::
Por ocasião do feroz conflito e da investida midiática contra a política do governo argentino para o "campo", o governo de Cristina Fernández de Kirchner decidiu finalmente apresentar um anteprojeto de lei para substituir a atual Lei de Radiodifusão do país. A lei vigente foi redigida nos tempos da última ditadura militar e várias vezes emendada pelos diferentes governos constitucionais que se seguiram, sem alterar de modo substancial a matriz antidemocrática do sistema midiático.
por Maria Eva Blotta (*)
Desde que iniciou o conflito que as entidades ruralistas mantém, há mais de um ano, com o governo argentino, a cada dia torna-se evidente outro conflito, que atravessa a sociedade de maneira estrutural: o sistema de meios de comunicação que temos e o papel que eles desempenham na construção das alternativas sociais, culturais, econômicas e políticas de nossa vida coletiva. Poderíamos remontar o surgimento público deste conflito a outros momentos de nossa história recente, mas há um fato importante que marcou essa disputa que os grandes meios abraçaram e trabalharam em cadeia como nunca.
Por ocasião do feroz conflito e da investida midiática contra a política do governo pra o campo, com as implicações “desconstituintes” que muitos intelectuais destacados do país apontaram, o governo de Cristina Fernández de Kirchner decidiu finalmente apresentar um anteprojeto de lei para substituir a atual Lei de Radiodifusão do país. A lei vigente foi redigida nos tempos da última ditadura militar e várias vezes emendada pelos diferentes governos constitucionais que se seguiram, sem que isso tenha modificado de maneira substancial a matriz antidemocrática de nosso sistema de mídia. Muito pelo contrário, muitas das modificações feitas consolidaram a concentração da propriedade dos meios e a lógica mercantil para o sistema de comunicação.
A apresentação de uma nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual comporta outros dois marcos: a redação de seu conteúdo foi feito na base de consultas com os atores sociais implicados e, em boa medida, recolheu as propostas da “Coalizão por uma Radiodifusão Democrática”, integrada por organizações sociais de base, organismos de direitos humanos e meios comunitários. Por outro lado, abriu-se um processo para divulgar a nova lei para a opinião pública por meio de debates convocados tanto pelo governo como por outras instituições. No entanto, os grandes ausentes deste esforço para difundir esse tema prioritário para a democratização da sociedade são, justamente, os grandes meios de comunicação.
No debate sobre meios e cidadania, organizado pelo Departamento de Comunicação do Centro Cultural da Cooperação, realizado esta semana em Buenos Aires, a pesquisadora e professora universitária da Universidade de Buenos Aires (UBA), Lila Luchessi, observou que “a nova lei é muito positiva e é muito importante porque é a primeira vez que um governo abre um anteprojeto de lei para a discussão pública com a sociedade civil”. O jornalista do Página 12 e também professor da UBA, Washington Uranga, acrescentou que “os meios não falam dos meios,na medida em que não discutem o sistema de meios. Isso implicaria realizar processos de autocrítica que não estão habilitados neste âmbito”. Ele continuou: “Revisemos as campanhas políticas desde a volta da democracia e busquemos juntos quais foram os debates sobre o sistema de comunicação do país: não há nenhum. Quando se discutiu isso? Nunca. Esse tema não está na agenda midiática, mas tampouco está na consciência política da sociedade. Como sociedade que se pensa democrática, deveríamos ter nos ocupado deste tema, para possibilitar o surgimento de outros meios de comunicação. É preciso garantir socialmente a existência de outros meios e isso não é algo que interesse às grandes empresas midiáticas, mas sim à cidadania e aos dirigentes políticos. Nem tudo pode ficar entregue livremente à lógica do mercado”.
A cobertura que os meios de comunicação realizaram sobre o conflito do governo com o “campo”, em torno da questão das retenções sobre as exportações agrárias, foi o detonador de várias reflexões e questionamentos em torno dos quais girou o debate, especialmente as questões relativas à manipulação da informação, à construção das agendas da mídia, e ao choque de interesses e as noções de “responsabilidade” e “liberdade de imprensa”.
Em relação ao papel dos meios e sua responsabilidade social, Uranga afirmou:
“Os meios são protagonistas e corresponsáveis dos processos políticos e sociais que vivemos. Influem no político,no econômico e no social. Vivemos em uma sociedade muito midiatizada, ou seja, em uma sociedade que transporta os debates políticos e sociais aos meios. Portanto, o sistema de meios e nós que trabalhamos nos meios temos um peso, uma relevância e uma carga de responsabilidade. Responsabilidade, inclusive, em termos de como pensar a governabilidade: quando alguém define uma manchete, quando escreve, tem que pensar sobre esse tema. Isso nos impõe certos limites à liberdade, nos dá um marco. E assumo isso quando escrevo”.
Especialista na análise da cobertura de informações políticas, Luchessi abordou o tema da transparência, da construção de agendas e da representação dos acontecimentos nos meios de comunicação de massa. “Em termos de transparência, seria importante que os meios apresentassem claramente sua posição. Se as empresas midiáticas expusessem quem são, para quem atuam, etc., seria outra coisa”, afirmou.
“Nenhum meio reflete sobre os acontecimentos; constroem a agenda em função de seus interesses e do que as empresas de pesquisa dizem sobre o que preocupa as pessoas. Como aparecem relatadas as coisas nos meios de comunicação? Na medida em que se trata de uma narrativa, é uma construção. E essa construção se realiza de acordo com determinados interesses que, em geral, não são transparentes”, agregou. Em conexão com esse tema, Uranga completou: “O espaço dos meios é um espaço público, mas de disputa simbólica pelo poder, ou seja, político. No entanto, nem todos participam desse espaço. É um cenário no qual alguns participam e outros não. Através dos meios, distintos atores sociais tentam impor um sentido comum, valores interpretativos da sociedade, que expressam uma hegemonia”.
O jornalista Eduardo Blaustein, por sua vez, fez uma análise da situação dos meios de comunicação no marco de uma contextualização mais ampla. Ele afirmou que, para além da possibilidade de uma nova lei, são muitas as condições que operam sobre o estado atual da cultura informativa: “É preciso assumir que não há respostas no curto prazo. O estado atual dos meios é uma construção de décadas, é algo que diz respeito ao estado cultural da sociedade. Não há nenhuma lei mágica. São grandes construções sociais e políticas. São evoluções culturais muito lentas. Os meios que temos também são sintomas da sociedade que somos. Ainda que muitas organizações sociais possam ter rádios a partir da nova lei, isso não vai mudar a situação dos meios da noite para o dia. A batalha não se esgota na disputa meios/contrameios. Trata-se de uma construção maior”.
Durante o debate também foram abordadas questões tais como a naturalização de representações racistas da sociedade, repetidas algumas vezes pelos “movileros”, a manipulação exercida pela editorialização e pela propagação do discurso único a partir da homogeneização produzida pela concentração midiática. Em torno dessas análises, Uranga destacou que o desafio é construir um sistema no qual haja “meios com pluralidade de vozes e de atores, que funcionem como mecanismos de representação. É preciso buscar a emergência em novos atores sociais que não são necessariamente os meios. Na medida em que existam esses novos atores, poderemos ter meios de comunicação que os possam expressar. Não podemos pensar o processo vinculado à comunicação e à informação fora dos processos sociais e culturais; portanto, as mudanças virão de mãos dadas com mudanças políticas e culturais. Será um processo coletivo, complexo, multifacetado, uma luta do conjunto dos atores sociais e da cidadania. O futuro que quero construir depende do passo que vou dar hoje, por menor que ele seja. Esse anteprojeto de lei pode ser feito porque houve uma construção de anos de propostas e projetos alternativos. Até agora não havia condições políticas para colocá-lo sob a forma de uma lei, mas houve uma caminhada que o permitiu”.
Resta ver se o caminho iniciado pelo anteprojeto de lei e, muito antes, pelo movimento das rádios comunitárias, da imprensa livre e das organizações sociais que reclamam não só a democratização do acesso à informação, mas também que a comunicação seja entendida como um direito social que só se completará na medida em que haja uma pluralidade de vozes e participação coletiva, atinge a legitimidade social necessária para vencer aos poderosos interesses que se opõem a ele: as corporações midiáticas e o establishment (político, empresarial, social) que sempre se beneficiou de um sistema fechado às vozes dissidentes, defensor do status quo hegemônico e consolidado hoje como nunca antes.
*Maria Eva Blotta é jornalista, correspondente do Democracy Now em Buenos Aires
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior
::
Nenhum comentário:
Postar um comentário