por Terry Eagleton, The Guardian, 25/4/2009
Gostem eles ou não, os Dawkins[1], Amis[2], Hitchens[3] e companhia[4] converteram-se em armas na guerra ao terror.
Um dos efeitos colaterais da chamada guerra ao terror foi uma crise do liberalismo. Não se trata apenas de haver hoje novas leis alarmantemente antiliberais, mas de um problema mais geral, de como o Estado liberal lida com seus inimigos antiliberais. Esse, com certeza, é o teste crucial de qualquer credo liberal.
Qualquer um sabe ser tolerante com quem seja tolerante. Uma comunidade de gente de mente arejada é lugar agradável, mas não exige nenhum grande esforço moral. A questão chave é como o Estado liberal lida com quem rejeite todo o seu quadro ideológico. Está na moda, hoje, dizer-se aberto "ao outro". Mas o que acontece quando o "outro" detesta muitas aberturas, tanto quanto detesta festas rave?
Não há dificuldade alguma sobre como tratar quem despreze os valores liberais, quando esse desprezo assume a forma de espancar crianças. Basta meter na cadeia os espancadores de crianças. Mas os socialistas e os muçulmanos também rejeitam o Estado liberal. Nesse caso, o que fazer com eles? Devem ser admitidos apenas na medida em que se limitem a desafiar o Estado, momento a partir do qual, então, socialistas e islâmicos também imediatamente serão postos atrás das grades, companheiros de cela dos fanáticos da Al-Qaeda?
Não é verdade, é claro, que a esquerda rejeite as liberdades civis: o movimento operário sempre lutou para defender muitas liberdades civis. Marx sempre manifestou imorredoura admiração pelo grande legado revolucionário do liberalismo da classe média. Apesar disso, há conflito fundamental entre os liberais e a esquerda.
O liberalismo prega que o Estado deve tolerar todas as opiniões que não visem a minar a tolerância. Aí está uma política engraçada. Bem que Tony Blair avisou: "Nossa tolerância é parte do que faz a Inglaterra Inglaterra. Aceitem isso, ou não se aproximem de nós." Decidir se a coisa é cômica, porque autocontraditória, ou se é adequadamente paradoxal, depende do ponto de vista que se adote sobre o Estado liberal.
O Estado liberal não se incomoda com que você seja crente ou não-crente, desde que ninguém impeça o direito de outros às suas crenças. Alguém mais cínico dirá que o capitalismo avançado é inerentemente não-crente; desde que você pague seus impostos e não espanque policiais, você que creia no que quiser. O agnosticismo que Richard Dawkins e Christopher Hitchens vendem de porta em porta como negócio subversivo é arroz-com-feijão na rotina diária do capitaismo tardio. Para o Estado liberal, bruxaria e luta-livre tanto faz, quanto tanto fez: não há diferença alguma.
Como barmen espertos, os liberais têm a menor quantidade possível de opinião. Há muitos liberais, até, para os quais qualquer convicção um pouco mais apaixonada é sintoma de autoritarismo latente. Mas o liberalismo, ele mesmo, deve, é claro, ser convicção apaixonada. Os liberais não são necessariamente indiferentes ou frios. Só os esquerdistas mais machos ainda acham que ser liberal é não ter colhões. Há quem seja ardentemente neutro e ferozmente indiferente.
Deve-se praticar o laissez-faire tanto no plano das crenças quanto no plano do mercado, ou na feira. Mas qualquer liberal honesto reconhecerá que a neutralidade do Estado é uma forma de parcialidade.
A esquerda tem restrições à causa liberal, não porque a esquerda creia que se devam esmagar as opiniões divergentes, ou porque a esquerda não aprecie a ideia da parcialidade do Estado, mas, sim, porque a causa liberal não admite o tipo de Estado 'com lado' que o socialismo exige. A causa liberal, por exemplo, não admite um Estado que não seja neutro na hora de decidir se a cooperação ou o individualismo, um ou outro, reinará supremo sobre toda a vida social e econômica.
Se o teste crucial do liberalismo é o modo como enfrenta seus adversários não-liberais, parece que boa parte da intelligentsia liberal já cai, logo na primeira escaramuça.
Autores como Martin Amis e Hitchens não querem, apenas, meter os terroristas atrás das grades. Eles também praticam uma espécie de fundamentalismo de defesa da supremacia cultural do ocidente. Dawkins opôs-se fortemente à invasão do Iraque, mas prega um tipo de racionalismo de peruca, auto-satisfeito, fora de moda, que serve como arma contra um Islam pressuposto inferior. O filósofo AC Grayling tinha o mesmo olhar mesmerizado quando discursava sobre a marcha do Progresso Ocidental. O novelista Ian McEwan é campeão recém-recrutado desse mesmo racionalismo militante. Hitchens e Salman Rushdie defenderam os disparates de Amis contra muçulmanos. Gostem ou não, Dawkins e sua turma tornaram-se armas na guerra ao terror. A 'superioridade' ocidental gravitou, da Bíblia, para o ateísmo.
A ironia é clara. Alguns dos nossos espíritos literários mais livres têm defendido valores liberais de tal modo, que os estão minando. Nisso, refletem o comportamento dos Estados ocidentais. Espera-se, dos liberais, que valorizem análises mais finas e a complexidade moral. Pois nada disso se vê, em todos quantos, hoje, estão degradando o Islam e o apresentam como culto sangrento e bárbaro. Não chamam atenção por qualquer análise mais judiciosa. De fato, não fazem senão afastar, com descaso arrogante, todas as religiões, como se fossem lixo.
Há também um legado liberal que manda temperar os julgamentos absolutos com informações de contexto: o liberal genuíno está aterrorizado pelo terror dos islâmicos, mas não é cego para a ofensa e a humilhação nacionais que subjazem nele.
Nenhum dos escritores que nomeei dá qualquer sinal de buscar esse equilíbrio. No frigir dos ovos, estão mais preocupados com a própria liberdade de expressão do que com libertar alguém do jugo imperial.
Há uma ironia ou paradoxo, no âmago do pensamento liberal: o liberal pode ser adequadamente intolerante, quando a tolerância é agredida. Mas essa ironia traz com ela o perigo eterno de, de repente, fugir do controle.
Uma das mais admiráveis conquistas da civilização é a capacidade do Estado liberal para acomodar crenças diversas, mesmo sem ter praticamente nenhuma convicção positiva sobre coisa alguma. Mas essa neutralidade, quando sofre pressões, pode muito facilmente converter-se em convicção fundamentalista da própria superioridade. É quando dar pouca importância a fé de outros converte-se em dar-se ares de desdém. Daí, só falta um passo, curto, do desdém ao fundamentalismo.
*NOTAS DE TRADUÇÃO (Caia Fittipaldi)
Tradução de trabalho, para fins didáticos, sem valor comercial. Comentários e correções são bem-vindos para caia.fittipaldi@uol.com.br
[1] Richard Dawkins, autor de The God Delusion e descrito no Times como "o mais zangado ateu inglês, autodesignado "capelão do diabo". Pode-se ler sobre ele em http://www.timesonline.co.uk/tol/comment/faith/article1767506.ece
[2] Martin Amis. Pode-se ler sobre ele em http://www.britannica.com/EBchecked/topic/20811/Martin-Amis.
[3] Christopher Hitchens. Pode-se ler sobre ele em http://www.prospect-magazine.co.uk/article_details.php?id=6870
[4] São, todos, autores ingleses contemporâneos conhecidos por suas convicções liberais.
Fonte: Vi o Mundo
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