quinta-feira, 9 de abril de 2009

Crise abre espaço para repensar Estado e desenvolvimento

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por Ladislau Dowbor

O tom do Seminário Internacional sobre o Desenvolvimento, realizado no início de março, em Brasília, foi dado pelo presidente Lula, ao resgatar o papel do Estado e a responsabilidade dos políticos no enfrentamento da crise financeira mundial. Durante três décadas, as corporações exigiram - e obtiveram - uma total liberdade de ação, ao garantirem que, sem a presença do Estado, resolveriam melhor os problemas do planeta, e que o mercado e a autoregulação constituiriam mecanismos suficientes para assegurar o equilíbrio dos processos econômicos. Na realidade a oligopolização do sistema reduziu drasticamente os mecanismos de concorrência entre as corporações, desarticulando os mercados, e a autoregulação demonstrou ser essencialmente uma ficção. Com a fragilização do Estado e a falência da auto-regulação, gerou-se simplesmente o caos. Disse bem Conceição Tavares: o banco comercial irá respeitar limites se o Banco Central os impuser. Isto vale para os Estados Unidos e vale para o Brasil.

O evento teve evidentemente a crise financeira como ponto de referência, mas o seu tema era o Desenvolvimento. Ou seja, trata-se não só de recompor a capacidade de ação dos intermediários financeiros, mas de colocar no centro o papel que lhes cabe, que consiste em canalizar de maneia racional os recursos que administram, em função dos objetivos que são da sociedade. Não basta ter intermediários financeiros “sólidos”, se esta solidez não se coloca a serviço do desenvolvimento.

Um banco, mesmo privado, não trabalha com dinheiro próprio, e sim com dinheiro do público, recebendo por isto uma carta-patente do Banco Central, que autoriza o seu funcionamento dentro de determinados parâmetros. O seu trabalho deve, sem dúvida, ser remunerado, mas dentro de limites razoáveis, sob pena do intermediário que facilita as atividades produtivas da sociedade tornar-se um atravessador que as dificulta. A nossa Constituição, neste plano, é clara: O sistema financeiro nacional será “estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade.” (Art. 192).

Quanto à cartelização do setor, “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros” (Art. 173, 4º).

O ministro Guido Mantega colocou claramente na sua exposição o problema dos custos financeiros nas atividades econômicas. O problema dos juros, na realidade, rondou boa parte das exposições. O que a mídia comenta sempre, é a taxa Selic. O assunto é importantíssimo, mas a queda da taxa Selic não é seguida por queda correspondente da taxa de juros ao tomador final. Como ordem de grandeza, cobra-se no Brasil ao mês o que se cobra anualmente no resto do mundo. Se acrescentarmos as tarifas cobradas, temos no conjunto uma prática de intermediação financeira que ao invés de servir os “interesses da coletividade”, passou a se servir do sistema (ver dados em www.anefac.com.br) .

Ao dificultar o acesso ao crédito, encarecendo tanto as iniciativas produtivas como o consumo mais sofisticado (intermediação comercial que se transformou em sistema de prestações com juros obscenos), o sistema financeiro passa a ser pro-cíclico, em vez de alavancar o desenvolvimento e reduzir os impactos da crise.

Bem vindo o comentário de Otávio de Barros, de que seria do interesse dos próprios bancos a redução do spread e a dinamização das atividades produtivas. Seria realmente o interesse bem compreendido de longo prazo. Na realidade, há determinação política, há bases legais, e há uma crise que exige redução de juros. Que interesses impedem o avanço?

Política anti-cíclica: a força da base econômica

O problema é no conjunto bastante simples: ao resgatar financeiramente os diversos tipos de manipuladores financeiros que geraram a crise, sem alterar as regras do jogo, estaremos voltando para trás, para o momento que gerou a crise. Não estaremos resolvendo o problema. Na avaliação de Amir Khair, “a injeção de recursos nos bancos - da ordem de R$ 100 bilhões - realizada pelo Banco Central pela redução dos depósitos compulsórios, pouco serviu para aumentar a oferta de crédito dos bancos privados, que preferiram investir em compras de títulos do governo federal atraídos pela alta taxa de juros básicos (Selic). (”Consumo interno de ativação da economia”, Estado de São Paulo, 01/03/2009)

Nos Estados Unidos, os rios de dinheiro colocados nas grandes instituições financeiras fortaleceram as reservas nos bancos, mas não se transformaram em crédito ao produtor ou ao consumidor. A análise de Michel Chossudovsky, do Global Research canadense, é que “os maiores bancos nos EUA utilizarão também este dinheiro caído do céu para adquirir o controle dos seus concorrentes mais fracos, consolidando assim a sua posição. A tendência, portanto, é de uma nova onda de aquisições corporativas e fusões na indústria de serviços financeiros”. (America’s Fiscal Collapse, March 03, 2009, Global Research, p.2)

O assunto é central, pois o objetivo não é salvar especuladores, e sim proteger a economia. E se os recursos injetados no sistema financeiro não se transformam em crédito, em ativação da economia, o esforço simplesmente não atinge os objetivos. Neste sentido a intervenção do Presidente Lula no Seminário Internacional sobre o Desenvolvimento, deu o tom: “É preciso distribuir para que a economia cresça”. A política econômica, segundo Lula, “significa produção, geração de empregos e distribuição de renda”.

Em outros termos, em vez de colocar mais liquidez em sistemas que vazam, trata-se de dinamizar a economia pela base. Os Estados Unidos encontram o mesmo dilema em escala mais ampla, entre a realimentação dos intermediários com liquidez, ou a dinamização econômica pela base - desintermediando de certa maneira os financiamentos, e fazendo os recursos chegar diretamente a quem os transforma em demanda, produção e empregos. O programa de ampliação de acesso à saúde, por exemplo, de 650 bilhões de dólares, constitui uma iniciativa deste tipo, ainda que muito pequena (é um programa de 10 anos, são 65 bilhões ao ano) em comparação aos financiamentos concedidos aos especuladores. É uma questão de relação de forças.

No caso brasileiro, a opção foi claramente pela dinamização da economia pela base. Nos números apresentados pela ministra Dilma, joga papel central na proteção da economia brasileira a convergência de um conjunto de iniciativas: o aumento do salário mínimo real na gestão Lula foi de 51%, o que favorece tanto os salários da base social (26 milhões de pessoas) como os aposentados com reajuste pelo SM (cerca de 18 milhões de pessoas). O aumento do Bolsa-Família, tanto em termos de recursos como de cobertura, atinge quase 50 milhões de pessoas. O Pronaf, dinamizando a agricultura familiar, estimula tanto a demanda de bens de consumo como a demanda de bens de produção. O programa Territórios da Cidadania disponibiliza recursos da ordem de 11 bilhões de reais diretamente vinculados às administrações municipais das regiões mais pobres.

Outros programas, como Luz para Todos, Prouni, formação profissional e outros também criam inclusão econômica, e fortalecem a demanda interna. O PAC, por sua vez, dinamiza a economia pelos investimentos, tanto diretamente nas obras como indiretamente pelo estímulo à industria de insumos. Outro investimento amplo anunciado no Seminário, é o programa de construção de um milhão de moradias, que deve atingir essencialmente a demanda de baixa renda. O BNDES, com 168 bilhões de reais para aplicar, constitui hoje um dos principais eixos de mobilização econômica, tanto através de grandes projetos como pela dinamização direta do setor privado.

No conjunto, é uma visão onde se aproveita de certa maneira a oportunidade que surge na crise. A distribuição de renda, o crédito produtivo e a construção de infraestruturas respondem claramente a demandas prioritárias do país, mas ao mesmo tempo atingem o objetivo de redução da vulnerabilidade frente à crise. No andar de baixo da economia, ninguém faz aplicações financeiras para esperar retorno, o dinheiro circula imediatamente, e se traduz em consumo, demanda e emprego. Os intermediários financeiros, acostumados a trabalhar com baixo volume de crédito, alto spread e lucros exagerados, terão gradualmente de se adaptar.

Crise financeira e crise de modelo

Márcio Pochmann fala em refundação do Estado. Maria da Conceição Tavares nas relações concretas de poder que sustentam o processo decisório. Ignacy Sachs se refere à mudança do paradigma energético-produtivo e do sistema de regulação, planejamento e visão de longo prazo que temos de articular. A crise tem o poder, como foi revelado nas numerosas intervenções no Seminário Internacional sobre o Desenvolvimento, de ampliar o debate, de colocar na mesa problemas que estavam buscando o seu espaço.

Um exemplo do velho modelo: a grande indústria pesqueira está liquidando a vida nos mares, fazendo simplesmente o que uma empresa faz, ou seja, buscando a maximização do lucro. O resultado prático é que o peixe está desaparecendo. Para 2,6 bilhões de pessoas, cerca de 40% da população do planeta, o peixe representa um quinto das suas necessidades protéicas (New Scientist, 14 February 2009, p. 14). É uma tragédia planetária.

As novas tecnologias permitem esta intensidade de exploração, mas o sistema de regulação não acompanhou, e as leis antigas não protegem águas internacionais. O resultado é catastrófico para todos, inclusive as corporações de pesca industrial. Como a crise dos sub-prime que todos viam chegar, não há capacidade de regulação minimamente compatível com o nível dos desafios. Tornamo-nos espectadores dos dramas que criamos.

Um exemplo do novo modelo: o Global Green New Deal das Nações Unidas apresenta como ilustração um programa da Coréia do Sul, que consiste em 36 bilhões de dólares investidos na redução do aquecimento global, ampliando infraestruturas de transporte coletivo, fortalecendo alternativas energéticas e semelhantes, e criando com isto 960 mil novos empregos: é um programa que reduz o desemprego, portanto socialmente útil, mas também reduz as pressões sobre o meio-ambiente, e ao gerar demanda na base da sociedade constitui uma política anti-cíclica. Parte de uma iniciativa planejada e de uma visão de longo prazo.

No planeta, enfrentamos uma dramática insuficiência de financiamento da pesca sustentável em pequena escala, das energias alternativas, da pesquisa de vacinas de malária, tuberculose e AIDS, da recuperação de matas devastadas, da promoção da agricultura familiar e das novas tecnologias agrícolas (IAASTD), até de fogões mais adequados para os 2 bilhões que ainda cozinham com lenha, sem falar do saneamento básico e do acesso à prosaica água e ao pão nosso de cada dia. A realidade, é que o planeta não tem instrumentos minimamente adequados de alocação de recursos segundo as prioridades reais da humanidade.

As Nações Unidas trazem cifras úteis: por exemplo, 300 bilhões de dólares tirariam da miséria a 1 bilhão de pessoas que vivem com menos de um dólar por dia, reduzindo custos de saúde e segurança, aumentando a produtividade escolar e do trabalho. Não se consegue esta medida evidente, para a qual temos recursos, conhecimento e capacidade de organização, mas se coloca trilhões na mão de especuladores financeiros. Neste sentido, é o próprio conceito de alocação produtiva dos recursos, que afinal são constituídos por poupanças do público e não dos intermediários, que se coloca. Ignacy Sachs resume bem: que Estado, para que desenvolvimento?

*Ladislau Dowbor, é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da PUC de São Paulo e da UMESP, e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de “Democracia Econômica”, “A Reprodução Social”, “O Mosaico Partido”, pela editora Vozes, além de “O que Acontece com o Trabalho?” (Ed. Senac) e co-organizador da coletânea “Economia Social no Brasil“ (ed. Senac) Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org.

Fonte: Mercado Ético

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