sábado, 25 de abril de 2009

Ditabranda: Uma palavra e suas implicações

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Cinco analistas políticos discutem as implicações do editorial da Folha que reabilita o regime militar. Em resposta às questões formuladas por Caros Amigos, opinam Virginia Fontes, professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF); Celso Lungaretti, jornalista e escritor, responsável pelo blog http://naufrago-da-utopia.blogspot.com, Valter Pomar, secretário de Relações Internacionais do PT; Luiz Antonio Magalhães, editor executivo do site Observatório da Imprensa; e Osvaldo Coggiola, professor titular do Departamento de História da USP.

1. Na sua opinião, o que levou a Folha de S.Paulo a chamar a ditadura de “ditabranda”?

Virginia Fontes:
­Sem apelar para Freud, é óbvio que há a intenção de reduzir o impacto da ditadura. O termo ditabranda foi utilizado primeiramente por Pinochet! Na Folha de S. Paulo, cujos laços de seus proprietários com a ditaduríssima brasileira são conhecidos e documentados, essa intenção é obviamente abrandar, fazer esquecer seu próprio papel ao lado da ditadura.
Jornais são co-produtores de memória coletiva e, da mesma forma, são indutores de esquecimento coletivo, de maneira seletiva. Para impedir falsificações históricas desse porte, é preciso que a sociedade se manifeste, impedindo que a memória nacional e nossa história fiquem reféns de grandes proprietários de mídias diversas.

Celso Lungaretti:
Há cerca de dois anos, temos notado crescentes indícios de direitização da Folha, como o enfoque cada vez mais negativo dado à memória da luta armada contra a ditadura de 1964/85 e os resistentes que dela participaram. Cito dois casos: o da decisão da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça beneficiando a viúva e filhos de Carlos Lamarca, em que o jornal ecoou a demagógica grita reacionária contra a posição eminentemente técnica assumida pelo colegiado, e a polêmica algoz-vítima, na qual o jornalista Élio Gaspari fez acusações destrambelhadas a antigos militantes, baseado exclusivamente nos Inquéritos Policial-Militares do regime militar, que não servem como evidência histórica por estarem contaminados pela prática generalizada da tortura.

Valter Pomar:
Há vários elementos. Em primeiro lugar, é um ato falho de quem tem um passado de apoio à ditadura. Em segundo lugar, reflete o nervosismo e o desconforto deles com a vitória das esquerdas, nos processos eleitorais latino-americanos. Por fim, o ambiente de crise internacional produz movimentos ideológicos para a esquerda, mas também para a direita.

Luiz Antonio Magalhães:
Concedendo o benefício da dúvida ao jornal, seriam duas as hipóteses: ou foi um lapso de um editorialista mais conservador ou foi uma espécie de recado dirigido ao público mais de esquerda do jornal, de um lado, e aos mais conservadores, de outro. Uma espécie de aviso sobre a linha divisória ideológica do atual projeto editorial. Em português claro, a direção teria tentado, sutilmente, dizer: daqui para lá, não vamos aceitar. Isto vale para Chávez, mas vale para o Brasil também. De toda maneira, o que deveria ser um recado sutil acabou se transformando em uma enorme celeuma e o tiro saiu pela culatra, uma vez que a Folha teve de recuar um pouco.

Osvaldo Coggiola:
É uma simples expressão de reacionarismo que se pretende “original” ou “contra a corrente” (da esquerda), o que é a marca registrada desse jornal, que não tem sido capaz, ao longo de sua história, de sustentar uma linha ideológica ou política consistente.

2. Existe alguma relação entre o episódio da “ditabranda” e a resistência do campo político liberal-conservador à punição dos torturadores?

Virginia Fontes:
Evidentemente. Os que pactuaram com a tortura e dela se beneficiaram têm todo o interesse em negar sua existência e, em momentos em que o tema vem sendo permanentemente retomado - para que retomemos nossa história plenamente -tentam desqualificar exatamente aqueles que sempre se posicionaram contra a ditadura e pela retomada plena de nossa história.

Celso Lungaretti:
O que salta aos olhos é a adesão da Folha a um conceito que, até agora, estava restrito à propaganda enganosa que a extrema-direita dissemina em correntes de e-mails e nos seus sites nauseabundos. Ela sempre tentou convencer a opinião pública de que a ditadura não foi tão sanguinária como a história registra. Vamos ver se a Folha encampa também a outra tese falaciosa, complementar, das viúvas da ditadura: a de que a usurpação do poder em 1964 não teria passado de um contragolpe preventivo.

Valter Pomar:
Há um vínculo geral entre o ambiente latino-americano e o ambiente de crise internacional, que já citei, com diversos movimentos ideológicos e práticos da direita: discursos em favor do golpe de 64, resistência a punir torturadores, apoio à extradição do Cesare Battisti, a ridícula e lamentável excomunhão decidida pelo arcebispo de Recife, os ataques ao MST. A lista é extensa e revela que o grande capital e seus representantes políticos (partidos, mídias, porta-vozes em instituições importantes) estão fazendo um aggiornamento conservador.

Luiz Antonio Magalhães:
Não vejo relação direta, do tipo "vamos fazer isto para dar um basta à ofensiva das esquerdas contra os torturadores". Acho que seria teoria conspiratória, paranóia pura. Mas é evidente que este tipo de qualificação da ditadura militar ajuda, dá argumentos aos que defendem a tese do "vamos esquecer tudo que aconteceu ontem".

Osvaldo Coggiola:
Objetivamente (isto é, independentemente das intenções dos membros do Conselho Editorial da Folha) ela existe, pois os torturadores podem argumentar, com base na argumentação da Folha, o caráter marginal de sua atividade, num contexto geral de “tolerância” do governo ao qual serviam. O direito da Folha de usar o termo “ditabranda” não está em questão: o que está em questão é o seu direito de se arvorar em “guardiã da democracia” (inclusive contra as “ditaduras de esquerda”) ao fazê-lo.

3. Como o caso se insere na atual conjuntura política?

Virginia Fontes:
É complexa essa relação, pois os setores conservadores e anti-populares são beneficiados pelo atual governo, mas rejeitam o processo histórico no qual se forjaram a CUT, o PT e o MST, isto é, as formas de organização sindical e popular, as reivindicações e as lutas que fizeram parte de sua trajetória, mesmo que o próprio Lula não mais queira saber disso. Os grandes proprietários atacam sem piedade os direitos sociais, que “denunciam” como se fossem “privilégios”. Para conservar a velha forma da propriedade altamente concentrada, atacam as lutas sociais, exatamente o que existe de mais novo e pulsante de nossa história, como se fossem arcaicas. Defender a ditadura chamando-a de ditabranda ocorre num momento de intensa criminalização dos movimentos sociais que, como o MST, jamais perderam o rumo das lutas populares e não se dobraram à cooptação dos poderosos.

Celso Lungaretti:
O analista de imprensa Alberto Dines acredita que a Folha esteja prestes a uma correção de rumo, no sentido de reconquistar os leitores de centro-esquerda que estão debandando indignados. Vamos conceder ao Dines o benefício da dúvida. Mas, se a Folha perseverar no seu descaminho atual, o saldo desse episódio terá sido mais um avanço da direitização da grande imprensa, cujos respiradouros estão sendo fechados um a um. Igualmente preocupante e até incompreensível está sendo a caça às bruxas que a Carta Capital promove no caso Battisti. O público tradicional da revista está estupefato.

Valter Pomar:
Eles estão preparando o terreno ideológico para o que pretendem fazer, caso reconquistem o governo em 2010. Ou seja, reprimir duramente a esquerda partidária e social com o discurso de que farão algo preventivo. O discurso deles é o que a esquerda, no fundo, constitui um perigo para a democracia. Eles dizem, por exemplo, que a resistência à ditadura foi feita por gente que, no fundo, queria uma ditadura ainda pior, em comparação com a "branda" ditadura brasileira.

Luiz Antonio Magalhães:
Está em curso em uma parte da grande imprensa brasileira um novo movimento para tentar impedir a vitória do projeto lulista em 2010. Em 2002, a grande imprensa se portou com muita independência em relação ao então candidato do governo, José Serra, entre outros motivos porque estava muito fragilizada (endividada, em crise) e sabia que poderia precisar do Lula caso ele chegasse à Presidência. Já em 2006, a mídia voltou a se comportar nos padrões das eleições anteriores, apoiando claramente o adversário de Lula. Agora, o que parece estar acontecendo é um realinhamento em torno da candidatura de Serra. Como a popularidade de Lula é muito alta, os jornais e revistas desde já começaram a trabalhar a munição contra o governo. No caso da ditabranda, trata-se de um ataque "lateral", isto é, dirigido para leitores conservadores qualificados e que se sentem sem argumentos para justificar a volta da aliança conservadora ao poder.

Osvaldo Coggiola:
Não se deve exagerar sua importância: a Folha (diversamente do Estadão, e sem elogiar em absoluto este último) não expressa um ponto de vista orgânico e consistente do estamento dominante, nem mesmo de um setor deste. É mais a representante do oportunismo elevado à categoria de doutrina, que se recicla a cada mudança da conjuntura (lembremos da sua publicidade no pós-ditadura, ao afirmar que nas suas colunas se expressavam tanto Sarney como Florestan Fernandes). O episódio é significativo da tentativa de demonstrar uma continuidade essencial entre o regime militar e o atual (não o governo, mas o regime político no qual se abriga).

4. Existe uma tendência de “suavizar” a imagem da ditadura?

Virginia Fontes:
Os donos das terras, dos capitais e da mídia se cercam de
aduladores e, para além dos setores abertamente conservadores, também hoje existem escrevinhadores (muitos deles com os devidos títulos universitários) dispostos a suavizar a ditadura, fazendo um “revisionismo” histórico no qual desqualificam as lutas sociais riquíssimas e altamente democráticas dos anos 60, ao mesmo tempo em que procuram abrandar a truculência ditatorial. A Folha e o conjunto da grande mídia ecoam uma tendência que continua existindo entre os poderosos no Brasil: para eles, a ditadura foi benéfica.

Celso Lungaretti:
Tirando as figurinhas carimbadas da extrema-direita golpista, como o Grupo Guararapes, não vejo uma disposição de preparar o terreno para uma nova ditadura.

Valter Pomar:
Isto sempre existiu. Basta lembrar os “apelidos”: regime de força, governo militar, regime de exceção e outros. A ditadura militar, é bom lembrar, foi desde o início cívico-militar. O golpe de 1964 foi armado pela direita nas casernas e fora delas, financiado pela burguesia, pelo latifúndio e pelo Brother Sam.

Luiz Antonio Magalhães:
Essa tendência existe desde o dia em que a ditadura acabou. Aliás, acabou quando? Com a posse de Sarney ou com a vitória de Collor? De qualquer forma, ainda durante o governo Sarney diversas figuras que participaram da ditadura foram “reabilitadas” e passaram a ser tratadas como democratas de carteirinha. Este processo, que vem lá de trás, acontece hoje inclusive com a anuência do PT e de Lula, que também “reabilitaram” figuras como Delfim Neto, Reinhold Stephanes e tantos outros. Acho que quem responde bem isso é Sérgio Buarque de Holanda e o seu “Brasil cordial”.

Osvaldo Coggiola:
O termo “ditabranda”, referido ao regime militar brasileiro, é bem antigo, era de uso corrente em certa gíria política. O termo era usado para comparar a ditadura brasileira com suas equivalentes “genocidas” do Cone Sul (a argentina, por exemplo). Na Folha, a comparação foi feita de modo idiota por um historiador que ignorou a coordenação existente entre os diversos regimes castrenses, comparando o “desenvolvimentismo” dos brasileiros com o “neoliberalismo” videlo-pinochetiano (como se o “desenvolvimento econômico” pudesse justificar algum grau de repressão política). O diverso grau ou abrangência da repressão política se explica pela situação e oposição social diversa que os regimes militares do Cone Sul enfrentaram, não pela sua diversidade de intenções ou de “espírito democrático” (nulo, em todos os casos).

5. Pode existir alguma relação entre esse episódio e a crise econômica e/ou as eleições presidenciais de 2010?

Virginia Fontes:
Infelizmente, a inferência imediata que se pode retirar é que a sanha brutalizante e anti-popular persiste entre os setores conservadores. Isso deverá mais uma vez se manifestar grosseiramente nos próximos pleitos, desqualificando tudo o que se aproximar efetivamente das organizações legitimamente populares e reativando os comportamentos ditatoriais e autocráticos dos setores dominantes e dos candidatos a "amigos das elites" dominantes.

Celso Lungaretti:
A direita, empenhada em desalojar o PT do poder em 2010 pela via eleitoral, quer denegrir os antigos resistentes, passando a imagem de que a ditadura não foi tão escabrosa assim. Portanto, eles não sofreram tanto como dizem e não fazem jus às indenizações milionárias que recebem da União. Esse é um pacote com endereço certo: prejudicar a candidatura de Dilma Rousseff. Também é possível que os jornalões estejam irmanados numa campanha para evitar o crescimento da esquerda durante a crise global do capitalismo. Ações coordenadas da imprensa burguesa se registraram logo após a decisão de Tarso Genro concedendo o refúgio humanitário a Cesare Battisti, quando a mídia reagiu de forma uníssona e violentíssima.

Valter Pomar:
Sim, na medida em que deixa entrever a “pauta oculta” da direita. Veja: entre 1947 e 1964, como o PC estava na clandestinidade total ou parcial, o PTB foi o desaguadouro do voto popular de esquerda. No momento em que a democracia eleitoral restrita estava abrindo caminho para as reformas de base, a direita e o grande capital deram o golpe de 1964. Neste ano de 2009, vamos comemorar vinte anos de democracia eleitoral contínua. As tensões que isto provoca na esquerda, já conhecemos. Mas também provoca imensas tensões na direita, que nunca foi democrática e que será cada vez menos.

Luiz Antonio Magalhães:
Não vejo como relacionar as duas coisas. Sim, a Folha está magnificando os efeitos da crise no Brasil, mas esta é uma característica da linha editorial do jornal que me parece mais antiga. Não vejo como cruzar as duas coisas.

Osvaldo Coggiola:
Pretende-se levar o cenário político o mais à direita possível, dentro das atuais condições “democráticas”. Legitimar a ditadura (rebatizando-a) é uma boa maneira de preparar a opinião pública para uma política de mão dura, qualquer que seja o eleito em 2010, em especial nas condições sociais pioradas que já resultam (e resultarão ainda mais) da crise capitalista mundial.

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