nos EUA. Está errado. A gente não podia fazer cinema adotando os modelos contratuais americanos no ambiente do Brasil onde a correlação de forças é totalmente diferente. Eu e meu sócio achamos um modelo diferente e vamos lançar dois ou três filmes para ver como vai funcionar.

E como é esse modelo?

Padilha - É mudar um pouco a correlação de forças entre distribuidor e produtor. Quero ter uma experiência prática pra depois listar e explicar como funciona. Eu acho que tem uma maneira de viabilizar o cinema brasileiro economicamente. Eu era cético com relação a isso, mas acho que é possível, pelo menos para uma certa categoria de filmes.

Fonte: Vermelho

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