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por Valéria Nader e Gabriel Brito*
Com muita pompa e ares redentores, o governo federal anunciou na semana passada o pacote da habitação, que visaria construir 1 milhão de casas (cifra já descartada por Lula) e com inédita prioridade à parcela de mais baixa renda da população. Entrevistado pelo Correio da Cidadania, o urbanista e professor da USP João Whitaker destacou esse como exatamente o ponto mais positivo do pacote, uma vez que enfim reconhece que tal segmento da população realmente necessita de maiores subsídios para a casa própria.
No entanto, Whitaker alerta para os problemas que o plano pode encontrar em sua execução, pois até hoje os municípios se eximiram de aplicar o Estatuto da Cidade, criado em 2001 para resolver os problemas fundiários e de ocupação de terras nas áreas urbanas. Desta forma, grande parte dos recursos destinados ao plano pode ficar congelada ou, mais factível, forçará os mais pobres a reincidirem na busca por terrenos em regiões distantes do centro e sem infra-estrutura adequada.
Sem a aplicação do estatuto, ele acredita que se cria a tendência de as construtoras buscarem primeiramente o consumidor de maior renda na venda de casas, o que comprometeria decisivamente o plano. Afirma também ser leviano acreditar que o pacote salvará o país da crise, até porque ainda não se sabe a profundidade que terá e qual a efetividade do plano para a população a ser majoritariamente beneficiada.
Correio da Cidadania: O novo plano habitacional anunciado pelo governo federal vai realmente atender à população de mais baixa renda, considerando a versão final que foi apresentada, onde se passou de 20% para 40% as casas que seriam destinadas às famílias de até 3 salários mínimos de renda?
João Whitaker: A grande qualidade desse plano, e sua inovação maior, é exatamente o fato de demonstrar uma preocupação que nunca houve na história das políticas de habitação nacionais, que é o atendimento à população que ganha até três salários mínimos.
No Brasil, as políticas habitacionais nunca conseguiram beneficiá-la. Pela primeira vez se faz um plano de amplitude do governo federal no sentido de destinar recursos à população de baixa renda e, mais que isso, destina uma parcela dos recursos do tesouro como subsídios – normalmente FGTS em maior parte, mas nesse caso em menor parte.
Isso significa que o governo entendeu que a população de baixa renda precisa de fato de subsídios, senão não há solução, já que a capacidade de pagamento de tal parcela é muito baixa. Daí a dizer que o plano conseguirá atender a toda essa população é outra história, que precisa ser discutida com mais cuidado, por vários fatores que entram na complexa problemática habitacional.
CC: O plano irá contemplar a questão da ocupação da terra, da regularização fundiária e da criação de uma adequada infra-estrutura urbana?
JW: Há alguns aspectos a serem analisados em sua realização. Primeiramente, o mais importante é entendermos que o problema habitacional no Brasil é antes de tudo o acesso à terra urbanizada. A posse da propriedade de terra no Brasil é tão sagrada e enraizada que não é fácil conseguir terra para a população mais pobre, uma vez que a terra urbana valorizada vem desde a época colonial, do café, e sempre foi apropriada pelos grupos de elite, que a partir do século 19 começaram a estabelecer diferenças significativas de valor entre as áreas ricas e pobres.
Portanto, diante disso, o que o movimento da reforma urbana vem fazendo há muito tempo - e que se reverteu em dois artigos muito importantes da Constituição, 182 e 183, que pediam por uma regulamentação ocorrida somente 13 anos depois, em 2001, com o Estatuto da Cidade - é de grande importância.
O Estatuto visa justamente dar ao município instrumento político de gestão para enfrentar as dificuldades em se fazerem estoques de terra urbana para a população de baixa renda. Foram criados instrumentos como o IPTU progressivo, para combater a ociosidade de terrenos centrais; o ZEIS (Zona Especial de Interesse Social), que criava zoneamento exclusivo nas áreas de favela; usucapião urbano, que permite às pessoas regularizarem a terra ocupada após 5 anos sem cobrança, enfim, todos instrumentos úteis que poderiam ser usados nos requisitos de posse desses estoques de terra.
A execução do plano arrisca gerar um problema grave, pois, ao produzir casas sem que os municípios tenham aplicado o Estatuto da Cidade e resolvido o problema da terra, obrigação não cumprida, a tendência é que as casas sejam feitas longe do centro, encarecendo o processo, onerando o poder público, criando um problema de urbanização e gerando bairros pobres na periferia.
CC: As prefeituras é que deverão tocar o plano? Não poderão surgir critérios clientelistas na distribuição de casas? Como evitá-los?
JW:Devemos lembrar que a aplicação do Estatuto da Cidade é uma questão de âmbito municipal, não de prerrogativa federal. Desde 2001, quando o Estatuto foi criado e os municípios deveriam obrigatoriamente implementá-lo, nada foi feito. Devido ao jogo de forças, às disputas políticas no cenário urbano brasileiro, praticamente zero foi implantado, salvo algumas exceções de ZEIS. Mas o IPTU progressivo, que eu saiba, ainda não teve aplicação alguma.
Com 7, 8 anos de Estatuto da Cidade, o governo vem com um pacote habitacional significativo, mas os municípios não cumpriram com suas partes, que era equacionar e gerenciar com a força do poder público a acumulação de estoques de terras em áreas urbanizadas.
A primeira conseqüência grave que pode vir disso é que, ao se destinar um volume tão grande de dinheiro para fazer casas, sem as áreas onde elas possam ser construídas, as tendências são: que se comprem as terras caras para fazer as casas e parte desses recursos vá para os proprietários, em geral grandes corporações que são donas das propriedades e mantêm espaços vazios; ou, mais provável, que se repita um padrão de urbanização típico do Brasil, que é o de os incorporadores que receberem benefícios desse pacote acabarem indo buscar terras longe do centro, sem infra-estrutura urbana, com muita dificuldade de acesso e deslocamento. Dessa forma, vai se encarecer mais uma vez o custo de levar infra-estrutura a esses locais, ao mesmo tempo em que se fará a população mais pobre morar longe, nas periferias, longe de seus locais de trabalho, reproduzindo e aprofundando a segregação espacial urbana no Brasil. Eis o primeiro aspecto.
O segundo aspecto que se pode destacar é que o plano foi feito no descarado intuito - porque o ministro Mantega falou claramente no dia da apresentação - de salvar o país da crise econômica. É baseado na idéia de que, investindo na construção civil, se reaquece a economia e se tira o país da crise. É uma visão antiga e leviana, que vem desde o New Deal do Roosevelt, pois as atividades de construção civil em geral não afetam a balança externa ou a de pagamentos, já que envolvem produtos materiais e mão-de-obra completamente nacionais, assim como a tecnologia. Fazem girar a economia internamente, sem muito vínculo com o externo, o que permitiria o reaquecimento. De início, é uma boa idéia, mas também arriscada, pois se corre o risco de termos uma bolha especulativa, de sobreprodução habitacional sem que haja eventualmente quem compre as moradias. A médio prazo, pode levar a um grave problema de sobra de oferta, principalmente se produzirem mais casas que o esperado nas classes médias e alta, e menos, nas populares, as mais difíceis de gerarem lucros.
O terceiro problema é a tendência de, nessa distribuição, existir uma forte probabilidade – já que o pacote é destinado ao mercado e escamoteia o plano essencialmente feito para resolver a crise – de que o mercado capte com mais afinco, gana, o dinheiro disponibilizado à população com renda acima de três salários mínimos, uma vez que, mesmo sendo um dinheiro mais oneroso, atinge uma população com capacidade de pagamento e os lucros são maiores. Acho que há uma tendência de o mercado e as incorporadoras tentarem primeiro aproveitar esse filão.
Também associado ao segundo problema destacado, ao se fazer um projeto que foi apressado pela crise, o ministério acabou não considerando um plano elaborado durante um ano pelo laboratório de arquitetura da USP e pela Via Pública, o Plano Nacional de Habitação. Fizeram esse plano para a Secretaria Nacional de Habitação, muito mais complexo e aprofundado que o pacote apresentado, e que foi absolutamente ignorado.
Outro problema, que o governo não falou muito, é que, na outra ponta, há um benefício muito grande à classe média alta: aumentou-se o limite do dinheiro autorizado de empréstimo no FGTS para financiar a casa. Antes, o valor do imóvel era limitado a 300 mil; agora, são 500 mil, numa escancarada abertura de porteira para novamente favorecer a classe média. O que quer dizer que o mercado terá bastante dinheiro para promover construções para essa faixa. É mais um risco que pode causar desvios no plano.
CC: Alguns urbanistas têm dito que, pensando-se em uma verdadeira política habitacional, em vez de novas construções, seria mais efetivo buscar formas de ocupação de imóveis já existentes e vazios, na região central das grandes cidades especialmente, regularizar a situação de habitantes da periferia valendo-se das próprias residências que ocupam, além de também criar sistemas de aluguéis subsidiados. O que pensa disso?
JW:Além do que foi dito antes, acho que como quarto e quinto problemas existem dois aspectos na política habitacional brasileira que o plano considera muito pouco. Ele busca, sobretudo, beneficiar as empreiteiras e o setor da construção civil para redinamizá-los.
A respeito disso, há três questões: a primeira é que o emprego da construção civil é composto em mais de 50% na informalidade. E não há nada no plano que vise garantir que o aquecimento do trabalho nesse setor seja feito para aproveitar o momento e colocar essa mão-de-obra na legalidade.
A segunda é que o plano está voltado à construção de novas casas. Mas realmente existem muitas situações habitacionais no Brasil em que o melhor não é construir casa nova, mas sim regularizar a situação fundiária e urbanizar a favela. Favelas que já estão consolidadas há muito tempo, nas quais a melhoria das casas, colocação de asfalto, iluminação, coleta de lixo serviriam para incorporá-las às cidades. Foi uma pena que tal ponto não tenha sido considerado, pois este ano foi aprovado no Congresso uma lei de assistência técnica, que justamente regulamenta a atividade de arquitetura para suporte a moradores dessas regiões, no sentido de fazer melhorias, o que como dito não foi considerado.
E o terceiro aspecto é que há outro problema grave na habitação brasileira: se, por um lado, existe um déficit habitacional de quase 8 milhões de moradias, por outro, temos mais de 6 milhões vazias. Isso se dá pela falta de políticas públicas que alavanquem a dinâmica de oferta e demanda de habitações vazias e pela falta de incentivo a que o mercado adote dinâmica de produtos e serviços destinados à reocupação de edifícios antigos. Tudo isso faz com que se tenha um enorme problema na cidade, pois geralmente são imóveis localizados em áreas centrais, isto é, muito boas para trazer a população de baixa renda, pois já possuem infra-estrutura.
Assim, prossegue um problema insolúvel que o pacote não toca.
CC: O que pensa da entrega do projeto a mutirões e/ou cooperativas, em vez de entregá-lo a empreiteiras?
JW:Ainda não me inteirei sobre se há a impossibilidade de fazer as construções por essas vias também. Se assim determinaram, de fato é mais um aspecto bastante problemático, pois esse pacote poderia ser capilarizado, permitindo-se o acesso ao plano por essas outras formas também.
CC: O plano foi lançado nesse momento de crise, a despeito da real necessidade de habitações em nosso país. Além disso, há eleições presidenciais pela frente. Não acha que dessa forma assumirá caráter oportunista e eleitoreiro, comprometendo sua efetividade?
JW: Acredito que seja um plano feito com a intenção de ajudar a salvar a economia, mas esse viés é inevitável. Pode ser visto dessa forma que você destaca, mas eu o analiso como uma idéia que visa reaquecer a economia. Claro, no caso de dar certo, traz dividendos eleitorais, mas, se formos ver somente por esse lado, não se faz mais política.
*Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.Fonte: Correio da Cidadania
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