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por Thiago Domenici
Quase metade dos profissionais do estado de São Paulo tem contrato “temporário”, alguns há décadas. Em situação precária e com direitos reduzidos, vivem como nômades, sem saber se estarão na mesma escola no ano seguinte
“Cada vez que saía de casa, eu pensava: não é possível ter de ir para esse lugar de novo.” Maria Cristina, 40 anos, única que permitiu revelar seu nome e seu rosto nesta reportagem, refere-se à escola estadual em que deu aula na periferia de Campinas, em 2007: “Tive vontade de desistir de tudo. Desilusão, violência, falta de futuro total”, diz a professora, que faz parte de uma leva de milhares de educadores temporários, um problema educacional e trabalhista que insiste em ser crônico.
O estado de São Paulo tem mais de 5 milhões de alunos, 5.350 escolas e 230 mil professores. Destes, 100 mil têm contratos temporários para exercer, durante o ano letivo, a mesma função que os demais 130 mil concursados. Os chamados Admitidos em Caráter Temporário (ACTs), além dos baixos salários, não têm direito à previdência estadual (são transferidos para o INSS) e aos benefícios dos celetistas, como o FGTS. O estado isenta-se ainda de arcar com o direito ao plano de carreira, às férias remuneradas, incorporações e gratificações de tempo de serviço e à evolução funcional. Todo início de ano os ACTs ficam com as “sobras” das escolhas de escolas e horários para trabalhar; os concursados vêm primeiro. Sem vínculos permanentes, perambulam pela rede, tendo de conciliar inúmeras turmas em diferentes unidades. Esses nômades da educação, ao final de cada ano, recomeçam do zero.
Pedro, de 47 anos, é temporário há mais de 20: “Ninguém está nem aí com a gente, o dia da atribuição de aula é de tortura, de humilhação, parece que você está pedindo uma ‘aulinha pelo amor de Deus’”. Além de professor, Pedro trabalha numa empresa para incrementar o orçamento: “Já cheguei a dar aula em cinco escolas. É uma confusão, porque você não vive a realidade delas, não tem como acompanhar os alunos”.
Os ACTs são admitidos com base na Lei Estadual nº 500/74 e deveriam ser chamados apenas em caráter emergencial: “O que deveria ser emergencial tem se configurado uma política permanente. Esse profissional é mais vulnerável a pressões e cobranças, o que atende mais aos interesses do sistema do que aos do próprio professor”, explica Maria Isabel de Almeida, doutora em didática e professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação da Faculdade de Educação da USP. A socióloga Aparecida Neri Souza, da Faculdade de Educação da Unicamp, lembra que na década de 70 a terminologia para os atuais ACTs era “professor precário”: “Mudaram o nome, mas a precariedade ficou”.
Gilda, temporária como Pedro há mais de 20 anos no interior de São Paulo, lamenta: “Por que há tantos anos essa situação continua? Muita coisa me foi negada. A gente constrói uma vida à margem”. Maria Cristina concorda: “Estão preocupados em demonstrar uma eficiência na questão dos conteúdos, mas não com as relações e os profissionais dentro da escola”.
Maria Isabel de Almeida, da USP, diz que o concurso público é o único caminho. “O sujeito que não está enraizado profissionalmente acaba tendo mais dificuldade de se dedicar, de investir, de aprender e aprimorar a própria atuação”, constata a especialista. O último processo de seleção, em 2007, abriu 16 mil vagas nas áreas de Educação Artística, Filosofia, Física, Geografia e Matemática. Segundo a Secretaria da Educação, os cargos de professor efetivo são preenchidos por temporários porque muitos desses efetivos estão em licença ou em outros postos, como coordenadores pedagógicos.
Descartáveis
A polêmica situação dos ACTs voltou à baila em 2008. No acordo que encerrou a greve de 20 dias feita no meio do ano pelos professores, o governo comprometeu-se a abrir concurso e a criar 75 mil cargos. Meses depois a secretária da Educação, Maria Helena Guimarães de Castro, confirmou perante o Tribunal Regional do Trabalho a abertura do concurso e acordou com o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) a realização de uma “prova de habilitação”. A prova ocorreu em 17 de dezembro.
As 75 mil vagas prometidas para 2009 continuam à espera de seus futuros donos, uma vez que nenhum projeto de lei referente ao tema foi enviado à Assembleia Legislativa até o fechamento desta edição. A secretaria informou que o projeto ainda está em discussão. “Quando se tem uma situação de emergência e a vontade política inexiste, a coisa vai sendo empurrada e o quadro se mantém”, diz Maria Isabel. “Em vez de fazer uma provinha para recontratar os ACTs em situação ilegal, o estado precisa fazer concurso e dar efetivação”, cobra o dirigente da Apeoesp, Carlos Ramiro.
Instrumento de demissão
A “provinha” à qual Ramiro se refere foi o motivo de discórdia que minguou o acordo entre Apeoesp e governo. Foi organizada supostamente com o objetivo de medir o conhecimento dos docentes sobre a proposta curricular da secretaria e como um dos mecanismos de classificação dos 100 mil professores temporários para distribuição de classes em 2009. Mas o resultado, com 1.500 avaliados “zerando” as 25 questões, levou a Apeoesp à Justiça, que rapidamente concedeu liminar suspendendo-o.
O sindicato defende como critério de seleção a titulação e a experiência do profissional, e não só a bibliografia proposta. De outro lado, a secretaria diz que, se a prova valesse, cerca de 50 mil dos atuais professores temporários seriam substituídos por docentes que tiveram nota melhor no exame. No total, entre ACTs que já atuam na rede, 214 mil se inscreveram para a seleção.
Aparecida Neri Souza, da Unicamp, explica o diz-que-diz: “A mesma prova foi dirigida a todos, de fora e dentro da rede. Qual o problema? O processo é classificatório para um grupo heterogêneo, com jovens que acabaram de sair da universidade, ou seja, muitos temporários presentes na rede perderiam imediatamente o trabalho, sem indenização alguma, sem seguro-desemprego, sem os direitos que aqueles no setor público têm, ou seja, a prova seria um instrumento de demissão”.
Por conta da queda-de-braço, o ano letivo começou com cinco dias de atraso, em 16 de fevereiro. E continuam os embaraços da provinha da discórdia. A Justiça cobra esclarecimentos da Secretaria da Educação e o Ministério Público Estadual abriu procedimento investigatório de inquérito civil direcionado ao órgão, em fevereiro. Enquanto isso, segue a saga dos educadores temporários por melhores condições.
Globo e Abril agradecem
Desde 2007, contratos da Fundação Roberto Marinho (ligada à Editora Globo) e da Fundação Victor Civita (editoras Abril, Scipione e Ática) com a Secretaria da Educação de São Paulo têm crescido vultosamente. Os dados são do Sistema de Acompanhamento da Execução Orçamentária de São Paulo, da Assembleia Legislativa. No caso do grupo Abril, houve um salto de R$ 526 mil, em 2007, para R$ 11,5 milhões, em 2008. Até março de 2009 os valores estavam próximos dos R$ 2,5 milhões. Os principais produtos adquiridos pela Fundação para o Desenvolvimento da Educação, subordinada à secretaria, foram as revistas Nova Escola e Recreio e o Guia do Estudante – Atualidades Vestibular.
A Fundação Roberto Marinho recebeu R$ 60 mil por publicações da Editora Globo em 2007 e mais de R$ 30 milhões em 2008, principalmente para a implementação do projeto Telecurso Tec do Centro Paula Souza, autarquia que administra as escolas técnicas (Etecs) e faculdades de tecnologia estaduais.
A maioria dos contratos foi fechada sem concorrência, com base em item da Lei de Licitações que o permite, quando há “inviabilidade de competição”, sobretudo quando se trata de “material de edição, distribuição e comercialização exclusiva”. Essa comprovação de exclusividade, diz a lei, “deve ser feita através de atestado fornecido pelo órgão de registro do comércio do local em que se realizaria a licitação ou a obra ou o serviço”.
No caso de muitas publicações brasileiras, quem dá esse atestado de exclusividade é a Associação Nacional dos Editores de Revistas (Aner), segundo informou a própria Secretaria da Educação, em documento enviado à Assembleia Legislativa, em resposta ao requerimento de informação do deputado Roberto Felício (PT) sobre a aquisição de 415 mil exemplares do Guia do Estudante por R$ 2,4 milhões. A diretoria da Aner, por sua vez, é composta por representantes das próprias editoras.
A Secretaria da Educação também adquiriu em 2008, sem licitação, conforme se vê no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 25 de outubro, 220 mil assinaturas da Nova Escola por R$ 3,7 milhões. Alega tratar-se de iniciativa para atualização dos professores, ao preço de R$ 1,68 por exemplar, “menos da metade que os R$ 3,40 cobrados em banca”, com base na questão da exclusividade, por ser a única revista do Brasil a oferecer conteúdo pedagógico para professores. Além disso, afirma ter feito pesquisa, em outubro de 2008, na qual teriam revelado preferência pela Nova Escola cerca de 70% dos educadores.
O redator-chefe da revista Carta na Escola (da Editora Confiança, que também publica a semanal Carta Capital), Ricardo Prado, contesta: “A Carta na Escola é uma publicação voltada para os professores do ensino médio e tem uma tiragem de 80 mil exemplares. Também gostaríamos de poder falar com o professor, chegar a sua casa, e não considero a Nova Escola a única a oferecer conteúdo pedagógico”.
A professora de Português Regina, 47 anos, conta que recebeu a publicação em casa no fim do ano passado: “Quando vi, achei que era um brinde qualquer, só depois descobri que tinha a ver com a Secretaria da Educação. Não fui avisada nem consultada se queria”, reclama. “Passar nossos dados pessoais para uma empresa privada sem autorização prévia é algo que não poderia acontecer.” A secretaria confirmou o fornecimento de endereços particulares dos professores à Fundação Victor Civita.
Prefeitura
Caso semelhante aconteceu na Secretaria Municipal de Educação da capital paulista, que adquiriu 51.900 assinaturas da mesma revista em fevereiro de 2008 por R$ 1.167.750,00. Acionado, o Ministério Público Estadual apurou e arquivou o caso em outubro de 2008. A promotora da Cidadania Andréa Chiaratti ratificou a justificativa de inexigibilidade de licitação. “Existia também o fato específico de que um dos exemplares tinha no seu conteúdo uma matéria com o secretário municipal que poderia dar viés de autopromoção. Ocorre que esse exemplar específico fazia parte de uma aquisição maior, que era o contexto inteiro. Foi uma aquisição de vários exemplares de diferentes edições. Não começou com o exemplar no qual a revista fez a matéria.” A matéria referida é da edição de janeiro/fevereiro de 2008 e tem, além do secretário municipal de Educação, Alexandre Schneider, sua colega estadual, Maria Helena Guimarães de Castro.
Fim da mordaça
A professora Maria Cristina foi a única que autorizou a divulgação de seu nome correto e de sua imagem – os demais docentes ouvidos pediram para não se expor. “A gente tem um pouco de receio de dar entrevista porque a secretaria não permite. Falar bem pode, falar mal, não. Então, ninguém fala”, denuncia a professora Ligia, aqui usando pseudônimo. Essa delicada situação é resquício da “Lei da Mordaça”, de 1968, que proíbe o funcionalismo público de “referir-se às autoridades constituídas e aos atos da administração”.
Em dezembro de 2008 o fim da “mordaça” foi aprovado na Assembleia Legislativa por unanimidade. O governador José Serra vetou, alegando tratar-se de tema de competência do Executivo, e devolveu-a para ser novamente apreciada pelos parlamentares, agora com a assinatura do governador, e não mais do deputado oposicionista Roberto Felício (PT). “O governador, de reconhecido passado democrático, acabou amesquinhando a questão. Resta aos deputados estaduais reafirmar seu voto pelo fim da mordaça”, diz o deputado.
Fonte: Revista do Brasil
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