Gilberto Kassab se elegeu prefeito de São Paulo há poucos meses com promessas que, apesar do país desmemoriado que somos, ainda estão na lembrança dos paulistanos, como a de investimentos para melhorar o depauperado setor dos transportes públicos. No entanto, apoiando-se na crise que já era iminente à época das eleições, começa a anunciar vários cortes de orçamento e mudanças que comprometem visceralmente a abordagem social do Plano Diretor da cidade. Para tratar de temas relevantes neste início de ano, o Correio da Cidadania entrevistou o deputado federal do PSOL Ivan Valente, candidato nas eleições municipais passadas. Para ele, trata-se da clara demonstração de como as políticas da cidade estão voltadas aos setores que "mandam na cidade", isto é, imobiliário e de grandes corporações responsáveis por obras estruturais. Valente afirma que a atual gestão prioriza o ajuste fiscal, o que implica em que as promessas não serão cumpridas. De acordo com o deputado, está em andamento uma política de enfraquecimento do Estado e da sociedade civil nas grandes decisões da cidade, o que fica escancarado na tentativa de aprovar projeto de lei que modifica o plano diretor da cidade e promove um claro ataque aos setores sociais. A íntegra da entrevista pode ser conferida a seguir: Correio da Cidadania: Como o senhor enxerga o corte de verbas anunciado por Kassab em alguns setores, como o dos transportes públicos, contrariando suas promessas de campanha logo no início do mandato?
Ivan Valente: Acho que a lógica do Kassab, do DEM, é a do ajuste fiscal, que na verdade sempre foi uma prioridade deles: fazer o ajuste fiscal e pagar religiosamente a dívida pública do município, cujos dispêndios equivalem a 13% da arrecadação fiscal. Um exemplo disso ele deu quando declarou ser contra mexer na renegociação da dívida, sendo que há muitos governadores e prefeitos mexendo. A lógica dele é de ajuste fiscal; portanto, não cumprirá as promessas de campanha. Basta ver que ele gastou muito mais em propaganda que em obras de prevenção a enchentes (R$ 19,3 milhões a R$ 17 milhões). CC: Realmente, mal começou o ano e a cidade já sofreu muito com enchentes, tendo gerado focos de revolta em alguns pontos – ao mesmo tempo em que o prefeito diz não haver condições de solucionar rápido tal problema. Acredita que a prefeitura terá sensibilidade de ouvir reclamos específicos da população ou a crise poderá ser desculpa para toda e qualquer falta de investimento? IV: Acho que a crise irá se transformar numa grande desculpa para o não atendimento às prioridades populacionais, pois vão alegar, entre outras coisas, queda na arrecadação de impostos etc. Porém, mexer na dívida pública do município ninguém quer, pois mexe com bancos, com a lei de responsabilidade fiscal e por aí vai. Portanto, eles vão realmente alegar as razões da crise e os maiores prejudicados serão aqueles que necessitam dos serviços públicos essenciais. O atendimento à saúde pública, à educação, o direito ao saneamento básico, à moradia popular de boas condições, tudo isso, certamente, sofrerá um adiamento. O que vemos são mais ações de impacto midiático do que de resolução dos problemas estruturais da cidade, uma vez que para tal é preciso enfrentar setores poderosos. Seria preciso enfrentar o setor imobiliário, os sonegadores de impostos, fazer uma reforma tributária de IPTU progressivo, estabelecer parâmetros de participação popular (do que o Kassab não quer nem ouvir falar), fazer eleição direta para subprefeitura, a fim de que se pudesse cobrar e fiscalizar de perto... Em suma, todas as questões que defendemos para o programa da cidade. CC: O que pensa dos esforços da prefeitura para alterar drasticamente o Plano Diretor da cidade, comprometendo, ao que parece, vastos setores de direitos sociais, como educação, saúde, assistência social, cultura, esportes, lazer etc., e sem uma discussão mínima com a sociedade? IV: Esse é um problema muito grave. Acho que a prefeitura, como disse há pouco, já na gestão Serra, e agora também, trata as questões da estrutura urbana segundo a lógica da especulação imobiliária, dos interesses de grandes corporações, das operações urbanas e da desregulamentação da cidade, para conceder privilégios a pequenos grupos da sociedade. O caso da Cracolândia é um exemplo. Eles querem fazer uma limpeza racial, limpar os pobres da cidade e facilitar a valorização dos imóveis do centro com a criação de centros culturais. No entanto, a população claramente não tem vez nem voz nesse processo. Certamente faltam recursos para a saúde pública, educação, mas essas operações urbanas e mudanças no Plano Diretor do município ficam sob pressão exatamente do setor mais privilegiado da sociedade. CC: Reforçando essa lógica orçamentário-fiscalista na questão urbana, a prefeitura enviou, por exemplo, à Câmara projeto de lei que permite que a municipalidade conceda para empresas privadas o poder de realizar intervenções urbanas, inclusive efetuando desapropriações em nome do poder público. O que pensa de um projeto desses? IV: É de muita gravidade, pois se trata da terceirização do poder de decidir para a iniciativa privada, o que considero gravíssimo. É a lógica do PFL-DEM e PSDB, de enfraquecer o papel do Estado, e particularmente da sociedade civil, em nome da palavra modernização. Porém, o que estão fazendo de verdade é trabalhar contra o interesse público. Sem dúvida, os grandes beneficiários dessas operações são as grandes corporações – imobiliárias, megainvestimentos transnacionais e assim por diante. CC: Ao mesmo tempo, têm sido realizados controvertidos despejos nas periferias da cidade, inclusive muitos deles com a justificativa de proteção ambiental. O que pensa destes despejos? Especialmente nesse momento de crise econômica profunda, não são uma grande temeridade? IV: Já se tem a história do Edifício São Vito, a respeito de não cumprimento de promessas com os moradores. Vemos, inclusive, o sanfonamento de edifícios públicos, como o da Receita, na Avenida Tiradentes, para evitar que movimentos sociais de moradias entrem nessas áreas. Rigorosamente, não temos um planejamento estratégico urbano. Existem 50 mil unidades vazias no centro da cidade e a população é empurrada para a periferia. Ou seja, eles empurram as populações de áreas que já possuem infra-estrutura e serviços públicos instalados. A tal revitalização do centro servirá para expulsar a população pobre da região, deslocando-a para periferias sem a menor estrutura urbana.
Isso tudo é de imensa racionalidade, mas mostra que o espaço urbano está dominado por aqueles que mandam na cidade. E os governantes seguidamente têm servido a essas grandes corporações, que estão exercendo interferência no Poder Executivo. CC: Em 2009, começaram a ser mais sentidos os efeitos da crise econômica. O que pensa que está por vir em nossa metrópole nesse período de duração ainda incerta e com todo o mandato do prefeito pela frente? IV: Para mim, essa será uma crise de profundidade e longa duração. Vejo um cenário de duração longa. Trata-se de uma crise mundial, o Brasil é um país dependente, que se reprimarizou, que não construiu alternativas no mercado interno de massas, é ultradependente de crédito e, portanto, seremos duramente atingidos pela crise. Isso significa que há um impacto sobre a vida econômica, política e social. Entendo que aquela fase de bonança e conformismo que margearam as eleições de 2008 é um cenário que desapareceu. Nas próximas eleições, a expectativa da população se deparará com outro cenário, bastante reivindicativo, pressionado pela crise, pela piora dos serviços públicos e assim por diante. No entanto, é difícil estabelecer um parâmetro de duração dessa crise.
Acho que o povo de São Paulo deve ficar bastante atento às promessas que foram feitas pelo prefeito eleito e fazer um forte movimento de cobrança e exigências, porque não basta a combinação mídia-marketing para governar a cidade. É preciso projetos estruturais e vontade política para combater privilégios e construir um programa que garanta justiça social, distribuição de renda e boa qualidade de vida a toda a população, e não somente a uma parcela dela. Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania. Fonte: Correio da Cidadania :: |
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