quinta-feira, 2 de abril de 2009

Um papa no bunker

::



Um papa no bunker Apegado a suas certezas, Bento XVI aprofunda divisões dentro de uma Igreja que se esvazia e é cada vez menos respeitado pelos católicos.

Por Antonio Luiz M.C.Costa

Joseph Ratzinger, o papa Bento XVI, visitou a África de 17 a 23 de março como quem faz questão de ressaltar sua indiferença para com a realidade social e seu descompasso com o mundo laico. Isso depois de forçado ao mea-culpa duas vezes, em rápida sucessão – uma ao admitir estar mal informado ao reabilitar bispos lefebvrianos afins ao negacionismo neonazista no próprio dia internacional em memória das vítimas do Holocausto, outra ao anular a nomeação de um bispo austríaco rejeitado por pares e vigários.

No único continente onde o catolicismo cresce de maneira significativa, Camarões e Angola são países com grande proporção de católicos. Perdido o contato com os costumes e relações sociais nas quais se baseavam seus cultos tradicionais, as populações que o êxodo rural arrancou de suas raízes tribais e jogou nas favelas procuram comunidades religiosas mais adaptadas a uma cultura urbana parcialmente ocidentalizada. A Igreja Católica continua a se beneficiar dessa desestruturação, embora seja crescente a concorrência do Islã, das igrejas evangélicas e de novos cultos sincréticos africanos.

O papa pareceu, porém, decidido a mostrar aos convertidos reais ou potenciais que o catolicismo não atenderá às necessidades sociais e espirituais da África moderna. Ainda no avião, condenou os preservativos em uma região que registra mais de 70% dos óbitos por Aids no mundo, onde 20 milhões já morreram e outra vida é perdida para a doença a cada 15 segundos.

Caso se limitasse a objeções teológicas, pouco haveria a dizer. Mas Ratzinger contrariou a ciência e o bom senso, insistindo em que a distribuição de preservativos agrava a epidemia. Ministros europeus, inclusive de países católicos, tomaram a iniciativa incomum de censurar o papa. O chanceler francês o acusou de “pôr em perigo a política de saúde pública em relação à proteção da vida humana”. A ministra da Saúde belga chamou sua posição de “perigosamente doutrinária”. Os ministros do Desenvolvimento e da Saúde alemães condenaram a afirmação do compatriota como “irresponsável”.

Não foi a única mostra de insensibilidade, desinformação ou ambas as coisas por parte do papa. Enquanto ele se preparava para falar de solidariedade e condenar a ganância, a violência e a corrupção, a Igreja fechava os olhos aos preparativos do corrupto e violento governo camaronês para a visita. Incluíram demolir com escavadeiras todas as casas e lojinhas que prejudicassem esteticamente o caminho entre o aeroporto e o centro da capital, Yaundé, sem perguntar como seus donos iriam trabalhar, dormir e comer nos dias seguintes.

Ali, o papa proclamou que “a África está em perigo devido a imorais sem escrúpulos que tentam impor o reino do dinheiro desprezando os mais miseráveis”, antes de viajar para Angola. O governo desse país empobrecido e devastado por décadas de guerra civil também fez gastos milionários para receber o pontífice. Além disso, em Luanda, a Igreja organizou dois jantares de gala a 500 dólares por cabeça, arrecadando cerca de 270 mil dólares para receber “mais dignamente” a passagem do pontífice.

Os responsáveis pelos caros e cuidadosos preparativos, que incluíram a mobilização de 12 mil policiais para cuidar da segurança do papa e de sua comitiva, não deram igual peso à segurança dos humildes. Na confusa abertura dos portões do Estádio Municipal dos Coqueiros, em Luanda, onde o papa encontraria a juventude angolana, um tumulto matou duas moças por esmagamento e mandou 89 jovens a hospitais.

Alheio ao drama, o papa assistiu à coreografia dos jovens que conseguiram entrar e os convidou a não ter medo de ousar “decisões irreversíveis” do casamento da ordenação sacerdotal. Só no dia seguinte, quando o desastre – ignorado pela cobertura oficial – foi divulgado na imprensa internacional, a Igreja e o governo angolano enviaram representantes ao hospital para visitar os feridos e levar seus pêsames à família de uma das mortas, uma catequista de 22 anos. A outra, não identificada, foi levada ao necrotério como indigente.

Trata-se de um papa muito mal informado? Em 12 de março, o papa queixou-se por carta ao episcopado da “hostilidade” com que foi recebida sua anulação da excomunhão do bispo Richard Williamson, após este negar o Holocausto, mas admitiu a má condução do caso. “Foi-me dito que consultar a informação disponível na internet teria possibilitado perceber o problema no início. Aprendi que a Santa Sé terá de prestar mais atenção a essa fonte de notícias.”

Para um não-católico, acreditar que nenhum dos secretários e assessores de Ratzinger tinha acesso a essas informações ao preparar uma decisão tão importante em relação a quatro bispos bem conhecidos é quase tão difícil quanto crer na infalibilidade papal ou na Assunção da Virgem. Principalmente tratando-se de um pontífice que liderou a Congregação para a Doutrina da Fé (sucessora da Inquisição e do Santo Ofício) e perseguiu as mais obscuras manifestações de inconformismo teológico nos cinco continentes.

Leonardo Boff, por exemplo, foi castigado com o confinamento definitivo em um convento – ao qual não se submeteu, preferindo romper com o Vaticano –, após uma palestra na Eco 92 (anterior ao Google, vale lembrar), na qual responsabilizou a Igreja pela morte de milhares de índios na América Latina.

A desculpa do desconhecimento faz ainda menos sentido no caso de Gerhard Maria Wagner, apontado bispo auxiliar de Linz, Áustria, em 31 de janeiro, poucos dias depois da reconciliação com os herdeiros de Marcel Lefebvre. Uma cidade não muito distante de Munique, onde Ratzinger foi arcebispo.

Em 2001, Wagner, pároco de uma cidadezinha, ganhava notoriedade internacional ao denunciar Harry Potter como satânico. Chamou a si os holofotes mais uma vez ao julgar o tsunami do Natal de 2004 uma punição aos turistas que gozavam a vida na Tailândia. Atribuiu a tragédia do Katrina, em 2005, à ira divina contra os bordéis e clubes noturnos de New Orleans.

Mesmo com apoio do papa, Wagner não pôde ser mantido no cargo. Dos 35 cônegos e vigários da diocese, 31 recusaram-se a apoiá-lo, enquanto fiéis da diocese abandonavam formalmente a Igreja às centenas. Em 15 de fevereiro, o bispo recém-nomeado foi obrigado a pedir a dispensa ao Vaticano. No dia seguinte, a Conferência Episcopal Austríaca, em convocação urgente, solicitou ao pontífice que o dispensasse e no futuro desse “maior atenção” às nomeações e não deixasse de consultar o clero local.

Em 2 de março, duas semanas após esse gesto sem precedentes, a dispensa foi formalizada, sem mais explicações. Por outro lado, o vigário Josef Friedl, um dos líderes da rebelião, foi afastado do cargo de porta-voz da diocese depois de admitir “por sua própria iniciativa” a convivência com uma parceira. Aparentemente, sem necessidade de consulta ao Google.

Nos dias seguintes, uma pesquisa entre católicos austríacos mostrou que apenas 32% tinham uma boa opinião sobre o papa, ante 50% em 2007, e só 17% julgavam importantes suas declarações sobre problemas atuais, ante 29% há dois anos. Os que têm opiniões negativas cresceram de 12% para 23%.

Vem-se consolidando a imagem de um papa fechado no bunker que se apega rigidamente às suas certezas e se recusa a se informar, pedir opiniões ou ouvir críticas. Em artigo de 22 de março, o Observer afirmou que, após o caso Williamson, a própria Cúria Romana vazou que Ratzinger toma suas decisões de maneira isolada e raramente ouve conselhos. Há boas razões para aposentar líderes antes dos 70, nota a revista: “O vigor físico desaparece e os poderes mentais, mesmo se intatos, podem se tornar mais estreitamente focados, menos tolerantes à contradição, menos nuançados”.

É visão de um periódico laico de um país protestante, mas, durante a crise pela nomeação de Wagner em Linz, o arcebispo da vizinha Salzburgo, Alois Kothgasser, disse ver a Igreja diante de duas alternativas: reduzir-se a uma “seita com poucos membros alienados” ou “permanecer na Igreja de Jesus, que oferece espaço à pluralidade”. Pediu “confiança nas igrejas locais”, para evitar uma perda de confiança na “autoridade central da igreja universal”, e esclareceu que, em sua opinião, a recém-reabilitada Fraternidade de São Pio X não se “reintegra à Igreja Católica Romana”, pois rejeita o Concílio Vaticano II.

Trocando em miúdos, o arcebispo advertiu o papa para o risco de rebelião de muitas dioceses e de desintegração geral e massiva da Igreja, caso insista em dirigi-la como ditador totalitário, principalmente se insistir em anular as reformas e orientações do Vaticano II, como parece pretender fazer aos poucos.

É surpreendente que as coisas tenham chegado a este ponto, pois o atual papa participou ativamente do Concílio de 1962-1965 como perito em teologia, nomeado por João XXIII. Admirador do reformista Karl Rahne, não teve problemas em cooperar e fazer amizade com o radicalmente progressista Hans Küng, que apoiou a nomeação de Ratzinger como professor de teologia dogmática em Tübingen, em 1966. Em 1968, Ratzinger escreveu um livro, Introdução à Cristandade, no qual afirmava que o papa tinha o dever de ouvir vozes dissidentes dentro da Igreja antes de tomar decisões.

O biógrafo John Allen Jr. e jornalistas como David van Biema (da revista Time), e também Richard Bernstein e Daniel Wakin (do New York Times), afirmam que a mudança de Ratzinger deu-se após a revolta estudantil de 1968, pouco depois da qual rompeu com Küng e os progressistas e mudou de faculdade. Dietmar Mieth, também professor de teologia, recorda-se de quando um grupo de 25 estudantes invadiu uma reunião do departamento. Os professores dispuseram-se a conversar, com exceção de um só: Ratzinger pegou suas coisas e foi-se embora, recusando o debate.

Menos importante que o da França, o movimento de 68 na Alemanha não foi violento nem ameaçou seriamente a ordem, mas o caos nas ruas e na universidade e as demandas por democratização da Igreja pelos alunos de Küng parecem ter aterrorizado Ratzinger o suficiente para jogá-lo nos braços do conservadorismo político e teológico. Embora se mostrasse, até então, aberto ao progressismo em debates educados e elevados, sua personalidade fundamentalmente autoritária e dogmática ressentiu-se da provocação de estudantes radicais, agressivos e ignorantes em teologia. Ratzinger passou a defender a centralização incondicional da Igreja, rejeitando qualquer sugestão de que mudanças na Igreja pudessem ser inspiradas pelas bases (ou mesmo por conferências nacionais de bispos), menos ainda pela sociedade civil.

Mas, ainda que isso explique as posições pessoais de Ratzinger, não bastaria para entender a mudança no Vaticano. Por que a Igreja o escolheu? Em agosto de 1978, embora o conservador Giuseppe Siri, nomeado cardeal por Pio XII e crítico de João XXIII e Paulo VI, aparecesse como favorito à sucessão de Paulo VI e liderasse a primeira votação, o conclave acabou por eleger Albino Luciani. Com o título de João Paulo I, mostrou disposição de continuar e aprofundar as reformas dos dois antecessores, mas pouco mais de um mês depois estava morto e a mesma lista de cardeais escolheu Karol Wojtyla, João Paulo II, supostamente como “solução de compromisso”.

Notório pela resistência ao comunismo, o primeiro papa não italiano desde 1523 aposentou progressistas, nomeou bispos e cardeais conservadores e escolheu Ratzinger para a Doutrina da Fé. A eleição deste como seu sucessor foi lógica, mas acirrou as tensões. Wojtyla era um político carismático, treinado no jogo de cintura por décadas de convivência tensa com um regime político hostil. Ratzinger é um ideólogo dogmático, inábil em lidar com a contradição.

Parece claro que a rearticulação conservadora iniciou-se no pontificado de Paulo VI – antes mesmo de Margaret Thatcher e Ronald Reagan –, firmou-se quando a morte de Luciani desorganizou a resistência dos progressistas e fortaleceu-se nas décadas seguintes, mas com Ratzinger pode ter abocanhado mais do que pode engolir e posto em risco o que resta do poder do Vaticano.

Não é a primeira vez que o Vaticano se fecha em um bunker, vira as costas ao mundo e opta pelo radicalismo conservador, aferrando-se ainda mais rigidamente às suas tradições, endurecendo sua doutrina, impondo novos dogmas e rotulando como heresias posições antes abertamente debatidas.

Algo semelhante aconteceu no século XVI, quando o desafio do protestantismo foi respondido com a Contra-Reforma, o Concílio de Trento e a dogmatização do culto dos santos e das relíquias, das indulgências, da indissolubilidade e do caráter sacramental do casamento e do ritual da missa, além da criação do Index de livros proibidos.

Também no século XIX, depois que a Revolução Francesa e a unificação da Itália destruíram o poder temporal da Igreja e minaram sua influência espiritual sobre as elites políticas e intelectuais nos países que haviam permanecido refratários ao protestantismo: o Concílio Vaticano I respondeu com a infalibilidade papal, a excomunhão automática dos responsáveis por abortos e a condenação generalizada das tendências liberais, socialistas e modernistas.

O Concílio Vaticano II foi, pelo contrário, uma flexibilização, uma abertura da hierarquia ao diálogo com os fiéis e com outras religiões. Foi uma mostra de autoconfiança, talvez ajudada pela revalorização política da fé no Ocidente e pelo crescimento dos partidos democrata-cristãos no pós-guerra.
A resistência a suas inovações, mesmo quando entendida pela imprensa como um apego estético ao latim e à missa tradicional tridentina, é de fato contestação ideológica a um papa e um Concílio considerados heréticos por aceitarem o ecumenismo, a liberdade religiosa, a atualização da interpretação dos dogmas tradicionais, a Teoria da Evolução, a filosofia não-escolástica e a redução do abismo entre sacerdotes e leigos.

O retorno à mentalidade de bunker acentuou-se com a acelerada laicização da sociedade ocidental moderna depois de 1968. Na Europa, as igrejas se esvaziam. Nos EUA, o mais religioso dos países centrais, os cristãos caíram de 86% em 1990 para 75% em 2009, conforme a Pesquisa de Identificação Religiosa do Trinity College.

A diferença foi perdida menos para o ateísmo ou outras religiões do que para um individualismo religioso que recusa qualquer autoridade espiritual e também se reflete em mudanças de atitude em relação ao divórcio, à anticoncepção e ao aborto. Trata-se de um movimento social que políticos como José Luis Zapatero, odiado pela Igreja a ponto de esta ter apoiado explicitamente a oposição conservadora, não fazem mais que exprimir. Bem como Barack Obama, acusado por católicos conservadores de ser um “Zapatero global”.

Nos países periféricos, fiéis foram perdidos tanto para igrejas concorrentes quanto para valores laicos e individualistas como os promovidos pelas novelas da Globo, cuja difusão, conforme mostrou um estudo recente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, está fortemente correlacionada à queda das taxas de natalidade e ao aumento das taxas de divórcio.

A resistência ao Concílio soa, porém, inconsistente, pois sustentar que João XXIII e seus sucessores foram e são hereges (como afirmam os lefebvrianos da Sociedade São Pio X) implica relativizar o dogma da infalibilidade papal e desautorizar a tão valorizada hierarquia. Os chamados sedevacantistas (que incluem a Igreja da Sagrada Família de Mel Gibson e a Sociedade São Pio V) resolveram a contradição declarando inválida a eleição de João XXIII – alguns chegam a afirmar que Giuseppe Siri foi eleito em 1958, mas ilegalmente forçado a ceder o posto ao reformista. Outros elegeram obscuros antipapas.

O próprio Ratzinger não pode anular explicitamente as decisões de seus antecessores sem pôr em questão a construção da dogmática católica. Pode apenas tentar relegar ao esquecimento suas consequências, promovendo as práticas conservadoras e fazendo concessões, como a de reinstituir (embora em termos menos ofensivos) as orações pela “conversão dos judeus” da Sexta-Feira Santa abolidas pelo Vaticano II. Sem apaziguar conservadores ou progressistas, começa a perder o apoio dos moderados e corre o risco de provocar uma cisão mais séria que a do punhado de lefebvrianos.

Fonte: Carta Capital

Leia também:
A Igreja, mais um lobby
Jornalista do L'Espresso analisa os rumos de uma Igreja Católica que deixa de ser um fator de consenso e coesão para tornar-se uma minoria radical que reivindica espaço e cada vez mais se aproxima das direitas políticas


Share/Save/Bookmark

Nenhum comentário: