domingo, 5 de abril de 2009

Processo judicial retira da internet as melhores páginas sobre Heidegger e Derrida

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por Idelber Avelar

A notícia e quase todos os links me chegam via Catatau. A bolorenta, naftalínica e anacrônica lei de copyright continua fazendo seus estragos pelo mundo afora. Horacio Potel, professor de filosofia da Universidade Nacional de Lanús, na Argentina, é o responsável por dois sites dedicados às obras de Heidegger e Derrida, nos quais ele havia compilado, desde 1999, com financiamento próprio e sem fins lucrativos, uma impressionante coleção de traduções castelhanas dos dois filósofos. Elas não eram simplesmente duas páginas dedicadas a Heidegger e Derrida. Eram, de longe, os melhores recursos existentes sobre os dois pensadores em toda a internet, em qualquer língua.

Eis que a editora francesa Minuit aciona a embaixada francesa em Buenos Aires e esta aciona a Câmara Argentina do Livro, de triste memória. O professor Potel recebe a singela visita da polícia, que lhe comunica que ele é vítima de um processo judicial por violação da lei de copyright. Avisam-lhe que ele pode receber de um mês a seis anos de cadeia por tornar disponíveis esses textos, ainda protegidos pela lei de direitos autorais, já que tanto Heidegger como Derrida morreram há menos de setenta anos. Avisam-lhe também que sua correspondência e sua casa poderão ser violadas ao longo do processo.

É difícil sobredimensionar o que representaram essas páginas para os estudantes de filosofia sem grana em toda a América Latina. As edições espanholas têm preços proibitivos nos países hispanoamericanos. Não é raro que uma brochura de 80 páginas chegue a Buenos Aires custando o equivalente a 60 dólares. O site feito pelo Professor Potel com as obras de Nietzsche – livre da querela judicial, já que o bigodudo morreu em 1900 – recebeu mais de quatro milhões de visitas. Eu mesmo conheço vários alunos latinoamericanos que se iniciaram nestes autores através do trabalho voluntário do Professor Potel, e depois, inclusive, passaram a comprar os livros. heidegger.jpg

Sei que do ponto de vista jurídico não há o que discutir. Os sites configuravam, sim, violação à lei de direitos autorais. O irônico na história é que toda a obra tardia de Derrida está justamente dedicada a desenredar a teia que enlaça os conceitos de sujeito e de autoria com suas ramificações legais nas leis de copyright e de propriedade intelectual. Não tenho a menor dúvida de que Derrida teria visto com carinho o trabalho de Potel. Entre 1999 e 2004, Derrida com certeza teve amplas oportunidades de ouvir falar desse site, e não moveu uma palha para desativá-lo. Este mp3 traz uma entrevista com Horacio Potel, em que o educador relata toda a história.

O Catatau nos prestou o inestimável serviço de colocar links para cada um dos textos na Wayback Machine. Aqui estão as obras de Heidegger e aqui está a impressionante compilação de Derrida. Como sói acontecer com as demandas jurídicas envolvendo a internet, os querelantes remam contra a maré do nosso tempo. Seguindo os links do Catatau é possível copiar, guardar e reproduzir esses textos, deixando que a infinitamente livre circulação de informações pela rede mundial de computadores faça o trabalho de corroer uma lei injusta e anacrônica (enquanto a Wayback Machine não é censurada também). O Biscoito deixa sua solidariedade – e o profundo agradecimento de educador – a Horacio Potel, que está passando por um verdadeiro inferno neste momento.

PS: Alguns dos links acima afirmam que a Editora Minuit só publicou uma obra de Derrida. A informação está incorreta. A Minuit publicou sete obras de Derrida. O que não muda nada na história, claro.

Fonte: O Biscoito Fino e a Massa

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