Laurita não conhecia Maria; mesmo assim, apanhou
Fui presa e torturada por causa de uma mulher que nunca vi
por Laurita Salles
Eu era estudante de arquitetura da USP, 21 anos. A juventude em aberto. 1974, pós 68. Ser estudante era querer outro mundo. E o mundo que nos foi dado era o da ditadura.
Afinal, até andar em corredores da então FAu- Faculdade de Arquitetura da USP era algo vigiado. Aprendia-se com vinte anos que havia dedos-duros na classe e que peruas C14 por perto eram da policia no encalço de alguém.
28 e 29 de maio, dois colegas da escola presos. Fizemos assembléias para ver o que fazer, garotos e garotos amadurecidos à força rapidamente aprendíamos, com um soco no estômago, que nossos colegas tinham sumido porque presos e podiam morrer nos calabouços das prisões clandestinas do Dói-Codi.
Naquela noite 30 de março fui à casa de Raul e Lila, amigos da faculdade. Precisava conversar sobre o que estava acontecendo. Ficou tarde, dormi lá. Às 5 horas da manhã a casa foi invadida por policiais com metralhadoras. Levaram Raul e Lila, não sabíamos para onde. Umas duas horas depois eu e mais dois colegas que também dormiam lá fomos levados sem destino, de capuz na cabeça - eu entre metralhadoras, numa C14 beije. Estava sendo presa sem saber por quê. Muito menos para onde era levada.
O soco no estômago agora era comigo.
Fui levada ao que hoje sei ser o Dói-Codi. Onde mataram Wladimir Herzog. Estavam atrás da Lourdes. Quem era Lourdes? Lá eu sabia?
Na prisão fiquei sabendo que Lourdes freqüentava a casa de Raul. Era mãe de um dirigente da ALN (Aliança Libertadora Nacional) que tinha conseguido escapar do Fleury [Nota do site: o delegado Sergio Paranhos Fleury liderava a repressão civil]. A coisa era brava. Fui interrogada, torturada, levei choques. Ora, por quê? Porque achavam que eu conhecia a Lourdes. Nunca vi, nem sabia que ela existia! Fui solta no dia 4 de junho de 1974; acharam a Lourdes no dia 3 de junho!
Pois vim saber bem mais da Lourdes, Maria da Conceição Coelho Sarmento da Paz, agora, mais de 30 anos depois, ao procurar documentos para pedir indenização como ex-presa política. Achei sua foto - a de alguém que levou muita porrada - e a entreguei para seu filho, aquele, procurado há 30 anos atrás: Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, músico. Que conheci agora através do Fórum dos ex-presos políticos. Hoje, gosto da Lourdes,uma fotografia pra mim, mas que mudou minha vida. Jamais da ditadura que me prendeu assim, à toa, como uma vaca currada. Daí fui à luta e lutei e lutarei contra a ditadura para sempre, pois ela fez de meu corpo jovem, lombo de boi preso urrando de dor. Isso eu não esqueço. Não.
Fonte: Vi o Mundo
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