sábado, 18 de abril de 2009

Concessões em cheque - De volta ao tempo das chibatas

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foto: Bandnews
"No Brasil temos uma tradição de bater", diz jornalista

por Francisco Viana
De São Paulo

Hoje estou cedendo espaço para Ricardo Lauricella, aluno de pós-graduação em Jornalismo Institucional da PUC-SP que vai tratar do episódio dos trens no Rio de Janeiro que envolveu funcionários responsáveis pela segurança no transporte ferroviário que, com socos e pontapés agrediram passageiros nos vagões. O tema ganha relevância por colocar em questão o funcionamento das concessões de serviços públicos. A pergunta é: esse tipo de crise se limita ao fato em si, ou traz à cena questões mais profundas relacionadas à responsabilidade com a coisa pública e o relacionamento com a sociedade. Vamos ao texto.

De volta ao tempo das chibatas

Por Ricardo Lauricella*

Milhares de pessoas esperam os vagões de trens todos os dias nas plataformas do transporte público que não é o suficiente para atender trabalhadores, estudantes e demais cidadãos. O resultado, nós sabemos: empurra-empurra, desordem, falta de segurança, acidentes, caos. Na última semana tomamos conhecimento de um fato estarrecedor: durante a paralisação dos ferroviários no Rio de Janeiro, o cinegrafista Eduardo Torres, registrou cenas de violência por parte dos funcionários que seriam responsáveis pelo zelo e auxílio aos usuários do transporte público.

A resposta ao caso, que ganhou a mídia televisiva e à internet, o maior boca a boca dos tempos atuais, veio imediatamente como qualquer suposto manual de crise recomendaria. Porém, esse tipo de episódio traduz um problema sério que não se resolve com decisões de roteiros preestabelecidos, como a demissão de funcionários. Envolve treinamento, prevenção e mudanças na comunicação interna.

As pessoas que trabalham com a área pública, sobretudo em uma cidade como o Rio de Janeiro, estão submetidas a tensões permanentes. No Brasil temos uma tradição de bater. As torcidas batem, alunos batem, a polícia bate, os seguranças batem, funcionários envolvidos em situações de tensão querem bater, herança do escravismo. Existe a necessidade de uma cultura para mudanças envolvendo processos de comunicação interna muito intensos.

Apesar de a crise estar, em seu aspecto visível, com a pronta declaração de demissão entre outras medidas, isso resolve o fato imanente. Não o transcendente. Não fosse apenas a temática da violência em si, esse acontecimento coloca em pauta a questão das concessões. Porque todas as vezes que surge uma notícia dessas pergunta-se qual é a natureza da concessão? Afinal, concessão serve à coisa pública?

Esse tipo de concessão tem realmente ampliado a qualidade do serviço público ou só tem contribuído para concentrar riqueza? Tal problema está acontecendo na área portuária, de rodovias enfim, em toda área de infra-estrutura a questão das concessões está sendo questionada. Estamos vivendo um período na economia mundial onde a iniciativa privada, que antes sedimentou um discurso de eficiência, está sendo colocada em cheque. Essa eficiência não é hegemônica e tão forte quanto se dizia. A tendência é que se caminhe cada vez mais para o fortalecimento do Estado.

Nesse episódio do Rio, o problema foi abordado espetaculosamente, tal como um fato que quebra a rotina, um fato jornalístico forte, mas em sua superfície, tem inúmeras indagações sobre públicos, comunicação, cultura organizacional, treinamentos e crise. O que é realmente lidar com o público dos transportes no Rio?

A gestão da crise não se dá apenas pela presteza de ir a público prestar esclarecimentos e mostrar que se tomou uma decisão. É preciso ir a questão essencial, a administração das coisas, a gestão dos fatos. Isso remete a ver realmente a comunicação como ferramenta. Um funcionário treinado para uma situação real e eminente, de estresse que ele vive todos os dias, não teria esse tipo de reação. Cabe aqui uma sugestão: a concessionária que administra o transporte ferroviário no Rio de Janeiro deveria pegar o case e analisar, não no sentido de compreender o episódio em si, e sim compreender a comunicação como um todo.

Muitas e muitas vezes o que acontece é a terceirização de funcionários. Guardadas as devidas proporções é como os antigos exércitos mercenários. Os terceiros não têm estreito compromisso com a empresa. Não estão engajados em sua cultura, na filosofia da empresa, o sujeito traz para dentro da companhia hábitos e culturas rivalistas. Ele vê o outro como inimigo.

Esse tipo de situação é vista em diversos setores, sobretudo nos mais tensionados: na escola, professores e alunos vêm uns aos outros como adversários; também no transporte público, onde o funcionário vê o usuário como alguém que problematiza o trabalho dele - e por muitas vezes realmente o faz. É exatamente por isso que ele precisa ser muito bem treinado. Mais do que ter um código de ética e conduta é preciso certificar-se que será compreendido e cumprido.

No início do século XX era hábito os oficiais da marinha baterem nos marinheiros. Até o ponto em que as tensões tomaram proporções tão grandes que resultaram em um episódio pouco conhecido- a Revolta das Chibatas- onde, na noite de 22 de novembro de 1910, marinheiros tomaram navios na baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, em protesto contra a aplicação de castigos físicos que sofriam como punição, ameaçando bombardear a cidade. A chibata foi abolida. Chegou o momento da sociedade brasileira se revoltar contra a realidade da chibata. Isso já faz parte do passado.Link

* ricardolauricella@terra.com.br

Francisco Viana é jornalista, consultor de empresas e autor do livro Hermes, a divina arte da comunicação. É diretor da Consultoria Hermes Comunicação estratégica (e-mail: hermescomunicacao@mac.com)

Fale com Francisco Viana: francisco_viana@terra.com.br

Fonte: Terra Magazine

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