sábado, 4 de abril de 2009

Corrêa à luz do dia

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O delegado torturador e sua vítima


A Comissão de Direitos Humanos da Câmara vai apurar a denúncia de tortura cometida pelo diretor da PF.


Por Leandro Fortes

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados iniciou um processo de investigação, por meio de sua assessoria jurídica, para apurar a responsabilidade do delegado Luiz Fernando Corrêa, diretor-geral da Polícia Federal, na tortura da doméstica Ivone da Cruz, 46 anos, em 21 de março de 2001.

É uma reação à reportagem da edição 538 de CartaCapital que relata os abusos cometidos contra Ivone. A doméstica acusa Corrêa de ter comandado uma sessão de tortura na sede da Superintendência Regional da PF, no Rio Grande do Sul. À época, o delegado federal atropelou a competência da Polícia Civil gaúcha e interrogou ilegalmente a empregada. Corrêa suspeitava da participação dela em um assalto realizado na casa da avó de sua mulher, Rejane Bergonsi. As pancadas e os choques elétricos recebidos na PF, alega Ivone, acabaram por deixá-la cega.

Na quarta-feira 8, a comissão vai votar um requerimento do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) de convocação do diretor-geral da PF. Também deverão ser ouvidos Ivone e o delegado Fernando Rosa Pontes. Ao depor na sindicância interna da PF, Pontes afirmou jamais ter solicitado a Corrêa tomar depoimentos no lugar da Polícia Civil do Rio Grande do Sul. Em Porto Alegre, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa também decidiu analisar o caso. Uma comissão de deputados estaduais deverá ir a Alvorada, na periferia da capital gaúcha, onde vive a doméstica, que, além de cega, está incapacitada de trabalhar por causa de uma depressão crônica, para tomar-lhe o depoimento.

O corregedor-geral da PF, delegado Valdinho Caetano, é outro a ser convocado pela comissão. Empossado por Corrêa em 5 de dezembro de 2008, Caetano não esperou nem dois meses para arquivar a sindicância contra o chefe, em 21 de janeiro de 2009. O delegado negou-se a fornecer os autos do processo à CartaCapital. A revista obteve os documentos com Volnei de Oliveira, advogado de Ivone. Nem o Ministério da Justiça, nem a Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República se manifestaram a respeito da denúncia.

Por duas semanas, CartaCapital tentou ouvir o ministro Tarso Genro, chefe de Corrêa. Na terça-feira, 31 de março, Genro mandou avisar, por meio de sua assessoria de imprensa, que não iria se pronunciar, pois estava satisfeito com os argumentos apresentados pelo subordinado em carta enviada e publicada na edição de 27 de março da revista. No texto, Corrêa nega ter torturado a empregada e alega tê-la interrogado a pedido do delegado civil Fernando Pontes – fato desmentido, documentalmente, nos autos do processo.

A investigação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados poderá inverter a lógica dessa história, até agora baseada numa encruzilhada política. Corrêa foi colocado por Genro na PF por conta do lobby sindical da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef), comandada por outro gaúcho, o agente federal Marcos Vinício Wink. Logo depois de tomar posse como ministro, em março de 2007, Genro visitou a Fenapef antes mesmo de ir à sede da PF em Brasília, então sob o comando do delegado Paulo Lacerda. O site da federação, na internet, é um espaço permanente de apoio ao atual diretor-geral.

Corrêa foi colocado na chefia da corporação para, justamente, se contrapor ao estilo de Lacerda e arrefecer a sanha investigatória e supostamente “espetacularizada” da PF. Para demiti-lo, Genro seria obrigado a abrir uma fissura política na base sindical da polícia, dominada por um dirigente gaúcho, justamente quando ele começa a se apresentar como candidato favorito do PT à sucessão da governadora Yeda Crusius (PSDB), no Rio Grande do Sul. Além disso, perderia o comando da cúpula da PF num momento em que a corporação permanece na berlinda tanto por causa da Operação Satiagraha quanto pela mais recente, a Castelo de Areia, contra a Construtora Camargo Corrêa.

A Genro cabe equilibrar-se entre o apoio a Corrêa, acusado de maus-tratos, e a cruzada para levar aos tribunais os agentes públicos que cometeram tortura durante a ditadura. O ministro parecia alimentar a convicção de que o assunto cairia no esquecimento completo. Mas eis que aparece o presidente da comissão da Câmara, deputado Luiz Couto (PT-PB), interessado em esclarecer o tema. “Um fato grave desses não pode deixar de ser investigado”, afirma Couto.

Corrêa pode se negar a depor na comissão, pois a convocação é feita em forma de convite. A negativa nesses casos costuma ser uma péssima estratégia de defesa. Seria bom o diretor da PF ter em mente o destino de um colega de corporação, João Batista Campelo, nomeado para o cargo em 1999, no início do segundo mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso. Campelo foi demitido depois de depor na Comissão de Direitos Humanos da Câmara, onde foi acusado formalmente de torturar o ex-padre José Antônio Monteiro, em 1970, na Superintendência Regional da PF do Maranhão, em São Luís. São situações bastante semelhantes, embora a empregada Ivone da Cruz não tenha contado, como no caso do ex-padre, com o apoio público da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nem merecido destaque na mídia.


:: Matéria-prima
A revista serve de base para outras decisões

Outras duas reportagens recentes de CartaCapital viraram base de investigação ou ponto de partida para homenagens da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados.

Os parlamentares da comissão decidiram investigar a suspeita de que o ex-presidente João Goulart, deposto pelos militares em 1º de abril de 1964, teria sido envenenado em dezembro de 1976, quando vivia no exílio. A revista publicou documentos inéditos dos organismos de repressão e revelou a existência de um agente infiltrado que tinha relações próximas com Jango (edição 537, de 18 de março de 2009). Em um dos relatórios, o agente, ainda não identificado, lista uma série de produtos químicos que poderiam ser usados para “eliminar”.

O caso da morte de Jango deverá mobilizar um grupo de parlamentares da comissão, a ser escolhido em reunião, para se deslocar até a Penitenciária de Charqueada, no Rio Grande do Sul, onde está preso por tráfico de armas o ex-agente do serviço de inteligência uruguaio Mario Neira Barreiro. Segundo Barreiro, o presidente deposto foi vítima de uma operação conjunta das ditaduras do Brasil, Argentina e Uruguai.

A comissão decidiu ainda indicar Maria da Conceição Pereira, moradora da periferia de São Paulo, para receber o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, em 10 de dezembro, concedido anualmente pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. A comissão se baseou na reportagem de CartaCapital intitulada “Dona Maria não teve medo”, que narra a luta de Maria para encontrar o filho morto por um esquadrão da morte em São Paulo (edição 538, de 25 de março de 2009).

Fonte: Carta Capital

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